sábado, 17 de janeiro de 2015

Terras de Xisto - 3ª Parte - Expulsão





O Quim Coxo era outro dos elementos da sua vida. Desde criança que a perseguia e dizia que havia de casar com ela, claro que nunca se atrevia a dizê-lo quando o filho do patrão andava por perto.
A chegada de Zé transtornou-o imenso pois sentia-o um rival contra quem não queria perder e, na maior parte das situações em que Luís e Zé se envolveram em luta, o Quim Coxo estava por perto incentivando o patrão.
Chegara mesmo a pedir ao Senhor Samões para casar com ela mas o velho não o quis ouvir o que o tornou ainda mais rancoroso.
Estava agora aqui a forma ideal de se vingar deles todos.
Tarde na noite Maria espreitou por uma das muitas frinchas da porta. O vigia, embora não tivesse arredado pé, dormia com a cabeça caída sobre o peito embrulhado num cobertor.
Saiu pé ante pé, cosendo-se com a parede, envolvida nas sombras, vestida com a sua melhor roupa e coberta com um xale sobre a cabeça.
Contornando a última casa no lado esquerdo da rua, entrou por uma pequena abertura na parede que a ladeava acedendo ao terreno onde a maior parte das pessoas despejavam os dejetos ou satisfaziam as necessidades fisiológicas. No meio do horrível cheiro, parou e olhou para trás a certificar-se que ninguém a seguia antes de avançar através do carreiro de terra que terminava abruptamente num declive íngreme com cerca de 20 metros que levava a outro dos caminhos de acesso à aldeia.
Começava já a descer com alguma dificuldade quando o resfolegar de um cavalo muito perto a sobressaltou. Tentou divisar no escuro a origem do ruído e apercebeu-se do homem deitado atrás de uma enorme pedra, convenientemente escondido de quem quer que subisse o caminho em direção ao povoado, ao lado do cavalo.
Recuou rapidamente dando graças às almas por não ter trazido a candeia e assim ter conseguido passar despercebida.
Sem hipótese de passar por ali sem que a vissem, decidiu recolher-se a casa novamente e, numa prece rápida, pediu a Deus que o seu marido se mantenha longe dos caminhos e não se atreva a vir por aí em busca dela. Sim, busca-la, porque sabia do fundo do seu coração que ele era incapaz de se ir embora sem vir por ela.
Ao chegar à porta reparou que o Quim já estava a pé e preparava-se para ir procura-la.
Por uns segundos, os seus olhares cruzaram-se. O dela, carregado de desprezo e o dele de ódio e desejo. Uma vez mais a porta bateu com estrondo quando entrou.
Deitou-se quase vestida. Não tirou a roupa interior que a mantinha quente e deitou-se assim sob as mantas tentando dormir… sozinha pela primeira vez em três anos… mas precisa descansar um pouco numa noite que, por estar tanta coisa a acontecer, parecia não ter fim.
Acabou por adormecer de cansaço entretida entre o pensar e o rezar.
Acordou, esgotada, como se tivesse apenas acabado de fechar os olhos, com o barulho típico das madrugadas da aldeia. A voz das pessoas a caminho dos terrenos para trabalhar acompanhados pelas dezenas de tamancos de madeira batendo na calçada.
Ergueu-se cambaleante e abriu as portadas de uma das janelas. Escondeu os olhos da luz e encaminhou-se para o jarro e a bacia de esmalte onde lavou o rosto na água gelada.
Sentou-se na cama desalinhada e deixou cair a cabeça entre as mãos sentindo-se derrotada.
Mas foi desânimo de pouca dura. Buscou energias à sua alma transmontana e trocou rapidamente para a roupa de trabalho, pegou a celha que estava na cozinha e saiu para a rua para trabalhar como se nada se tivesse passado.
Havia uma névoa fina espalhada pelas ruas e o ar frio cortava a pele do rosto e das mãos.
O Coxo já não estava na escadaria frente à casa mas os morrões dos cigarros que fumara estavam lá, no chão, provando a sua presença até bem tarde.
Caminhou apressadamente com a celha debaixo do braço. Estava atrasada para se juntar às lavadeiras que cuidavam das roupas da casa grande e a governanta não gostava nada disso.
Conseguiu alcançar as três companheiras ao chegar aos portões da casa:
- Maria! – Exclamou a mais jovem com um ar assustado – Ai valha-me Deus, mulher, como foi que aconteceu aquela desgraça?
Tentando manter a calma para e não recomeçar a chorar disse simplesmente:
- Nem eu sei rapariga. Ainda não sei do meu Zé e o Quim Coxo não me largou a porta a noite toda.
- Eu vi. – Apoiou a outra de ar mais maduro e rosto escurecido pelo sol ornado por sobrancelhas hirsutas – Também o Manel da Horta e o Linhaças andaram canelho acima, canelho abaixo toda a santa noite. Se o teu marido abeirasse, por certo o apanhavam.
- Ontem queria ir ter contigo, sabes? – Tornou a mais nova – Mas o meu marido… fartou-se de gritar comigo. Estava a ver que me batia. Disse-me que quem se juntasse a ti ia ficar marcada.
- Tolice! – Exclamou a mais velha.
- Tolice? – Contrapôs com ar presunçoso a que até aí não falara – Pois fiquem vocemessês com a certeza que isto não vai ficar assim e se não apanharem o Zé, quem vai pagar é essa daí e quem com ela fizer sociedade.
As outras duas calaram-se e Maria olhou-a com espanto. Nenhuma parara de caminhar enquanto atravessavam o umbral do portão do acesso às traseiras da propriedade e aos tanques onde lavavam a roupa.
Tão logo se encontram do outro lado, uma voz masculina chama:
- Maria! Ò Maria, pára-te aí que te quero falar.
Era o João do Nabal, o capataz do solar. Assim que o viram, as outras três mulheres aceleraram o passo e desapareceram rapidamente de cena. Com ele vinha um dos enormes mastins que ajudavam na guarda da propriedade e que saiu correndo prontamente em busca dos afagos de Maria que o acarinhava, a ele e a um irmão desde cachorrinhos.
A jovem ficou sozinha à espera do homem alto, senhor dos seus quarenta anos, de costas direitas e uma cabeça onde brilham os cabelos brancos sobre um tronco de barril. Ela deu-lhe um sorriso triste enquanto afagava distraidamente a enorme cabeça do cão. João era uma boa alma embora gritasse com os empregados como se os quisesse comer, ela tinha boas recordações quando era pequena e ia às cavalitas dele para tratar dos cavalos.
Trazia o rosto sério e os olhos tristes quando chegou ao pé dela e perguntou sem mais:
- Tiveste novas do Zé?
- Não senhor. Não o vejo desde ontem quando foi para a festa. Como está o menino Luís?
Ele olhou em volta para se certificar que ninguém se apercebia da conversa de ambos:
- Não está nada bem. Não dá acordo dele e não solta um ai a picadela nem pancada. O doutor Ferreira, da vila, passou a noite com ele, mas parece que mandaram chamar outro do Porto porque não se recomenda que o mexam.
- O Bom Deus nos acuda. – Gemeu Maria.
- Estou aqui porque o senhor Samões me mandou ao teu encontro. - A jovem olhou-o nos olhos, angustiada. – Mandou-me dizer-te que te não quer mais ao serviço da casa. Que te vás embora e não abeires mais ou manda pôr-te na rua.
- Ai Senhor dos Aflitos, que vai ser da minha vida? – Uma torrente de lágrimas irrompeu dos seus olhos enquanto enclavinhava as mãos numa súplica para o comovido capataz – Que hei-de fazer, senhor João?
Como se não a ouvisse, ele continuou:
- E quer também que deixes a horta que te deu o ano passado. Podes ir hoje apanhar tudo o que puderes e não voltes lá ou manda chicotear-te. - O homenzarrão olhou para o chão para que lhe não visse as lágrimas que teimavam em querer sair e rematou. - Vai-te embora, rapariga. Não tens família ali para Soutelo?
- Não posso. Não sem o meu Zé. Tenho que esperar por ele.
- Não faças isso. Vai enquanto é tempo, se o menino morrer, o velho Samões vai querer vingar-se e não apanhando o Zé…
- Tenho que esperar por ele. – Teimou erguendo o nariz num desafio – Se me for embora ele não saberá onde ir ter comigo.
- Alguém lhe dará o recado. O teu tio por exemplo. Não digas a mais ninguém para onde vais.
- Só saio daqui com ele.
- Vai embora pelo amor de Deus! – Ele perdeu a paciência – Não vês que vai ser a tua perdição e a dele? Os empregados andam a bater os montes e se o apanham… ele tem muitos inimigos entre eles, bem o sabes.
Ela deixou cair a cabeça, desanimada. As lágrimas corriam copiosas pingando pelo nariz num choro silencioso.
João passou-lhe a mão calejada pelo cabelo cor de carvão num gesto carinhoso, velho de anos e disse quase num sussurro antes de se afastar na direção da casa senhorial:
- Não fiques, rapariga. Vai-te daqui, porque enquanto não fores o Zé não sairá das redondezas e vão acabar por dar com ele.
De cabeça baixa, sozinha na entrada do portão, sentia que havia milhares de olhos postos nela de todos os pontos visíveis da propriedade. Deu meia volta e afastou-se em passos curtos chorando mansamente encaminhando-se para casa.

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