Os meses foram correndo e as coisas pareceram voltar ao normal. Ela continuava a não dormir no apartamento dele nem a querer mudar-se, mas jantavam juntos e lá passavam parte da noite .
No emprego, ela ia tomando cada vez mais as rédeas dos trabalhos e, com a permissividade dele, tomava decisões com o resto da equipa.
João começava agora a ter uma vida mais descansada e, ao contrário do que teria imaginado, estava a gostar.
Por fim, chegaram as férias e não podiam ausentar-se ambos ao mesmo tempo por isso adiaram o mais que puderam. Era já outubro quando se permitiu gozar três merecidas semanas. Nos outros anos, ele quase não tinha senão um dia ou dois espaçados, pois ia ao escritório quase todos dias; agora sim, seriam férias.
Os fins de tarde eram os melhores. Ela saía do emprego, correndo para os seus braços, para umas horas de amor e para o jantar, sendo esse o momento em que Rute o punha ao corrente de todas as novidades.
Assim se passaram quase duas semanas até que João recebeu um telefonema de um primo que vivia na aldeia transmontana, de onde ele era oriundo; tinha de se deslocar lá para acertarem alguns documentos de propriedades adquiridas aos pais de João e assinar títulos em falta.
Foi com pesar que se despediu da sua amada. Promessas de amor, de telefonemas diários e juras de memória eternas, como se fossem separar-se por alguns anos... E não apenas por um par de dias.
A viagem foi mais rápida do que ele imaginara e, fruto de dois dias de muita atividade entre conservatórias e advogados, não estranhou muito a ausência do contacto de Rute. Quando tentou ligar-lhe pelo telemóvel, no comboio de regresso e ela não atendeu ficou cismado; e mais ainda com o passar das horas sem que lhe devolvesse a chamada.… Teria acontecido alguma coisa? E ele que nunca fora a casa dela (ela sempre o demoveu) e nem tinha nenhum número fixo com que a contactar.
Passou uma noite infernal, tentando imaginar o que teria acontecido . Ela nunca tinha deixado passar um dia sem falar com ele…
No outro dia, logo pela manhã, dirigiu-se ao escritório e cumprimentou um grupo de colegas, boquiabertos à sua chegada, que lhe responderam com monossílabos hesitantes.
Não percebeu o espanto, mas a sua preocupação era outra e dirigiu-se rapidamente para o seu gabinete, cuja secretária estava impecavelmente vazia. Os usuais montes que continham o seu trabalho haviam desaparecido.
Após pensar um pouco, voltou-se para se ver de caras com um dos seus colegas, o Faria. Nunca teve nenhuma simpatia por aquele indivíduo que apresentava ar de superioridade e desprezo pela raça humana.
– Que se passa aqui? – Perguntou – Onde está a Rute?
Faria pareceu ficar surpreendido:
– Não a viste? Há quanto tempo não falas com ela?
– Há dois dias, mais ou menos. Onde está?
– Não sei. Julguei que estarias com ela. – O ar de surpreendido foi novamente substituído pelo de superioridade trocista. – O patrão quer falar contigo. É para ir já ao gabinete dele.
Por um instante, João esteve para descarregar a sua fúria numas quantas palavras de “apreço” pela atitude que esta abominável criatura fazia questão de exibir, mas conteve-se, virou-lhe simplesmente as costas e dirigiu-se para o gabinete do patrão.
A porta estava aberta e Fernandes estava sentado de costas direitas virado para ela. Aguardava-o.
– Dá-me licença?
O rosto inexpressivo olhava-o de frente, parecendo hesitar antes de responder:
– Entre e feche a porta.
O tom ríspido nunca fora empregue com ele. Os seus sentidos disparavam campainhas de alarme. Obedeceu.
Não foi convidado a sentar e manteve-se de pé, em frente à secretária, sentindo-se um pobre coitado prestes a ser repreendido sem saber por que razão. Ele continuou a olhá-lo, da sua cadeira de braços, almofadada a couro genuíno, como que perguntando-se por onde começar.
– Mandou-me chamar? – João deu o mote.
– Não foi preciso. Você veio de vontade própria. – O tom continuava agressivo mas ao mesmo tempo surpreso. – Não tem nada para me dizer?
– Dizer? - O espanto crescia dentro dele. – Não sei o que se passa. Estou de férias, lembra-se? Vinha procurar a Rute…
– A Rute? . Quer dizer que a sua gaja não falou consigo?
Sentiu o sangue ferver nas veias com o insulto, mas conseguiu controlar-se o suficiente para inquirir:
– Não sei sobre o que se está a falar. A Rute não é a minha gaja, mas sim uma senhora que lhe merece respeito! Agradecia que não falasse dela, desse modo.
– Não costumo respeitar as pessoas que me roubam! – Gritou erguendo-se. – Se me roubam, não me respeitam.
– Roubar? – A voz tremeu-lhe – Não percebo.
– Mas você continua nisso? Faz-se de “sonso”? Está tudo descoberto! O Faria descobriu a “marosca” que vocês os dois estavam a fazer. Faturas falsas, pagamentos a fornecedores inexistentes, o diabo! Este tempo todo a trabalhar para mim e faz-me uma desfeita destas. Só ainda não deu com os ossos na cadeia porque quero acreditar que esta puta lhe deu a volta à cabeça e que antes dela você era um homem honesto.
O coração parecia querer sair-lhe do peito, batendo furiosamente, latejando na garganta, na cabeça, nas mãos…
– Então? – Fernandes insistia ante a falta de resposta dele. – Não tem nada a dizer? Neste momento, o Faria, está a auditar todas as contas dos anos anteriores para verificar há quantos anos isto se passa.
– Não vai encontrar nada… - A voz sumida quase nem se ouvia, enquanto desviava o olhar e desapertava o colarinho que parecia estrangulá-lo.
– Ferreira, ou melhor, João... – Pareceu acalmar-se um pouco enquanto se dirigia para ele e lhe agarrava um braço. – Diga-me que não tem nada a ver com isto. Diga-me que não traiu a minha confiança e que essa cabra nos enganou a todos.
O olhar que deitou ao patrão, com as lágrimas a querer irromper, parecia o de um alucinado. Olhos esbugalhados e vermelhos, pupilas dilatadas e peito arfante. As pernas tremiam-lhe, ameaçando falhar a todo o momento.
– Diga-me. – Implorou mais suave. – Diga-me que não está metido nisto. Chamamos a polícia para que vá atrás dela e tudo voltará a ser como antes.
– A policia não! – Conseguiu rouquejar em voz sumida – Por favor, policia não!. Diga-me onde ela está. Tem que ser um mal-entendido.
Fernandes voltou-lhe as costas e caminhou lentamente até à parede. Aí, após o que pareceram uns segundos de reflexão, olhou-o de frente resmungando:
– Você é mais imbecil do que eu pensava. Deixou que um rabo de saias lhe “comesse” o juízo. Deixou-se pensar com a cabeça errada este tempo todo! Idiota! Vá-se embora da minha vista! Vá procurar a gaja,. ela disse que ia ter consigo. Disse que já não tinham dinheiro para devolver o que roubaram e que se preparavam para sair do país, você e ela. Na hora, só não chamei a polícia por sua causa. Sou tão estúpido, esperava que você desmentisse tudo.
– Não é o que parece… Não pode ser! - Gemeu – Eu vou procurá-la e trago-a cá novamente, tem que haver uma explicação...
– Vá-se embora! – Gritou de novo – Ponha-se a andar da minha vista. Considere o facto de o não mandar prender agora mesmo como uma recompensa pelos anos que me serviu honestamente, penso eu. E vá procurar essa puta. Na minha ideia já está longe há muito. Enganou-nos a ambos. Desapareça da minha vista que eu vou participar isto e depois serão vocês e as autoridades. Rua!!!
Abandonou o gabinete como um sonâmbulo e atravessou o escritório, por entre os ex-colegas, sem nada ver nem ouvir, só conseguindo recuperar as sensações no exterior do edifício.
Corria uma brisa fresca. O ruído dos carros em circulação e das pessoas que passavam atarefadas, trouxe-o de volta à realidade.
Não sabe quantas horas vagueou pelas ruas, mas já era noite quando deu por si à porta de casa. Entrou, atirou-se para cima do sofá e adormeceu profundamente.
Avançar
4ª parte - O fim do mistério |
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2ª parte - Revelações |
Para o início
Rute - Apresentação |
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