quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Rute - 2ª parte - Revelações



No dia seguinte, a manhã estava cinzenta,  tal como tinha estado nos últimos dias. Porém, para ele, a pequena réstia de luz teimosa que rompia entre as nuvens espessas era como um esplendoroso raio de sol.
Caminhou, a passos largos, para o emprego, revelando uma energia que nem ele sabia possuir.
Ao entrar no edifício do escritório e dirigir-se ao elevador, uma voz chamou-o das escadas. Era Rute.
O olhar compenetrado e o rosto sério emitiram um brilho apaixonado ao vê-la.
– Rute! – Exclamou – Minha querida.
– Vem cá depressa! – Apressou-o ela. – Rápido!
Ele correu e refugiaram-se nas escadas, fechando a porta atrás deles.
Os braços dele envolveram-na enquanto a sua boca procurava a dela sofregamente.
– Espera! – Ordenou ela fugindo com a boca e afastando-o. – Espera aí, tenho uma coisa para te dizer.
Largou-a. Ficaram uns segundos a olhar-se fixamente. Um, temendo o que o outro teria para falar e este pensando como lho dizer.
Ela trazia o rosto quase sem maquilhagem, como de costume, um blusão fino impermeável amarelo sobre uma blusa branca entreaberta e uma saia azul-marinho que lhe dava pelo joelho. 
A iluminação das escadas apagou-se mas, pela luz difusa de uma claraboia, lá muito no alto, os dois pares de olhos brilhavam como estrelas, húmidos e inquietos.
– Que foi? – A voz dele tornou-se sonora.
– Queria dizer-te… - A voz feminina hesitava – Pedir-te...
– Que esqueça tudo o que aconteceu ontem. – Concluiu ele com secura.
– Não. – A negativa era firme. – Não é isso. Apenas que… não contasses a ninguém, nem… mostrasses nada lá em cima.
O silêncio instalou-se enquanto os olhos perscrutadores do homem tentavam, na pouca iluminação existente, penetrar fundo na alma dela para lhe extorquir a verdade. 
– Sim? – Tinha que haver mais.
– Só isso. – Gemeu ela – Não estou preparada ainda para assumir uma relação perante toda a gente.
– Sim? – Insistência fria.
– Só isso, meu querido. – Reafirmou – Não quero que comecem já especulações e críticas. Vamos continuar assim algum tempo, sem que ninguém saiba, encontramo-nos, mas não precisamos de publicidade.
– Que esperas conseguir com isso?
– Nada. Isto é para ver se corre bem, percebes? Se não der, paciência, ninguém tem nada com isso mas também ninguém soube de nada.
– Não estou a entender o teu receio.
– Bolas. Não estás a facilitar nada. Tenta entender, eu casei e divorciei-me, não vês? Se não der resultado, é porque eu sou uma esta ou  uma aquela e não consigo segurar os homens, e ninguém consegue viver comigo e blá, blá, blá…
O sorriso aflorou facilmente aos lábios dele.
– É esse o teu medo? Do que as pessoas dirão se não der certo? – Abraçou-a sem resistência. – Tolinha. Como podes ser tão avançada numas coisas e tão atrasada noutras? Tão tolinha, minha querida!
– Queres dizer que aceitas? – O rosto ganhou brilho na obscuridade. – Que não vais andar por aí a falar a torto e a direito do nosso caso?
Ele colocou as mãos, uma de cada lado do rosto pequeno de pele macia e acariciou-lhe a nuca, entre os cabelos, com os dedos compridos e finos:
– Meu amor, eu não sou propriamente um adolescente que anda para aí a apregoar as suas conquistas. Tenho-te demasiado respeito para entrar em brincadeiras.
Ela saltou-lhe para o colo e apertou-o sensualmente com as pernas em volta da cintura, encostando e pressionando o baixo-ventre.
Não tardou que fizessem amor ali mesmo, em pé, sujeitos a serem surpreendidos a qualquer momento.
Foi uma paixão fugaz, imediata e urgente. Uma satisfação mútua, tão necessária como desejada, para selarem o pacto que acabavam de fazer.
O clímax foi rápido, estavam ambos preocupados com a porta que podia ser empurrada e as escadas invadidas por um qualquer colega de trabalho.
Compuseram-se, rapidamente, entre risos cúmplices e pequenos beliscões traquinas.
– Estamos combinados então? – Ela insistia – Eu vou pelo elevador e tu pelas escadas. Lá em cima voltamos a ser o Sr. Ferreira e a Menina Rute, ok?
– Ok. Ok, vai lá embora rápido que já estamos atrasados.
Foi premiado com mais um beijo fugidio, dado por aquela aparição idílica que se evaporou através da porta que dava para o átrio.
Ele soltou um longo suspiro, premiu o botão da luz e começou a lenta escalada até ao 3º andar, com as pernas inseguras do esforço recente…
– Já não tenho idade para estas coisas. – Lamentou-se.
Aquele  dia e todos os que se lhe seguiram foram todos muito iguais. Saíam do emprego separados e encontravam-se em sítios alternados para jantar e depois a noite terminava, invariavelmente, na casa dele onde ficavam até de madrugada. Até que ela se despedia e voltava para a sua própria habitação a alguns quilómetros dali.
Nunca quisera passar lá a noite nem ceder aos insistentes pedidos dele para que se mudasse para ali.
Até a casa dele saía, lentamente, do marasmo e recuperava de anos de semiobscuridade e pó limpo com displicência. Contratara uma empregada mais eficaz do que a velha Dona Marieta que ameaçava reforma há já uns anos e até as suas camisas e fatos andavam muito mais bem engomados e cuidados.
A vida corria-lhe bem. Rute estava a fazer dele um homem novo e ele próprio sentia que os anos lhe pesavam menos. Tratava os colegas e subordinados com mais cuidado e menos desconfiança e, principalmente, não perdia uma oportunidade para elogiar as capacidades profissionais dela com especial ênfase na presença do patrão.
Não imaginara nunca que aquilo era a felicidade e que ele poderia usufruir dela depois de tantos anos julgando que vivia.
Mas, mesmo o maior dos sonhos tem um “papão”, até o mais belo dia de verão tem uma nuvem teimosa... e nem o melhor pano escapa de uma nódoa.
Uma noite, ela estava estranhamente calada. O jantar, na sala dele, decorria em silêncio e ele sentia-se muito nervoso, tentando a todo o custo trazê-la de volta ao seu caráter.
Tentou falar sobre o trabalho, contou uma anedota (não tinha muita habilidade), puxou conversa sobre a roupa que ela vestia… Nada resultava. Teria de haver uma abordagem direta.
– Que tens, meu amor?
Ela esboçou um sorriso triste com olhos de quem tinha acordado há muito pouco tempo.
– Nada, meu querido, não se passa nada. Estou só a pensar.
– E eu? Estou incluído nos teus pensamentos?
O rosto melancólico suavizou-se ainda mais enquanto passava a mão, carinhosamente, pelo rosto dele e lhe respondia:
– Tu estás sempre nos meus pensamentos.
Aquelas frases deixavam-no sempre sem saber o que dizer:
– Eu… Diz-me o que se passa. Estás doente?
– Não. Não estou doente.
– Então?
– Estou triste apenas.
– Porquê? Que te fizeram?
– Nada, esquece. Não se fala mais nisso.
– Desculpa! – Impôs-se ele – Acho que tenho o direito de saber o que se passa e ver se te posso ajudar.
– Tenho um problema muito grave para resolver. – Cedeu finalmente.
– De certeza que não é nada que não se consiga resolver. Vá, diz-me de que se trata.
Ela olhou-o profundamente nos olhos, enquanto meditava e uma lágrima teimosa espreitava ameaçando cair.
– O meu marido não manda dinheiro há quase um ano e ninguém sabe onde ele está. A minha vida tem estado muito complicada… dívidas…- Explodiu num pranto soluçante, com a cabeça encostada em seu ombro.
– Dívidas? – Surpreendeu-se – Mas tu não ganhas nada mal, que dívidas podes ter que te consomem todo o ordenado? Vives só e  nestes últimos meses temos vivido praticamente do meu salário…
Ela puxou a cabeça para trás violentamente e vociferou:
– Que sabes tu? Com que te preocupas tu, além da tua vidinha pacata? Esqueces que eu tive uma vida antes de ti? Ou achas que nasci no dia em que te vi pela primeira vez?
– Espera, calma! – Tentou sossegá-la – Eu estou do teu lado, lembras-te?
 O olhar de Rute pareceu soltar faíscas de ódio, durante mais uns segundos. antes de se atirar em novo choro sobre o colo do aturdido companheiro.
– Não podes compreender… Gastei muito dinheiro com o meu divórcio e fui enganada pelo meu marido e pelo meu advogado. Ainda estou a pagar honorários.
As mãos finas e pálidas acariciavam lenta e distraidamente o longo cabelo dela, enquanto no interior da sua cabeça, as ideias, baralhadas, se misturavam e confundiam.
– Mas… Não posso compreender… Que enormidade de dívida tem de ser essa para… Há quanto tempo…?
– Não é só isso. – As confissões pareciam não ter fim entre os soluços. .– Tenho duas filhas…
– Duas filhas?!? – Aquela era a noite mais complicada da sua vida. – Nunca disseste nada!
A mulher sentou-se, enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão e o olhava com um misto de ressentimento e pena.
– Alguma vez o perguntaste? Alguma vez quiseste saber mais a meu respeito do que se poderíamos estar juntos no dia seguinte? Se jantaria e faria amor contigo? Tens de concordar que as tuas preocupações sempre foram muito limitadas, pelo que não me deves culpar de não te dizer isto ou aquilo.
Ele torturou com as mãos, por segundos, a sua boca e as maçãs do rosto enquanto digeria mais aquela inesperada acusação.
– Não achas? – O choro desesperado dera lugar a uma calma fria e implacável. – Que esperas de mim? Que viva apenas para ti, nos momentos que estou contigo, e que não te mace com as minhas coisas e com a vida que tenho quando não estamos juntos?
– Chega! – Exigiu João – É assim que recebes uma oferta de ajuda? Quando foi que me contaste algo acerca do teu passado? Estavas à espera que te perguntasse? Eu nunca te perguntaria nada sem saber que querias falar, já ouviste falar de boa educação? Vivi estes meses todos num mar de felicidade porque imaginava que também tu assim estavas. Partilhei contigo tudo o que tenho e tudo o que de teu quiseste partilhar comigo… Mais não podia fazer. Dei-te tudo e tu deste-me o que quiseste!
A boca entreaberta, os olhos abertos de incredulidade e o queixo trémulo dela, ameaçavam a proximidade de mais uma torrente de lágrimas. Mas ele, perdida a calma, não estava com vontade de engolir a raiva que sentia.
– Todo este tempo deixei que seguisses à tua própria velocidade, que guiasses os nossos caminhos,e que fizesses as coisas como querias … Já nem reconheço a minha vida, mas acho que não entendo como foi que consegui viver tantos anos daquela maneira. Tu és um anjo enviado para dar luz, cor e sentido à minha existência sem objetivos.
Com tristeza e desânimo, levantou-se,  voltou as costas, meio curvado e com as mãos pousadas no guarda-louça ripostou:
– És a razão para eu viver. Querias que rebuscasse a galinha dos ovos de ouro como o lavrador ganancioso? Que remexesse em algo que não sabia se querias ver mexido, arriscando-me a perder a coisa mais maravilhosa que me aconteceu na vida?
Sentiu os braços finos a envolver a cintura, enquanto o calor do ventre e dos seios, sobre as costas, lhe provocava um arrepio na espinha.
– Desculpa-me! – Pediu num sussurro ainda chorosa mas arrependida. Não tenho o direito de te recriminar depois de uma entrega tão sincera e tão doce como tem sido a tua. Não tens culpa do meu passado nem das minhas frustrações. És a primeira pessoa, em muitos anos, que me traz um bocadinho de paz e felicidade sem me pedir nada em troca.
Voltou-se e apertou-a, beijando com suavidade o cabelo perfumado e sedoso, encostado no rosto.
Apartou-a de si e, olhando-a de frente, limpou as lágrimas que ainda restavam naquele rosto amado enquanto retomava a conversa onde tinham terminado, como se nada se tivesse passado.
– Então, duas crianças! E onde andam os diabretes?
Rute não pôde  deixar de esboçar um sorriso, enquanto respondia:
– Mariana e Filipa, dez e doze anos respetivamente. Estão num colégio interno, caríssimo, por exigência dele. Vejo-as uma vez por mês.
Guiou-a para que se sentasse de novo em frente a ele, enquanto a fitava profundamente.
– Quanto mais olho para ti, menos me pareces do estilo de ser enganada dessa forma. – Ele tentava ler os pensamentos no olhar vivo e encurralado dela. – Pelo que me contaste ele deve ser um homem de posses… Não desaparece assim do dia para a noite. Tem com certeza negócios, coisas de que não se pode afastar, um escritório, um emprego, sei lá!
Ela ergueu-se rapidamente e voltou-lhe as costas como que querendo terminar  aquele assunto.
– Não interessa. É problema meu e sou eu que tenho de o resolver.
João ergueu-se também e, passando  a mão pelo cabelo sedoso e brilhante, pediu:
– Vá, não te abespinhes mais. Eu estou aqui para te ajudar no que estiver ao meu alcance. Diz quanto deves. Vamos ver o que podemos fazer.
– Não quero o teu dinheiro! – Ainda uma ponta de orgulho ferido.
– Vamos parar com isto? – Ele tentava ser conciliador. – Vamos ver se te posso ajudar e depois pagas como puderes.
– Já vai em muito dinheiro… Atrasos, juros de mora…
– Sim? Quanto? – Simulou um ar enfastiado, enquanto tirava do bolso do casaco a carteira com os cheques.
– Cinco mil euros.
Não conseguiu disfarçar a nuvem negra que lhe passou sobre os olhos:
– Cinco mil? É um bocado de dinheiro. Assim uma quantia tão certa?
– Claro que não, mais uns trocados, mas com isso posso eu bem.
Não fez mais comentários, enquanto preenchia o cheque, em pé, sobre a mesa onde os restos da refeição inacabada ainda repousavam.
– Deixa à ordem. – Pediu ela.
– Está bem. – Assentiu após uma curta hesitação – Mas tens que o depositar de qualquer modo. Só tenho cheques “barrados”.
Aquele dia foi uma marca que ficou para sempre no coração inocente dele… Tantos segredos e ele nunca percebera nada, tantas dificuldades, tantas tristezas…




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