O Quim Coxo era
outro dos elementos da sua vida. Desde criança que a perseguia e dizia que
havia de casar com ela, claro que nunca se atrevia a dizê-lo quando o filho do patrão
andava por perto.
A chegada de Zé
transtornou-o imenso pois sentia-o um rival contra quem não queria perder e, na
maior parte das situações em que Luís e Zé se envolveram em luta, o Quim Coxo
estava por perto incentivando o patrão.
Chegara mesmo a
pedir ao Senhor Samões para casar com ela mas o velho não o quis ouvir o que o
tornou ainda mais rancoroso.
Estava agora
aqui a forma ideal de se vingar deles todos.
…
Tarde na noite Maria
espreitou por uma das muitas frinchas da porta. O vigia, embora não tivesse
arredado pé, dormia com a cabeça caída sobre o peito embrulhado num cobertor.
Saiu pé ante pé,
cosendo-se com a parede, envolvida nas sombras, vestida com a sua melhor roupa
e coberta com um xale sobre a cabeça.
Contornando a
última casa no lado esquerdo da rua, entrou por uma pequena abertura na parede
que a ladeava acedendo ao terreno onde a maior parte das pessoas despejavam os dejetos
ou satisfaziam as necessidades fisiológicas. No meio do horrível cheiro, parou
e olhou para trás a certificar-se que ninguém a seguia antes de avançar através
do carreiro de terra que terminava abruptamente num declive íngreme com cerca
de 20 metros que levava a outro dos caminhos de acesso à aldeia.
Começava já a
descer com alguma dificuldade quando o resfolegar de um cavalo muito perto a
sobressaltou. Tentou divisar no escuro a origem do ruído e apercebeu-se do
homem deitado atrás de uma enorme pedra, convenientemente escondido de quem
quer que subisse o caminho em direção ao povoado, ao lado do cavalo.
Recuou rapidamente
dando graças às almas por não ter trazido a candeia e assim ter conseguido passar
despercebida.
Sem hipótese de
passar por ali sem que a vissem, decidiu recolher-se a casa novamente e, numa
prece rápida, pediu a Deus que o seu marido se mantenha longe dos caminhos e
não se atreva a vir por aí em busca dela. Sim, busca-la, porque sabia do fundo
do seu coração que ele era incapaz de se ir embora sem vir por ela.
Ao chegar à
porta reparou que o Quim já estava a pé e preparava-se para ir procura-la.
Por uns
segundos, os seus olhares cruzaram-se. O dela, carregado de desprezo e o dele
de ódio e desejo. Uma vez mais a porta bateu com estrondo quando entrou.
Deitou-se quase
vestida. Não tirou a roupa interior que a mantinha quente e deitou-se assim sob
as mantas tentando dormir… sozinha pela primeira vez em três anos… mas precisa descansar
um pouco numa noite que, por estar tanta coisa a acontecer, parecia não ter
fim.
Acabou por
adormecer de cansaço entretida entre o pensar e o rezar.
Acordou,
esgotada, como se tivesse apenas acabado de fechar os olhos, com o barulho
típico das madrugadas da aldeia. A voz das pessoas a caminho dos terrenos para
trabalhar acompanhados pelas dezenas de tamancos de madeira batendo na calçada.
Ergueu-se
cambaleante e abriu as portadas de uma das janelas. Escondeu os olhos da luz e
encaminhou-se para o jarro e a bacia de esmalte onde lavou o rosto na água
gelada.
Sentou-se na
cama desalinhada e deixou cair a cabeça entre as mãos sentindo-se derrotada.
Mas foi desânimo
de pouca dura. Buscou energias à sua alma transmontana e trocou rapidamente
para a roupa de trabalho, pegou a celha que estava na cozinha e saiu para a rua
para trabalhar como se nada se tivesse passado.
Havia uma névoa
fina espalhada pelas ruas e o ar frio cortava a pele do rosto e das mãos.
O Coxo já não
estava na escadaria frente à casa mas os morrões dos cigarros que fumara
estavam lá, no chão, provando a sua presença até bem tarde.
Caminhou
apressadamente com a celha debaixo do braço. Estava atrasada para se juntar às
lavadeiras que cuidavam das roupas da casa grande e a governanta não gostava
nada disso.
Conseguiu
alcançar as três companheiras ao chegar aos portões da casa:
- Maria! –
Exclamou a mais jovem com um ar assustado – Ai valha-me Deus, mulher, como foi
que aconteceu aquela desgraça?
Tentando manter
a calma para e não recomeçar a chorar disse simplesmente:
- Nem eu sei
rapariga. Ainda não sei do meu Zé e o Quim Coxo não me largou a porta a noite
toda.
- Eu vi. –
Apoiou a outra de ar mais maduro e rosto escurecido pelo sol ornado por
sobrancelhas hirsutas – Também o Manel da Horta e o Linhaças andaram canelho
acima, canelho abaixo toda a santa noite. Se o teu marido abeirasse, por certo
o apanhavam.
- Ontem queria
ir ter contigo, sabes? – Tornou a mais nova – Mas o meu marido… fartou-se de
gritar comigo. Estava a ver que me batia. Disse-me que quem se juntasse a ti ia
ficar marcada.
- Tolice! –
Exclamou a mais velha.
- Tolice? –
Contrapôs com ar presunçoso a que até aí não falara – Pois fiquem vocemessês com
a certeza que isto não vai ficar assim e se não apanharem o Zé, quem vai pagar
é essa daí e quem com ela fizer sociedade.
As outras duas
calaram-se e Maria olhou-a com espanto. Nenhuma parara de caminhar enquanto
atravessavam o umbral do portão do acesso às traseiras da propriedade e aos
tanques onde lavavam a roupa.
Tão logo se
encontram do outro lado, uma voz masculina chama:
- Maria! Ò
Maria, pára-te aí que te quero falar.
Era o João do
Nabal, o capataz do solar. Assim que o viram, as outras três mulheres
aceleraram o passo e desapareceram rapidamente de cena. Com ele vinha um dos
enormes mastins que ajudavam na guarda da propriedade e que saiu correndo
prontamente em busca dos afagos de Maria que o acarinhava, a ele e a um irmão
desde cachorrinhos.
A jovem ficou
sozinha à espera do homem alto, senhor dos seus quarenta anos, de costas
direitas e uma cabeça onde brilham os cabelos brancos sobre um tronco de
barril. Ela deu-lhe um sorriso triste enquanto afagava distraidamente a enorme
cabeça do cão. João era uma boa alma embora gritasse com os empregados como se
os quisesse comer, ela tinha boas recordações quando era pequena e ia às
cavalitas dele para tratar dos cavalos.
Trazia o rosto
sério e os olhos tristes quando chegou ao pé dela e perguntou sem mais:
- Tiveste novas
do Zé?
- Não senhor.
Não o vejo desde ontem quando foi para a festa. Como está o menino Luís?
Ele olhou em
volta para se certificar que ninguém se apercebia da conversa de ambos:
- Não está nada
bem. Não dá acordo dele e não solta um ai a picadela nem pancada. O doutor
Ferreira, da vila, passou a noite com ele, mas parece que mandaram chamar outro
do Porto porque não se recomenda que o mexam.
- O Bom Deus nos
acuda. – Gemeu Maria.
- Estou aqui
porque o senhor Samões me mandou ao teu encontro. - A jovem olhou-o nos olhos,
angustiada. – Mandou-me dizer-te que te não quer mais ao serviço da casa. Que
te vás embora e não abeires mais ou manda pôr-te na rua.
- Ai Senhor dos
Aflitos, que vai ser da minha vida? – Uma torrente de lágrimas irrompeu dos
seus olhos enquanto enclavinhava as mãos numa súplica para o comovido capataz –
Que hei-de fazer, senhor João?
Como se não a
ouvisse, ele continuou:
- E quer também
que deixes a horta que te deu o ano passado. Podes ir hoje apanhar tudo o que
puderes e não voltes lá ou manda chicotear-te. - O homenzarrão olhou para o
chão para que lhe não visse as lágrimas que teimavam em querer sair e rematou. -
Vai-te embora, rapariga. Não tens família ali para Soutelo?
- Não posso. Não
sem o meu Zé. Tenho que esperar por ele.
- Não faças
isso. Vai enquanto é tempo, se o menino morrer, o velho Samões vai querer
vingar-se e não apanhando o Zé…
- Tenho que
esperar por ele. – Teimou erguendo o nariz num desafio – Se me for embora ele
não saberá onde ir ter comigo.
- Alguém lhe
dará o recado. O teu tio por exemplo. Não digas a mais ninguém para onde vais.
- Só saio daqui
com ele.
- Vai embora
pelo amor de Deus! – Ele perdeu a paciência – Não vês que vai ser a tua
perdição e a dele? Os empregados andam a bater os montes e se o apanham… ele
tem muitos inimigos entre eles, bem o sabes.
Ela deixou cair
a cabeça, desanimada. As lágrimas corriam copiosas pingando pelo nariz num
choro silencioso.
João passou-lhe
a mão calejada pelo cabelo cor de carvão num gesto carinhoso, velho de anos e
disse quase num sussurro antes de se afastar na direção da casa senhorial:
- Não fiques,
rapariga. Vai-te daqui, porque enquanto não fores o Zé não sairá das redondezas
e vão acabar por dar com ele.
De cabeça baixa,
sozinha na entrada do portão, sentia que havia milhares de olhos postos nela de
todos os pontos visíveis da propriedade. Deu meia volta e afastou-se em passos
curtos chorando mansamente encaminhando-se para casa.
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