Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Na
penumbra da sala o silêncio impunha-se pesadamente apenas interrompido a
espaços pelo crepitar do fogo na lareira.
Lá fora o
vento rugia naquela tempestuosa manhã de Janeiro atirando as gotas de chuva com
força contra a vidraça.
Ele estava afundado
no sofá individual ao pé da lareira com os pés esticados sobre um pequeno banco
e o olhar vidrado fixo perdido sobre o telemóvel que repousava na mesa de
apoio.
O homem, já
nos últimos anos dos quarenta, estava bastante magro e com olheiras profundas
no rosto pálido. Os fios de prata no cabelo ondulavam na luz errática da
fogueira.
Estremeceu
com o súbito toque do telemóvel. Aquela melodia escutada tantas vezes
trouxe-lhe memórias de ocasiões felizes... e outras nem tanto.
No ecrã do
equipamento o rosto sorridente de um homem de cabelos desgrenhados claros. O
nome “Ricardo” piscava ao ritmo da musica.
Após uns
segundos de hesitação, soergueu-se, clicou para atender e encostou o telemóvel
ao ouvido sem falar. Do outro lado uma voz grave e enérgica interpelou:
-
Olá bom dia dorminhoca. Tudo bem?
-
Bom dia... - A resposta foi rouca
e arrastada e do outro lado fez-se um silêncio fruto da surpresa de não ser a
pessoa esperada. - Desculpa, sei que esperavas a Sandra.
-
Hmm, sim. Ela está? - A voz passara de decidida a cautelosa.
-
Não, ela não está. De facto estava mesmo aqui a pensar se deveria ou não
ligar-te.
-
Ligar-me?!? - Havia incredulidade no tom – Mas nós conhecemo-nos?
-
Na verdade não, já agora, eu sou o marido da Sandra, Fernando.
-
Ricardo. - A resposta tardou um pouco – Mas continuo sem perceber...
Um sorriso
cansado perpassou nos seus lábios:
-
Queria ter uma pequena conversa contigo, não te importas que te trate
por tu, pois não?
-
Como disse, não nos conhecemos, mas não, não me importo.
-
É verdade, não nos conhecemos, mas temos uma coisa muito importante em
comum... a minha mulher Sandra.
A afirmação
soou como um tiro que provocou um momento de silêncio nervoso antes de uma
patética tentativa de ganhar tempo:
-
Como? Não estou a perceber.
-
Não adianta negar. - O sorriso alargou-se – Eu sei de tudo. Os encontros
nos motéis, os jantares, os passeios nos jardins... até a conferência há dois
meses atrás em Londres...
Nem o
respirar se escutava no outro extremo da comunicação.
-
… de todas as formas não te posso censurar. Ela é uma mulher muito bela
e inteligentíssima, uma combinação
irresistível.
-
Mas... quando soubeste? - Não adiantava negar.
-
Oh, já sei há muito tempo. Quase que posso dizer desde o início.
-
Não posso crer... e não disseste nem fizeste nada? Há quanto tempo achas
que aconteceu?
-
Deverá fazer dois anos em Março. Estou certo?
O silêncio
do interlocutor consentia.
-
No inicio não me apercebi de nada, claro. Nada pelo menos que me fizesse
suspeitar disto. - Fernando continuou –
Apenas, de repente, a nossa relação morna de um casal da nossa idade com
muitos anos de casamento, tornou-se muito mais ativa sexualmente. Como já não
era há muitos anos. - Limpou uma lágrima que correu no rosto – Ela procurava-me
mais frequentemente e não se negava tantas vezes aos meus “avanços”.
A chuva
parara entretanto e o latido de um cão ouviu-se trazido pelo vento que
amainara.
-
Eu estava feliz, ela estava feliz, como poderia suspeitar? Nem reparava
nas frequentes trocas de SMS, no falar mais baixo ao telemóvel em algumas
circunstancias... estava cego.
O suspiro
que se seguiu saiu mais audível do que pretendera:
-
Até que um dia, ao chegar a casa mais tarde que eu e a tirar as coisas
da carteira, vi que trazia amarrotado um pano negro... onde consegui divisar as
rendas. Mesmo através da sua atrapalhação fiquei sem qualquer dúvida que
trazia, amarrotadas na carteira as calcinhas que vestira naquela manhã...
Porque traria ela as calcinhas na carteira? Porque as tiraria?
-
Poderiam haver outros motivos para além de... - Ricardo tentou ajudar.
-
Pois poderia. Por isso não poderia ficar com a duvida. Ela disfarçou e
escondeu... e eu fingi não ter reparado.
-
Ela deve ter pensado que não viste...
-
Mas vi. E andei louco de dor e confusão por uns dias atento a todos os
seus movimentos, atitudes e horários... cada vez se aprofundavam mais as minhas
suspeitas. Até que um dia à hora do almoço fui para a rua em frente à escola
onde ela trabalha e esperei. Não tardou que a visse... e te visse com ela.
-
Sim, almoçamos muitas vezes juntos.
-
Para saber a extensão “do problema” contratei uma pessoa para a seguir
durante uma semana e dar-me um relatório; fiquei a saber mais do que o que
queria, o relatório era extenso o suficiente para incluir fotos, horários, os
motéis e restaurantes que frequentavam e a altura aproximada em que começaram a
ser vistos juntos. Um bom trabalho em suma.
-
Nunca nos apercebemos de nada...
-
Como eu disse, um bom trabalho. Mas o que me deixava louco era a sua
naturalidade, a facilidade e o prazer com que fazíamos amor, a sua vontade e
carinho. Parecia que continuava apaixonada por mim...
-
E continua. Ela disse-mo várias vezes. Sempre que lhe pedia para te
deixar e vir viver comigo. Nunca o quis, dizia que te amava demais para poder
viver sem ti e que o que existia entre nós era uma paixão que ela esperava que
passasse um dia.
Foi a vez de
Fernando ficar em silêncio por uns minutos. Ambos os homens calados a escutar a
respiração do outro através do telemóvel.
-
Por fim acabei por me conformar. - Retomou a narrativa. - Aceitei que
ela seria discreta o suficiente para me envergonhar e aceitei que deveria
apreciar cada minuto da sua atenção, cada beijo e cada carícia como dádivas que
poderia perder a qualquer momento.
-
Foi precisa muita coragem para uma decisão dessas.
-
Não não foi. Muita covardia isso sim, medo de ficar sem ela, sem a
mulher que amo. Medo que se fosse e não tornasse mais. A vida sem ela seria
insuportável. Mas nos últimos tempos é assim que tem sido mesmo com ela,
insuportável.
-
Daí esta chamada. - Ricardo concluiu – Concluíste que não consegues
viver assim e vens pedir-me que me afaste.
-
Falo-ias?
-
Se isso for o melhor para ela... sim. Também vou sofrer imenso. Deixei a
minha mulher há uns meses porque achei que facilitaria a decisão da Sandra mas
ainda não lhe disse.
-
Temes pressiona-la?
-
Sim, ela é adorável mas sob pressão é imprevisível. - Sentiu-se o
sorriso na voz.
-
Consigo perceber que também a amas, não se trata apenas de um caso.
-
Não, não é. Desde o início, desde o primeiro riso, as primeiras
palavras, fiquei completamente preso a ela. Julgava que depois de uma certa
idade já não era possível uma paixão com tal intensidade.
-
E aqui estamos nós os dois... apaixonados pela mesma mulher.
-
Não tenho coragem de continuar a fazer-te o mal que temos andado a
fazer. Até aqui achava que não sabias...
-
Que era um corno feliz...?
-
Não, nunca pensamos, pensei, em ti nesses termos. Eras apenas o outro
que a impedia de vir para mim de vez.
-
Agora não interessa mais, não vale a pena estarmos a discutir sobre
isto.
-
Que se passa? Zangaram-se? - O tom de voz não conseguia disfarçar a
esperança.
As lágrimas
corriam agora livremente pelo rosto de Fernando.
-
Não, caro amigo, a Sandra teve um acidente de automóvel esta noite
quando regressava de tua casa. Faleceu de madrugada no hospital... O funeral é
às 9h de amanhã e o corpo encontra-se na capela do hospital. Se quiseres podes
aparecer... todas as pessoas que a amavam são bem-vindas.