Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Quando o Criador proclamou o advento de um novo ser — o Homem — e designou Seu Filho como o mediador divino, Lúcifer viu nisso um insulto à sua própria magnificência. “Por que devemos curvar-nos diante de outro?”, ele pensou, “se somos livres e dotados de poder?” Sua voz, persuasiva e doce como o mel, espalhou-se entre os corações angélicos que começavam a questionar: seria a submissão nosso único destino?
In “O Paraíso Perdido” de John Milton
De longe, Samael e Lilian apreciaram os dois portentosos Querubins que guardavam a entrada do jardim do Éden. As espadas flamejantes faziam com que tudo em volta parecesse escuro.
A mulher estremeceu com a espantosa visão, mas o anjo acalmou-a: — Sossega. Apesar do seu aspeto, não te fariam mal. Apesar de guerreiros temíveis, são um pouco limitados nas suas ações e seguem as ordens do Senhor cegamente. Se lhes ordenaram que não deixassem ninguém entrar ou sair, assim farão. Desviarão ou impedirão a entrada, ou saída, de quem quer que seja, se não tentarem pela violência, não terão problemas.
— Mas… — Lilian achava estar a ver mal —… não são mulheres?
— Masculinos ou femininos, que interessa? — Samael sorriu-lhe divertido. — São anjos e são Querubins. São os guardiões do conhecimento divino e nada os detém para o proteger. — Murmurou algumas palavras e transformou-se num melro que pousou numa pedra fitando insistentemente a mulher.
Lilian, após alguma hesitação, murmurou o encantamento e o seu corpo principiou a torcer-se e a mirrar, até restar a espantosa serpente castanha e vermelha de olhos verdes.
Guiada pelo melro, a serpente rastejou através da clareira que precedia a entrada no jardim. Dirigiram-se ambos para um ponto afastado do local onde estavam os guardas. Se lhes despertassem a atenção, eles perceberiam a atividade da energia angelical e conseguiriam ver para além dos disfarces; seriam logo desmascarados.
Durante dias, na sua forma humana, vaguearam no incomensurável jardim. Não viam Adam nem Rrava na gruta onde Lilian vivera. Os inúmeros animais que povoavam o jardim olhavam-nos estranhamente: “Sabem que não pertencemos aqui.” Avisou Samael.
Durante praticamente todo o dia andavam juntos e comiam os abundantes e deliciosos frutos que pendiam das árvores e arbustos. Não havia ali nada que lhes fizesse mal, tal como os animais que, mesmo os perigosos, como os tigres, ou os lobos, limitavam-se a olhá-los e a seguir a sua vida. Lilian já tinha esquecido como o jardim era belo e colorido, em contraste com o poeirento e árido mundo lá fora.
— Por que é tão diferente o exterior? — Ela questionou subitamente, quando estavam sentados numa pedra a comer laranjas. — Aqui é tudo tão verde, luxuriante e lá fora seco e tudo é terra castanha, quase sem árvores nem água.
— O mundo não é todo assim. — O anjo deixou cair os olhos para o chão, melancólica e pensativamente, após o que respondeu. — Antes da Guerra no Céu, o Criador e todos os anjos trabalhavam afincadamente a transformar uma bola de pedra e terra seca, que era este planeta, num imenso jardim povoado de árvores e vida animal. Olhou-a como se a não visse, mas sim algo que acontecera há milénios:
O Criador fez várias experiências com múltiplas espécies. Não se conseguia decidir e rapidamente, num frenesi descontrolado, toda a Terra estava habitada por répteis. Os mais variados tipos de gigantescos répteis, desde o fundo dos oceanos até aos próprios ares! Ele sentia, no entanto, uma enorme frustração porque não era aquilo que pretendia, embora não soubesse ainda o que era.
Um dia, furioso, enviou uma enorme pedra sobre a Terra que provocou uma devastação enorme e destruiu praticamente tudo o que fora construído. Todos os anjos ficaram revoltados com tão grande destruição e alguns mostraram essa revolta abertamente ao Criador.
O planeta ficou coberto de poeiras do impacto. Ondas gigantescas lamberam as zonas costeiras, enquanto grandes fogos irrompiam pelas florestas. Perturbados, os vulcões cuspiam furiosamente o seu conteúdo flamejante. Nuvens de fumo e poeira estenderam-se à escala planetária. Toda a vida extinguiu-se e o trabalho efetuado desaparecera. Restou um mal-estar no Céu, enquanto a Terra, privada do calor do sol, arrefecia e ficava gradualmente coberta de gelo.
Então alguns de nós percebemos que nem tudo desaparecera; havia uma pequena faixa do planeta de onde as nuvens se dissiparam. Havia árvores, rio e… muitas espécies de novos animais a povoavam.
Felizes, os anjos voltaram ao trabalho, à medida que o calor do sol, agora liberto das nuvens, fazia derreter lentamente as grandes camadas de gelo. A área povoada de fauna e flora crescia.
As Potestades e as Virtudes[1] são as classes que mais trabalham nessas criações. Alguns deles, apaixonam-se de tal forma pelo fruto do seu trabalho que se fundem com ele, tornando-se como que a alma dessas entidades. Há Potestades nas águas dos rios e dos mares, no vento que envolve a Terra, nas montanhas e nos próprios vulcões, enquanto outros vagueiam livremente ao sabor do vento velando pela fauna, acarinhando tanto rebanhos de cabras, como manadas de elefantes. Era um mundo novo para um novo reino onde os mamíferos se sobrepunham ao reduzido número dos répteis que sobreviveram à grande extinção.
Só quase no final o Criador mostrou-nos quem estava na base do Seu novo plano; eram umas criaturas desengraçadas, curvadas e peludas que viviam em grupos miseráveis. Pesados demais para serem macacos, pois não conseguiam subir às árvores com a graciosidade deles, eram também demasiado fracos e pequenos para serem ursos. Estavam condenados ao extermínio.
Alguns de nós apaixonaram-se imediatamente por eles, ou não fosse essa a vontade do Criador, mas, outros, discordaram completamente da escolha e fizeram questão de o dizer.
O Senhor, porém, não estava com paciência para escutar vozes dissonantes. Afirmou ser essa a Sua decisão irrevogável, acrescentando ainda; toda a classe angelical serviria estes seres mirrados e auxiliaria a guiá-los na sua sobrevivência, corrigindo os seus erros e apoiando-os nos seus planos.
Alguns dos mais poderosos do Céu fizeram ouvir a sua revolta abertamente. Lúcifer, mais do que qualquer um, o Querubim a quem chamavam “o Portador da Luz”, desafiou o próprio Criador, afirmando que Ele enlouquecera e não podiam mais obedecer-Lhe.
Ao arcanjo rebelde, juntaram-se-lhe outras poderosas entidades, como Belial, Moloque, Abaddon, Beelzebub, Mammon, … representavam uma força temível, envolvendo várias classes angelicais, que pretendia aprisionar o Criador, tomar o poder e as rédeas da Criação.
Muitos de nós temiam-nos e não se atreveram a contestá-los. Moloque, era como que a fúria de Deus, revoltado e adepto da violência extrema, chamam-lhe agora “Deus dos Sacrifícios”, por incentivar os sacrifícios humanos pelo fogo, para sua honra. Beelzebub, “O Senhor das Moscas”, era divinamente perigoso. Na hierarquia celeste, estava ao nível de Lúcifer e nunca olhou a meios, por mais tortuosos que fossem, para atingir os fins e desafiá-lo era correr graves riscos. Mammon era engenhoso, além de ganancioso e revoltado. Algumas das armas mais cruéis e terríveis usadas na guerra foram desenvolvidas por ele.
Apenas Miguel lhes fez frente; “Aquele que é como Deus” chefiou as hostes fiéis ao Criador, encabeçou os melhores guerreiros e expulsou os rebeldes para a Terra, fechando-lhe os portões do Céu.
Desde então, Lúcifer e os seus sequazes espalham a miséria e a desolação por todo o lado, escondendo-se onde os nossos trabalhos não chegaram, ou onde eles os destruíram.
Se já o faziam antes, após a derrota no Céu, dedicaram-se com mais afinco a corromper a Criação e a iludir os povos dispersos. Na verdade, o facto de nascerem tantos “deuses” nestas terras áridas é apenas a prova da ausência da “Shekinah”.[2] Quase todas as povoações adoram o seu próprio deus que, na maior parte dos casos, é apenas um dos companheiros de Lúcifer, mais ou menos disfarçado. No fundo, são pequenos focos de poder, que não se entendem entre si.
Fala-se nos Céus que os expulsos estão a construir um grande palácio a que chamam Pandemónio[3], nas profundezas da Terra e onde pretendem organizar uma contraofensiva para tomar o poder.
— E tu colaboras com eles… — interveio finalmente Lilian.
— Não quero realmente Lúcifer como governante… — confessou Samael olhando para o chão —… mas muitas vezes questiono-me acerca da lucidez do Criador… e como eu, há outros. Samyaza, Azazel e Armaros são apenas os mais proeminentes deles.
— Achas que haverá outra guerra no Céu? — Ela sorriu com a ideia.
— Não sei, não consigo prevê-lo. — Ele encolheu os ombros. — Este novo grupo não parece interessado no poder. Perturba-os o livre arbítrio concedido aos humanos e a submissão imposta aos anjos. Samyaza e o seu grupo fazem parte daqueles escolhidos pelo Criador como Vigilantes[4] dos humanos e estão fortemente envolvidos com o objeto da sua vigilância. Grande parte tomou mulheres entre os humanos e muitos têm até filhos com elas… — aqui olhou conspicuamente para Lilian — por isso invoquei a ajuda deles.
— Então há mais como o meu filho? — Alegrou-se a mulher. — Não estaria mais seguro entre eles?
— Antes pelo contrário. — O rosto do arcanjo contraiu-se numa expressão de dor. — Alguns têm uma altura incomum, para um humano, outros, detêm poderes especiais, mas aquilo que todos sem exceção revelam é uma crueldade e uma revolta sem limites. O lado demoníaco dos anjos sobressai na hibridação com os humanos… chamam-lhe os Nefilim
[1] Classes de anjos da segunda tríade, vocacionada para a execução da vontade divina
[2] Palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”
[3] O nome Pandemónio deriva do grego, combinando pan (todos) e daimónion (demónios ou espíritos), significando literalmente "o lugar de todos os demónios" e é referido na obra de John Milton, “O Paraíso Perdido”
[4] Os Vigilantes, Grigori, em grego, fazem parte do livro de Enoch onde se conta em pormenor a história deste grupo angelical, que ficará conhecido como os Anjos Caídos.
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