quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Maldição de Calígula

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Caio Júlio César Augusto Germânico, ou Caio César, ficaria conhecido na história como Calígula, que significa "botinhas", como lhe chamavam os legionários comandados por seu pai, quando criança e usava as cáligas (sandálias militares) nos pés.

Estava-se em 32 D.C. e Calígula, ou Caio César, como era chamado, encontrava-se com o seu tio-avô, o imperador Tibério, voluntariamente exilado na ilha de Capri.

Nos últimos anos, após a morte do filho, Druso, O Jovem, Tibério mudara-se para a ilha de Capri e desinteressara-se completamente da política, entregando-se a atos de sadomasoquismo, pedofilia e outras perversões sexuais. A governação do império ficou praticamente entregue a Lúcio Élio Sejano, que governou aumentando o seu pecúlio e o dos seus próximos, enquanto foi fazendo desaparecer a maioria dos opositores.

Apesar de ser o herdeiro de Tibério, Calígula sabia estar completamente dependente dos caprichos do soberano; como a sua mãe e os seus irmãos, a qualquer momento poderia sofrer um trágico acidente que lhe tirasse a vida.

Foi neste ambiente que ele foi abordado por uma bela e escultural mulher, a rondar os trinta anos, de longos cabelos vermelhos e olhos verdes, que disse chamar-se Dinah e ser da Judeia. Ele reconheceu-a como uma das muitas meretrizes que frequentavam as orgias de Tibério.

Ela mostrou-lhe uma caixa de madeira trabalhada, aparentando ser muito antiga. Dentro, residiam duas soberbas estatuetas em madeira, esculpidas na perfeição; representavam um demónio masculino e outro feminino. Explicou-lhe que aquele objeto tem passado pelas mãos dos homens mais importantes de Roma e o seu poder pode fazer dele o próximo imperador.

Calígula, suspeitando que estava perante uma armadilha de Tibério, ou de alguém para o fazer cair em desgraça perante ele, disse-lhe que se fosse embora, ou mandaria chicoteá-la. A mulher respondeu-lhe que não temia as ameaças dele, pois o poder das divindades que adorava, era muito superior ao dele ou do governante mais poderoso dos Homens.

Ela explicou-lhe que pertencia a uma irmandade que fizera aquela caixa há muitas gerações, para adorar a Primeira Mulher, Lilith, ali representada com o seu filho e amante Asmodeus. As preces feitas às duas divindades são ouvidas e cumprem-se na maioria das vezes.

Como nunca ouvira falar daqueles deuses, tentou despedi-la novamente, mas a mulher insistiu; “Júlio Cesar recebeu-a e desprezou-a; foi assassinado pouco depois. O grande Augusto herdou-a e utilizou-a para se livrar de Brutus e de Marco António e Cleópatra.”




O futuro imperador olhou-a de alto a baixo e Dinah, percebendo que conseguira a sua atenção, continuou: “Até Tibério a utilizou para afastar os outros herdeiros de Augusto…, mas quer destruí-la e isso irá levá-lo à ruína. A minha missão é arranjar um novo dono, para que isso não aconteça.”

O silêncio de Calígula encorajou-a a prosseguir e ela explicou que aquele objeto era um Altar de Orações e podia pedir-se-lhe o que quiséssemos para vingar os agravos que nos houvessem feito. Para isso bastava escrever num papiro o nome de quem queremos atingir e guardá-lo na caixa. Em pouco tempo, a vida dessa pessoa começará a sofrer os efeitos.

 — Se era Tibério que estava de posse disto, por que está contigo agora? — Interrogou ele, com um olhar conhecedor.

— Fui eu quem lha entregou há alguns anos para o ajudar a tornar-se César. — Ela baixou os olhos. — Ele obteve o que queria, mas não cumpriu a sua promessa. Por fim, sabe que está a ser castigado e quer destruir o altar. Eu sabia onde estava. Fui buscá-lo. Serás o novo dono e o novo César.

— Que tenho de fazer? — Perguntou Calígula ao fim de alguma hesitação.

— Para já, aceitar o altar nas tuas mãos — Dinah pousou o objeto nas dele — e prometer que, uma vez César, tudo farás para aumentar o número dos fiéis do culto a Lilith. Darás privilégios e erguerás um santuário a ela. Se o não fizeres, o teu fim estará próximo.

— Aceito. — Confirmou ele gravemente.

— Agora, escreves num pergaminho o nome da pessoa que queres atingir e o que queres que aconteça. — Enquanto falava, ela retomou o altar e abriu-o sobre uma pequena mesa de apoio aos escribas, expondo as duas imagens. — Depois colocas dentro da caixa e fechas novamente, enquanto recitas: “Lilith, mãe de todos os homens, Primeira Mulher, que caminhas pelos caminhos da noite e pelos abismos desconhecidos desde os primeiros dias do mundo. Ofereço a minha vontade, em troca da tua força. Concede-me o que desejo, e serei teu servo fiel, até o último suspiro. Que a tua sabedoria escura ilumine o meu caminho e que a tua sombra envolva os meus inimigos. Pelo pacto que selamos, eu entrego o meu destino a ti. Que assim seja, nas profundezas e além.

O futuro imperador de Roma ajoelhou ao lado da mesa enquanto repetia a oração que Dinah ensinava. Assim que terminou, pegou num dos rolos de pergaminho que se encontravam na mesa e começou a escrever a maldição pretendida que atingisse o seu tio-avô. Escreveu o nome de Tibério em letras maiúsculas, de forma bem clara e terminou expondo a sua pretensão de ser imperador.

— Eu sou Dinah Lua de Prata, sacerdotisa da Estrela da Manhã e sou tua testemunha. — A mulher ergueu as mãos aos céus. — Escuta-me Lilith, mãe das bruxas, esposa de Samael, mãe e amante de Asmodeus, recebe este teu filho e faz aliança com ele. Amen!

Calígula ergueu-se e pegou cuidadosamente no altar com uma mão, mantendo a carta na outra: — Eu guardarei isto da minha mão. Apenas eu saberei onde se encontra.

— A forma como usares, ou tratares este altar, — avisou a sacerdotisa —, ditará o sucesso ou desastre dos teus planos… ou da tua vida.

Ele suspirou e deitou um último olhar à carta que ditaria o seu destino e o do carrasco da sua família, que ficaria encerrada naquela caixa, à vontade das forças do mal. Fechou as tampas decididamente, com o som do martelo do juiz após proferir a sentença.

O futuro imperador Calígula não sabia, mas, cometera um erro mortal. Assinara o seu nome no texto da maldição que seria executada por um demónio.



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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sabotagem no Paraíso - Terceira parte - A Investigação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 



 

O Criador ficou profundamente magoado com o que aconteceu. Perguntou a Adam se ele sabia com quem Lilian se encontrara e com quem criara aquela insatisfação e descontentamento. O inocente homem desconhecia completamente as respostas àquelas perguntas, ficando inclusivamente surpreendido com a constatação que havia mais gente além do casal primevo e do Pai.

O projeto do Criador estava comprometido, sem a presença da mulher…. Ela era parte essencial na Sua recomendação “Crescei e multiplicai-vos.” Retirou-se deixando o homem/criança entregue a si próprio, sozinho no paraíso.

Como Criador e Omnipotente, não podia deixar as coisas como estavam; invocou três anjos para procurar a fugitiva e a trouxessem a todo o custo. Se ela não obedecesse, estaria sujeita a ser morta ou a uma maldição eterna, assumindo que uma criatura ignorante do mundo e praticamente acabada de nascer, saberia o significado disso.

Durante meses, os emissários percorreram as aldeias miseráveis e as grutas do deserto em busca de Lilian ou de informações do seu paradeiro.

No Céu, Rafael moveu uma subtil investigação para saber quem estaria por trás de um ato tão sedicioso. A comunidade angelical estava dividida; ninguém estava ao corrente do que se passava, mas mesmo assim, muitos respondiam às perguntas com evasivas para confundir o investigador.

Miguel foi pessoalmente à presença de Lúcifer para o questionar em Nome do Criador. O rei dos deuses e demónios da Terra respondeu ao vago interrogatório escarnecendo da autoridade e poder do Criador. Mostrou-se interessado e questionou o mensageiro sobre o projeto sigiloso, sem, no entanto, obter nada de compreensível sobre o que era e o que acontecera. Quando foi confrontado com uma pergunta direta, não podia mentir, pois continuava uma entidade angelical, apesar do seu estatuto de demónio; respondeu que, fosse lá o que tivesse acontecido, se fosse obra dele, não haveria nenhuma dúvida. Não era seu costume esconder a mão após atirar uma pedra.

O projeto conseguira manter-se em segredo durante tanto tempo, principalmente porque poucos sabiam que existia, embora alguns desconfiassem. A partir daquela altura, a dúvida estava dissipada; havia mesmo um novo projeto entre as Mãos do Criador! Interesses punham-se em movimento, uns a favor e outros contra.

Sanvi, Sansavi e Samangelaf, assim se chamavam os perseguidores de Lilian, localizaram-na finalmente numa gruta da remota Terra de Nod, longe de tudo. Os três apresentaram-se na sua forma humana, envergando simples túnicas e sandálias: o objetivo não era assustá-la, mas convencê-la a voltar.

Ela recebeu-os com frieza e desinteresse, sentada numa pedra e amamentando um menino com poucos dias. Não mostrou medo nem respeito pelos emissários, senão quando um deles perguntou quem era o pai da criança.

A mulher recusou-se a responder a todas as perguntas, embora os interrogadores e o próprio Criador não tivessem dúvidas de que um, ou mais anjos, estavam por trás da conspiração que redundara na fuga dela.

Os anjos ficaram nervosos com a determinação da criatura e a capacidade de recusar a responder, mesmo às perguntas diretas, ao contrário das entidades angelicais. Aqueles seres eram realmente muito mais independentes do que eles e, portanto, mais perigosos.

Era hora de passar a uma atitude mais determinada e os três anjos, falando em uníssono, para se tornarem ainda mais solenes e ameaçadores, ordenaram à criatura fugitiva que regressasse ao Seio do Pai. Seria perdoada e tudo voltaria a ser como dantes, teria apenas de revelar quem eram os conspiradores, ou, pelo menos, quem era o pai da criança.

Ela baixou a cabeça e acenou negativamente, abraçando o seu filho.

Um dos anjos insistiu, que, pelo menos tornasse ao Jardim e implorasse o perdão do Pai, tinham ordens para não regressarem sem ela. Estavam autorizados até a tirar-lhe a vida ali mesmo e levar o corpo.

Lilian mostrou-se irredutível e, no momento seguinte, sem sequer se levantar do lugar, gritou-lhes que se fossem embora, pois ela nunca regressaria… a criança começou a chorar.

Vendo que havia necessidade de “grandes remédios”, o trio transformou-se; a sua essência angelical emergiu e eles cresceram até perto de três metros de altura, descomunais asas nasceram-lhes nas costas e todo o corpo resplandecia como metal em brasa. Novamente em uníssono instaram a que Lilian regressasse sob pena de ser amaldiçoada em Nome do Criador.

Ela voltou a gritar-lhes, por entre o choro da criança, que se fossem embora e a deixassem em paz.

As três terríveis vozes anunciaram então que, em virtude da sua desobediência, estava amaldiçoada em Nome de Deus até ao fim dos seus dias. Teria muitos filhos, mas quase nenhum vingaria; as doenças e a violência levariam quase todos. Ela teria uma vida longa, mas a maioria dela, seria passada a chorar a morte das crias. Terminaram com as palavras que selavam a maldição e que ecoaram no teto da gruta e fizeram tremer o chão como trovões.

Em seguida, como se fossem um só, voltaram-se e caminharam para a saída, ignorando as pedras que Lilian lhes arremessava, lavada em lágrimas.

Quando Samael e mais dois anjos se materializaram à frente dela, haviam-se passado muitas horas que chorava de joelhos no chão, ainda abraçada ao filho.

O anjo abraçou-a ternamente e sussurrou-lhe ao ouvido: “Acalma-te, estamos aqui para te ajudar. Não sabia onde estavas e a única forma de o saber, era seguindo aqueles três. Agora que estou aqui a teu lado, não deixarei que te aconteça nada de mal.”

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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Sobre “A Caixa do Mal”

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


O objeto conhecido por Caixa do Mal, ou a Caixa de Orações, é uma caixa esculpida em antiquíssima madeira de cedro do Líbano sobre a qual já foram feitos alguns reparos em folha de cobre. Da simbologia arcana que a recobre, destacam-se os selos dos demónios Lilith e Asmodeus. Possui dois suportes móveis para poder ser colocada na vertical e abrir as duas portas, simulando um altar portátil.



No seu interior, repousam finíssimas esculturas, do mesmo material da caixa, representando ambas as terríveis divindades. Na base do demónio masculino estão gravados os numerais romanos VI e nos do feminino XI. Acredita-se que se refiram à superstição romana do número dezassete (XVII), que pode ser convertida em VIXI (em latim, “Eu vivi”) e se viveu, então já não vive mais…



  

Todo o conjunto apresenta os danos do peso dos séculos e da manipulação por gerações de adoradores e curiosos. A madeira encontra-se ressequida e coberta de fendas, embora continue extraordinariamente dura. Reza a tradição oral ter sido esculpida a partir de um dos destroços provenientes da destruição do Templo de Salomão em 587 AC.

Na realidade, a origem da Caixa do Mal perde-se nas brumas do tempo. Não se sabe quando tal artefacto foi construído, nem quando foi consagrado às duas maléficas entidades. A primeira referência escrita ao objeto, estava dentro dele próprio; uma carta do imperador romano Calígula, que foi um dos seus proprietários, algures entre os anos 32 a 41 DC.

No Dia de Todos os Santos, 1 de novembro de 1755, durante o terramoto que destruiu a cidade de Lisboa, o tsunami que lhe sobreveio atirou com vários navios para terra, entre eles um veleiro de nome e proveniência desconhecida que se destruiu próximo do palácio do Duque de Aveiro. Do meio dos destroços, os criados do Duque serão atraídos pela estranha caixa que entregarão ao seu amo.




Suporte para esta publicação:
Imagens da caixa e do veleiro: IA https://designer.microsoft.com/
Imagens dos demónios, arte de Artur Mósca https://www.facebook.com/arturmosca


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quinta-feira, 18 de julho de 2024

Debaixo dos Céus chegou às 60 000 visualizações

 


Este nosso blogue que tem mais de 20 anos atingiu agora as 60 000 visualizações. 

Obrigado a todos os amigos e leitores.

Boas leituras





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domingo, 9 de junho de 2024

Sabotagem no Paraíso - Segunda parte – Paraíso ou Nem Por Isso

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




Samael resolveu ficar invisível e explorar cada pedaço do jardim escondido pelo Criador. Cada dia que passava, sentia-se mais fascinado pela fantástica Obra que havia sido feita. Conseguia perceber, pelos seus olhos divinos, a graciosidade, a mestria do intrincado das Palavras que terão sido usadas e reconheceu o poder e sabedoria do Criador.

Ocasionalmente, tornava a revelar-se a Lilian e deixava-se bombardear pelas perguntas da inocente criatura, cada dia mais fascinado pela sua perfeição e pelo encanto da voz e da aparência. Ao fim de algum tempo, porém, aborrecia-se do interrogatório e partia intempestivamente, como da primeira vez. Voltava no dia seguinte, assim que a encontrasse sozinha.

Desde o primeiro dia, Samael solicitou-lhe que não mencionasse os seus encontros a Adam ou ao Criador; era o primeiro pecado cometido por omissão no paraíso. Ele próprio, não revelara aos seus irmãos que descobrira o esconderijo. Primeiro, fizera-o porque pretendia exibir-se junto deles por conseguir desvendar o segredo sem ajuda, depois, porque queria saber mais, antes que tudo fosse destruído, finalmente, sentia-se culpado pela ocultação e pelo carinho que nutria pela criatura.

Se Miguel ou Rafael soubessem o que ele descobrira, em pouco tempo todos os outros acabariam por saber. Samael enfrentaria forte resistência aos seus intentos e seria rapidamente denunciado. Havia muitos, como aqueles dois, que defendiam as Intenções do Criador cegamente, enquanto outros não teriam descanso enquanto não matassem as criaturas e abrissem o Jardim do Éden a todas as outras. Nem queria imaginar o que faria Lúcifer com esta informação…

Claro, que o Criador não permitiria que o Seu segredo fosse divulgado ou o Seu trabalho destruído…, mas, para isso, era preciso que soubesse o que acontecia. Samael teria de esforçar-se enormemente para não se denunciar, pois, se fosse confrontado com uma pergunta direta, não conseguiria mentir, como qualquer entidade angelical.

Os lamentos de Lilian sucediam-se à medida que sabia mais sobre o mundo que não conhecia. Ela ridicularizava Adam, que se divertia a escutar o falar limitado dos pássaros ou das cabras e até a observar as evoluções que uma folha fazia ao cair das árvores. Isso era muito pouco para ela, queria conhecer mais. A parte pior, porém, era quando ele queria que ela se lhe submetesse e ficasse por baixo e quieta, durante as relações sexuais, que só aconteciam quando ele desejava.

O anjo percebeu, ali, a possibilidade de minar o trabalho do Criador; aumentando o descontentamento da mulher, traria a infelicidade e o desequilíbrio à relação. Como já estava fragilizada, bastaria uma pequena ajuda.

Os contactos com Lilian tornaram-se mais frequentes e prolongados. Quando o tema “das coisas do mundo” se esgotava, Samael ensinava-lhe as palavras para fazer surgir fogo ou água, ou para provocar um pequeno remoinho de vento que erga uma pilha com os galhos caídos na clareira. Por fim, ensinou-lhe a palavra que lhe permitia sair do jardim e ver com os seus próprios olhos, sempre acompanhada, como era o mundo para lá do lugar onde vivia.

Ela não ficou muito impressionada com o que viu do exterior. Lá fora, havia casas e roupas, mas também deserto, calor imenso e falta de água, alguns animais eram perigosos e nenhum falava ou dava mostras de a perceber! O jardim era muito mais bonito e organizado; tudo era calma, havia muita sombra e água e os animais eram pacíficos e faladores. Aqui não precisava de usar roupas, no entanto, sentia-se amarrada no jardim e parecia-lhe que se respirava melhor fora, mesmo no ar seco do deserto.

Um dia, durante uma das longas conversas, foi inevitável, as bocas de ambos tocaram-se e Lilian conheceu, naquela tarde, o verdadeiro significado de clímax e êxtase. Foi a primeira traição do paraíso…, mas repetiu-se muitas vezes a partir daí.

Claro que, se o sexo de Lilian com Adam já era muitas vezes uma situação tensa, por recusa dela em fazê-lo ou submeter-se aos desejos dele, a partir daquela altura piorou. A mulher recusava ser possuída e a harmonia do paraíso estava ameaçada; quando estavam juntos discutiam e, quando separados, ficavam amuados e sombrios.

Adam solicitou ajuda ao Criador e, juntos, questionaram Lilian, com o Pai tentando demonstrar doçura e compreensão, ao contrário do companheiro. Ela mostrou-se obstinada e recusou-se a responder a algumas perguntas, para estupefação do Criador, que começava a ficar altamente desconfiado de que havia elementos estranhos na equação.

Por fim, o Pai confrontou-a com uma pergunta direta: — Diz-me, minha filha, falaste com mais alguém além de nós e os animais do jardim?

Lilian abriu muito os olhos. Desprezava Adam, pois já percebera as suas limitações, mas tinha medo da reação do Criador. Hesitante, com o rosto muito corado e os braços estendidos, como que afastando os interrogadores, deu uns passos atrás, sem saber o que fazer. Balbuciou, no entanto, um tímido “Não.” Foi a primeira mentira do paraíso.

O Pai sorriu tristemente e repetiu a pergunta.

Para espanto dos dois, Lilian proferiu a palavra que Samael lhe ensinara e evaporou-se em pleno ar.

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quinta-feira, 23 de maio de 2024

Lançamento "Depois das Velas se Apagarem"


 

Ao longo dos últimos anos, fruto das participações em antologias e das publicações em sítios da “internet” e no meu próprio blogue, escrevi uma abundante quantidade de contos, que periodicamente organizo e publico em livro.

Por esta razão, “Depois das Velas se Apagarem” é um livro composto por uma compilação desses contos, nunca publicados em livros exclusivamente meus e orientados para um tema. O primeiro conto, “Na Pele do Lobo” foi parcialmente publicado eletronicamente, em episódios, mas a história é consideravelmente maior e poderá aqui usufruir da sua totalidade.

Apesar do título, algo tétrico, não se trata de um livro de terror, mas sim da luz, ou da ausência dela e, ao longo das suas mais de trezentas páginas, os assuntos abordados são os mais diversos que possam imaginar.

“Depois das Velas se Apagarem”, entramos no mundo da escuridão, ou daquilo que não é visível com a luz.

Se “Na Pele do Lobo” a componente sobrenatural é visível na forma de uma terrível epidemia que grassa em volta de um remoto mosteiro do século XIII, outros há como, “Por Acidente”, no qual a escuridão paira nos nossos dias, no comportamento insano movido pelo ciúme. Também há espaço para outros, como “Candy” que traz à luz uma presença doce, mas que não é deste mundo, ou como “Para um Bem Maior” ou “A Promessa” onde, uma abordagem bem disposta, se confunde a falta de sorte com a subtil mão do sobrenatural.


Por Um Bem Maior

O que é importante frisar aqui é que a escuridão pode estar no sobrenatural, mas também na alma humana, individualmente, como em “Brindemos a Laurinda” ou “Água e Sangue” ou coletivamente, quando são as luzes da civilização que se apagam, como em “Desolação” ou “Na Margem do Lago”.

É por esta razão que nem toda a maldade é sobrenatural.

Acompanhe-me nesta história e venha conhecer personagens mágicos e fascinantes, como “Lavínia”, almas errantes como em “Expiação” e em “Inquietação” ou mesmo uma velha lenda trazida à luz, como em “A Moura do Castelejo”.


A Moura do Castelejo


Não podemos, porém, esquecer a construção de uma lenda; “Alva, a Bela”, passada durante a ocupação romana da península ibérica e mais especificamente de trás-os-montes, tem todos os ingredientes para ser uma história contada por gerações no desfiar dos anos. Em pleno ruir do império, as invasões bárbaras e o seu impacto no quotidiano de uma villa romana, são o pano de fundo para o aparecimento de um personagem cuja simples presença irá moldar para sempre as vidas e a consciência daquelas pessoas e das gerações futuras.

Espero que gostem tanto como eu desta minha nova obra e apreciem cada uma das histórias e dos seus personagens. Sintam-se parte dos mundos que criei e vivam os ambientes descritos e abram bem os olhos para ver o que há “Depois das Velas se Apagarem”.

Obrigado pela vossa leitura e preferência.

Saber mais ou encomendar “Depois das Velas se Apagarem”

 As encomendas podem também ser feitas por e-mail (manuel.amaro@debaixodsceus.pt) ou pelas redes sociais do Facebook ou Instagram. O importante é ler. 


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domingo, 19 de maio de 2024

Sabotagem no Paraíso - Primeira parte – Como tudo começou

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



 Disse mais Deus: Façamos um homem, um ser semelhante a nós, e que domine sobre todas as formas de vida na terra, nos ares e nas águas.

Deus criou então o homem semelhante ao seu Criador; assim Deus criou o homem. Homem e mulher - foi assim que os fez.

 

Versículos 26 e 27 do livro do Génesis

 

    

No princípio dos tempos, homens selvagens, demónios, gigantes, centauros, faunos, ogres e outras criaturas incríveis estavam por toda a parte e espalhavam o mal e a violência. Desde a guerra no Céu, chefiada por Lúcifer, “O Portador de Luz”, tudo era caos. Miguel, “Aquele que é como Deus”, chefiou a repressão e pôs os revoltosos em fuga.

Acontecera no fim da Criação da Terra, que o Criador tecera com finas Palavras, pois Ele próprio era O Verbo, que dera início ao universo. Com a ajuda dos anjos, poderosos espíritos, criou cada um dos seus elementos e deu-lhes cor, movimento e vida. Serafins rodeavam-nO e ecoavam as Sua Palavras aumentando a sua força, enquanto Querubins registavam nos arquivos do céu as informações de cada criação e Potestades[1] modelavam e acarinhavam as obras de arte produzidas.

À medida que iam sendo criadas as florestas, os rios e os oceanos, alguns Potestades apaixonavam-se pelo seu próprio trabalho e assumiam a vida e a proteção dele. A dissensão surgiu com o aprimorar das criaturas; a última delas, o Homem, seria feito à Sua Imagem e não teria um espírito protetor específico, mas seriam, sim, servidos por toda a classe angelical.

As primeiras experiências mostraram logo a capacidade destrutiva da criatura; derrubava árvores, represava rios e matava animais, em grande número, para alimentar a sua comunidade crescente. Para o Criador perceber o seu erro, alguns anjos, sub-repticiamente, ensinavam técnicas aos humanos, como o domínio do fogo, que os tornava ainda mais destruidores.

Imediatamente os espíritos protetores dos elementos, protestaram pela destruição causada no seu reino, pedindo a extinção das criaturas. O mesmo pediam aqueles que sentiam o seu orgulho ferido por terem de servir uma criatura inferior, muitos outros achavam que o rumo que seguia a Criação, permitir um ser mais inteligente que os restantes e sem qualquer limitação, era errado. O Criador não os escutava, pois só Ele sabia o Seu propósito e com Ele estavam a maioria dos anjos. Daí até lutarem pela supremacia foi apenas um instante.

Derrotados, Lúcifer e grande parte dos seus seguidores abandonaram os céus. Alguns dos que se revoltaram quase igualavam o poder do Criador, eram espíritos do Princípio, quando a Primeira Palavra foi proferida, rasgando o caos do universo e refugiaram-se na Terra onde, com Palavras imperfeitas ou mal executadas, geraram criaturas absurdas ou quase humanos que deixaram depois à sua sorte.  As únicas características em comum nesta criação, eram a maldade que lhes habitava no coração e a vontade de exterminar o próximo. Os revoltosos apresentavam-se a essas criaturas como deuses e eram adorados como tal.

O Criador, decidindo precisar fazer algo diferente, pronunciou as Palavras que criaram uma floresta, a que chamou jardim do Éden. Pensou então que tinha de escondê-lo das vistas invejosas dos outros deuses e dos outros seres que habitavam o mundo. Recitou as palavras de ocultação para o jardim ficar invisível aos olhos de todos e assim poder continuar a sua obra.

Criou o Homem e a Mulher, como todos as outras criaturas, com Palavras que uniram terra, fogo, ar e água. Chamou-lhes Adam e Lilian e começou a ensiná-los segundo as regras com que desejava que vivessem; assim que se desenvolvessem o suficiente, dar-lhes-ia a Terra como herança. Arranjaria depois maneira de a expurgar das monstruosidades que a conspurcavam na altura.

Os outros deuses sabiam que algo se passava e tentavam, em vão, perceber o que andava a fazer o Criador e onde estava escondido o seu trabalho. Até os anjos, criaturas invejosas e traiçoeiras, andavam inquietos, em volta Dele tentando descobrir.

Nenhum dos deuses se recordava já quando os anjos foram criados, sabiam apenas que eram quase tão antigos como eles. Apesar de maioritariamente, havia alguns que primavam pela rebeldia e por vezes, essa rebeldia tocava a raia da sedição. Se haviam sido ajudantes incansáveis durante a construção do universo e eram guardiões fervorosos de tudo o que fora criado, por vezes, parecia terem ideias muito próprias do rumo que a criação deveria tomar. Abominavam a desordem causada pelas criações insanas dos deuses e agiam muitas vezes como um contrapoder, nas sombras, sabotando o seu trabalho.

Samael, um dos arcanjos, descobriu o esconderijo e infiltrou-se sub-repticiamente no jardim do Éden. O seu objetivo era matar as criaturas que o Criador tanto escondia e que pretendia que os anjos os servissem; eles, imediatamente abaixo dos deuses, teriam de servir crianças, mortais e patéticas.

Porque é que não se limitava a criar leões, elefantes ou águias, cujas máximas ambições eram dominar uma pequena área e subjugar os seus iguais nesse espaço, durante uma curta vida? Os humanos eram perigosos, principalmente, porque, apesar de mortais, eram demasiado parecidos com os próprios anjos.

Envolvido nestes pensamentos, o arcanjo vagueou, na sua forma etérea, pela floresta e sobre os rios que atravessavam o jardim e verificou que, nem nas árvores, nas plantas, ou mesmo nas águas, se sentia a presença dos deuses, ou das Potestades que as criaram e que normalmente as protegiam. O que havia aqui era uma criação de raiz, independente de tudo o existira até àquele momento. O Criador fizera-o sem ajuda e sem invocar os espíritos, no entanto… mesmo sem eles, tudo estava imbuído de vida, equilibrada, interdependente, quase perfeita.

Foi então que ele a viu: completamente despida, colhia amoras de um arbusto. Longos cabelos cor de fogo que desciam até ao fundo das costas, seios roliços e firmes, coxas bem torneadas, assim era a mulher que estava perante ele. O nome Lilian[2] acudiu-lhe à mente. Era então aquela uma das odiadas criaturas, que ele tinha de exterminar antes que se tornasse demasiado perigosa.

Samael materializou-se frente a ela, sob uma forma humilde, de humano, envergando uma túnica azul-claro e sandálias de couro.

Embora surpreendida, pelo súbito aparecimento do estranho, ela aproximou-se, pois não conhecia o medo.

O anjo, embora determinado a executar a sua missão, não teve ainda a coragem de materializar a sua espada flamejante para tirar aquela vida inocente, apesar de já o ter feito milhares de vezes às ordens do Criador. A criatura era demasiado perfeita e virginal. Samael, o “Veneno de Deus” sentiu-se fraquejar.

Lilian, que nunca havia conhecido mais ninguém além de Adam e do Pai de ambos, tinha muitas perguntas para lhe fazer.

Samael deu por si sentado ao pé dela a responder às perguntas e cada vez mais angustiado. Ficou a saber que ela ainda não percebera que era prisioneira numa gaiola dourada, mas, ao contrário de Adam, aborrecia-se sem nada para fazer.

O anjo sentia imensa dificuldade em olhá-la nos olhos, sem sentir um desejo imenso a apoderar-se dele. Aquela era, com toda a certeza, uma armadilha do Criador; fazer com que se apaixonassem pela sua criação. Fortemente perturbado, ergueu-se, sussurrou um encantamento e surgiram-lhe umas espantosas asas nas costas. Levantou voo num silvo, deixando uma pena a esvoaçar.



[1] São aqui referidas várias classes de anjos superiores e que estão mais próximos de Deus.

[2] Nas referências à Primeira Mulher dos escritos que consultei, o nome Lilith era sempre o utilizado. A minha relutância em seguir este caminho é o facto de este nome nada ter de hebraico, ao contrário de Adão e Eva (nas suas traduções ocidentais). Nesta adaptação livre da história do primeiro homem e da primeira mulher, resolvi que seria mais adequado Lilian e que Lilith surgiria mais tarde.

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sexta-feira, 29 de março de 2024

Os Refugiados

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
Na Madrugada dos Tempos - Parte 20

 

A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo.

Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento.

É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo,

com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar.

Mia Couto

Escritor e Biólogo moçambicano

Nascido em 1955

 

Mirsulo e a sua comitiva partiram há algumas semanas, levando consigo o ferido Tibaro, agora em franca recuperação.

Para Barinak fora um encontro muito produtivo. Apesar de não terem conseguido saber como fazer o tão desejado cobre, obtiveram um bom acordo com o sal, que seria trocado por pontas de lança e de seta. Além disso, de modo a conseguir trazer mais sal de cada viagem, Mirsulo iria entregar dois burros já domados e levou com ele um homem que iria aprender a lidar com os animais. Seriam pagos com a primeira entrega de oito cestas de um cotovelo de largo e dois de fundo, cheias de sal.

É verdade que socorreram um estranho e fizeram tudo para o ajudar, sem esperar nada em troca, mas essa era a lei de quem habita grandes espaços desertos. A vida é escassa e preciosa, por isso, os humanos devem ajudar-se reciprocamente e, mesmo na caça, só matar aquilo que se planeja comer.

Mergulhado nestes pensamentos, Erem ajudava a abrir a cova para mais um monólito, que chegaria dentro de dois dias. Já se avistava, numa colina a norte, o grupo de dez diligentes homens e mulheres que o fazia rolar sobre troncos. Seria o oitavo, de um total de vinte e quatro. O chefe do clã mudava assim o tema das suas preocupações; a ideia inicial era ter dez monólitos quando fizessem as festas das fogueiras[1], mas estavam com um atraso de dois. Não era grave, mas o décimo monólito seria o representante da estação e não estaria lá.

A festa das fogueiras era uma ocasião importante; seria escolhido um casal de adolescentes que envergaria respetivamente uma pele de auroque macho e uma de fêmea. O macho, ostentando enormes cornos, dançaria com a fêmea e simulariam o acasalamento. As crianças correriam em volta deles atirando as flores colhidas nos dias anteriores, para a união ser abençoada e produza muitas crias para alimentar os humanos. Ao anoitecer, as fogueiras acender-se-iam em vários pontos da aldeia e os jovens, para mostrar a sua força e coragem, fariam saltos mais ou menos acrobáticos por cima delas. Era uma noite de alegria e felicidade onde se festejava o milagre da vida e da fecundidade… naquela noite seriam concebidas algumas crianças que haveriam de nascer ao aproximar-se o fim do inverno. Naci, que partira entretanto para Hatiweik a fim de ir buscar a sua nova esposa, iria apresentá-la a Barinak nessa altura, buscando a bênção de Swol.

Pelo canto do olho, o chefe do clã viu um dos miúdos do grupo de Tailan aproximar-se em corrida.

— Erem! — A voz esganiçava fez-se ouvir ainda antes de parar a corrida. — Estão a chegar… — estava ofegante —… estão a chegar…

— Quem está a chegar? — Ele fingiu um ar aborrecido. — Fala, rapaz!

 — Muita gente… — o miúdo ainda não conseguira recuperar o fôlego —… vem aí muita gente… com trouxas e animais… muitos! Estão a ir para a casa da reunião.

Sem perceber que tipo de invasão seria aquela, Erem meteu-se ao caminho em passos largos, o que resultou num abandono geral do trabalho; todos o seguiram, mortos de curiosidade.

Ao aproximar-se da casa da reunião estremeceu. Havia um grande grupo de pessoas, como o rapaz dissera, com trouxas, crianças e animais. Eram principalmente mulheres, mas havia alguns homens entre elas. Sem contar, eram quase tantos quantos os habitantes de Barinak. Não sabia o que dizer e caminhou entre eles, atordoado, olhando-os e sendo olhado com curiosidade.

— Erem! — Uma voz feminina chamou de entre os estranhos. — És tu, Erem?

Procurou a origem da voz e localizou uma mulher, já entrada nos anos, bastante magra e com o rosto tisnado do sol e coberto de rugas. Havia qualquer coisa de familiar nela.

— Erem! — Ela insistiu. — És mesmo tu! Sou Cira!

O nome acertou-lhe como uma pedrada e uma onda de recordações; era sua tia, uma das irmãs de Birol. Correu a abraçá-la e interpelou-a com uma enxurrada de perguntas. Queria saber que estava ali a fazer, onde estava o resto do clã, quem era aquela gente…

Gradualmente, mais dos habitantes de Barinak apareciam e vinham questionar os recém-chegados. Havia estranheza por verem o seu chefe a conversar alegremente com um deles, mas alguns reconheceram a irmã de Birol e saudaram-na mais ou menos efusivamente.

Cira tinha muito que contar. Com lágrimas nos olhos, começou a narrativa:

“Após nos separarmos, seguimos sempre na direção da nascente do lago salgado. Retomamos a vida nómada, Birol estava obcecado em ver a grande catarata, para desagrado de alguns dos nossos que foram abandonando o clã assim que passávamos perto de alguma povoação.

O lago salgado, porém, crescia imenso a cada mudança de lua. Encontrávamos várias aldeias abandonadas e a terras, começando a salgar, estavam repletas de vegetação morta e despovoadas de pessoas e animais. Começamos a passar fome e o meu irmão não queria ouvir as vozes do clã que diziam para nos afastarmos do lago.

Por fim, chegamos a uma área muito extensa de terras encharcadas. Já não tínhamos comida há alguns dias e a água potável estava a acabar, toda a que nos rodeava era salgada ou cheirava mal. Acabamos por perceber que havíamos percorrido uma grande distância a embrenhando-nos num enorme pântano. A passagem que usamos foi-se estreitando até chegar a um sítio sem saída. A única solução era recuar, virados para Ner[2] até conseguirmos uma passagem que nos tirasse dali.

Birol já estava com febre e sentindo-se fraco há algum tempo. A fome e a sede que passamos naquela armadilha mortal acabaram com ele e com mais uns quantos dos mais fracos. Quando finalmente encontramos uma passagem, estávamos reduzidos a metade dos que começaram e mais mortos que vivos. Logo a seguir encontramos uma nascente de água doce e foi a nossa salvação.

Estávamos desvairados e perdidos, sem saber o que fazer. Retomamos a caminhada seguindo as estrelas-guias até encontrar uma povoação. Mas eles não nos quiseram lá. Tinham um muro de troncos em volta das casas e só nos deixavam montar as tendas no exterior. Podíamos entrar durante o dia, mas ao anoitecer tínhamos de sair.

Aí aconteceu a divisão; o meu irmão mais novo, Okan, revoltado por termos sido guiados numa caminhada para a morte, não quis mover-se mais; perdera a mulher e dois filhos, restava-lhe apenas uma menina. Ficaria ali, o povo da aldeia acabaria por os aceitar. A prima Ezgi e a maioria escolheu continuar para poente. Eu e o meu filho Demir e a mulher, Gizem, decidimos que voltaríamos para trás à tua procura. O Clã do Rio Brilhante, depois de tantos invernos a crescer e a tornar-se um dos maiores, destruiu-se completamente. O crescimento do lago salgado e a insistência louca do meu irmão reduziu-nos a nada.

Depois disso temos caminhado por essa terra imensa até que, no inverno passado, parámos numa povoação chamada Annakos a poente daqui. Já tínhamos ouvido falar de Barinak por caçadores e pastores, que ficava a poucos dias de distância e do seu amado chefe. Embora não soubéssemos o nome, já suspeitávamos de quem se tratava. Mais uns dias e empreenderíamos a viagem para cá. Aconteceu que, uma tribo nómada de Ner atacou a povoação, matou muita gente e roubaram tudo o que puderam levar. Perdemos Demir nesse ataque e acho que toda a população se dispersou, deixando Annakos vazia.

Pela minha parte, se tinha de fugir, que fosse para junto do meu sobrinho e da minha família. Esta gente que me acompanha sabia da minha intenção e resolveu seguir-me. Também eles vieram ao som das histórias do santuário que aqui se constrói e que protege este povo.”

Erem olhou o aspeto desolado daquele grupo, com carinho, mas, ao mesmo tempo preocupação. Era um número muito grande de bocas a alimentar.

Alim chegou, espantado com a quantidade de pessoas que ali via reunidas. Foram chamá-lo que estava junto de Lemi, de quem se tornara muito amigo. Este último não viera porque estava cada vez mais debilitado e já não andava. Tailan apareceu quase a seguir, acompanhado pelos cerca de cinco outros homens que atualmente o seguiam para todo o lado. Falava-se em lutas entre os “estrangeiros” de Barinak, a liderança dele era contestada.

— São nómadas? — Perguntou Alim diretamente a Erem.

— Não. — Respondeu o chefe do clã sem hesitar. — A maioria vem de Annakos, já estive lá, numa das minhas últimas caçadas. — Foram atacados e a aldeia foi destruída.

— Querem ficar aqui? — Tailan mostrou-se desagradado. — Não podemos aceitar tanta gente. Vejam só; quase só mulheres e crianças! Não podemos alimentar tanta gente.

Humilde e pacientemente, o grupo de refugiados mantinha-se praticamente em silêncio. Continuavam sentados no chão, agarrados aos seus pertences, olhando com esperança para os três homens que decidiriam o seu futuro.

— Algumas crianças já são crescidas, já trabalham. A maioria das mulheres são jovens, de certeza que poderão alimentar-se. Trazem alguns homens e alguns animais… — Alim observou, aproveitando o que de bom se conseguiria obter.

— Teremos de ver o que podemos fazer. — Disse Erem pensativamente.

Zia e Nehir aproximaram-se, também surpreendidas com aquela quantidade de estranhos de uma só vez. Ambas reconheceram a velha Cira e logo se abraçaram e beijaram-se, chorando de alegria com o reencontro. A curandeira, no entanto, começou de imediato a verificar entre os refugiados os que estavam feridos ou doentes.

— Mas… — Tailan estava espantado. — Estão mesmo a pensar em aceitá-los? Que faremos a tantas bocas?

— São bocas, mas também são braços e cabeças. — Erem olhou diretamente o amigo. — Estranho que sejas quem mais reclama, quando, também tu, foste um estranho em Barinak.

Ele não gostou de ser recordado e virou o rosto, contrariado, vendo chegar Fikri e Remzi, os filhos de Lemi, chamados da equipa que arrastava o monólito. Sabia serem críticos daqueles que continuavam a chamar estrangeiros e apelou à sua opinião: — Fikri, o teu primo pensa receber esta gente em Barinak. Que te parece?

O visado e o irmão olharam demoradamente para o grupo, aparentando não ter reconhecido a tia, pois eram muito novos quando saíram do Clã do Rio Brilhante. Quando os olhos de Fikri tornaram para o membro do conselho que o questionava, já a habilidade diplomática herdada de Lemi se sobrepunha à sua habitual impulsividade; percebera o conflito e que tinha de tomar uma posição. Ou estava do lado do primo, ou daquele homem, que detestava e admirava ao mesmo tempo.

— Porque está o nobre Tailan preocupado com mais estrangeiros a chegar aqui? — Ele colocou o braço sobre o ombro do irmão mais novo para que este não se manifestasse. — Todos sabem a minha opinião, não ma pediram quando vos aceitaram, mas também não era necessário, porque Erem é o nosso chefe e confiamos nas suas decisões. — Exibiu um pequeno sorriso para o primo. — Além de tudo, apesar de eu não gostar, os estrangeiros em Barinak têm sido muito úteis.

— Veremos o que dirá Naci quando regressar. — Respondeu Tailan com azedume.

— O meu filho, foi buscar a sua nova esposa fora do clã. — Ripostou Erem. — De resto, também pessoas do teu povo procuraram homem ou mulher entre nós e os nossos entre os vossos. Não defendias tu a união?

O rosto de Tailan fechou-se contrariado e cruzou os braços sobre o peito. Sempre fora um homem impressionante, que respirava energia e liderança. Agora, permanentemente seguido pelos seus protetores, estava habituado a que a sua vontade se impusesse sem necessidade de se justificar.

— Entre os nossos povos, sim. — Ele respondeu lentamente, sopesando cada uma das suas palavras. — Entre aqueles que vivem, nascem e crescem em Barinak.

Zia aproximou-se, entretanto, sentindo a tensão que se formava. Mesmo que inconscientemente, Tailan e o seu séquito estavam perfeitamente agrupados frente a frente com os vários elementos do Clã do Leão das Montanhas.

— Verás, que será bom para todos. — Erem deu um passo em frente e pousou conciliadoramente a sua mão sobre o braço de Tailan. — Não vês aqui novas esposas para os nossos homens? Crianças que em pouco tempo serão caçadores, pastores, pescadores? Mais braços para ajudar a construir o santuário. Em breve não se distinguirão de nós.

— O que eu vejo, — o chefe dos estrangeiros replicou com uma careta e sem perder a pose defensiva —, é uma grande quantidade de bocas a alimentar e um grupo perseguido por inimigos. Sabe se virão atrás deles? Eu não os quero junto de mim. — Com esta sentença, virou costas e afastou-se rudemente, seguido pelo séquito de guarda-costas.

Erem olhou para Zia, que se mantivera calada todo o tempo e depois tornou para o grupo que se afastava. Tailan, porém, ainda tinha mais um aviso e interrompeu brevemente a marcha para o fazer: -- Devias estar preocupado era em preparar para te defenderes, em vez de construir um santuário e estar a receber quem não se pode defender sozinho.



[1] Correspondia aproximadamente à primavera

[2] Norte

         
    

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