segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Uma Casa nas Ruas - 1ª parte

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


OPORTUNISTA


Xico acordou com o barulho dos tapetes a ser sacudidos. Não se mexeu. Deixou-se ficar encolhido, a ouvir a dona Amélia, a mulher da limpeza, a dar os bons dias à colega do prédio ao lado. Não tardava, viria meter-se com ele. Não se interessou e afundou-se ainda mais nos cobertores, escondendo a cabeça entre os cartões que o protegiam do frio daquela manhã de março.
Senhor Xico! Ò senhor Xico, acorde! — A estridente voz feminina estava agora junto dele.
Que foi? — Fingiu-se desentendido, sem sair da proteção dos cobertores.
Não lhe pedi já que saísse daqui antes das 8:30h? Não tarda nada, começa a chegar o pessoal e os clientes e dá mau aspeto estar aí a dormir. Vamos, levante-se! Oh, valha-me Deus, que cheiro! - Ela fez uma expressão de repulsa, assim que o olfato denunciou a “habilidade”. — Voltou a urinar ao pé da porta! Assim não pode ser, vou fazer queixa ao patrão e não volta a dormir aqui!
Ele colocou a cabeça para fora dos cartões. O cabelo negro, despenteado e sujo, formava uma juba em volta do rosto pálido, de barba desgrenhada, que olhou a mulher com cara de poucos amigos.
Não fui eu! — Desculpou-se. — Não vi quem foi, deve ter sido enquanto estava a dormir. Na certa foi o cão do Zé.
A urina de cão não cheira assim tão mal! — Amélia, cinquentona maternal, não se deixava enganar com facilidade. — Vocês são uns porcos! Vêm dormir para aqui e ainda deixam tudo sujo e malcheiroso. Já há umas semanas que o tenho deixado dormir aí, mas você não liga, quando lhe digo que tem que se levantar antes de eu chegar. Assim não pode ser!
Eh pá! Largue-me da mão! — Ele ergueu-se contrariado e começou a dobrar os cartões e os cobertores por entre resmungos.
Agora não tenho tempo de limpar o átrio todo, antes deles chegarem, está a ver o que me arranja? — Ela continuava. — Já na semana passada, uma das senhoras do escritório, escorregou e por um pouco não caiu,  por o chão ainda estar molhado quando eles chegaram. Não se admite, parece que faz pouco das pessoas! 
Já disse que me deixe! — Xico aproximou-se ameaçadoramente da mulher, com o fardo dos  parcos pertences debaixo do braço. — Não disse já o que tinha a dizer? Cale-se, raios a partam!
Amélia deu um passo atrás entre o surpreendida e o enojada, com o hálito do homem, que quase encostou os narizes de ambos.
Ora vejam só! — Ela recuperou rapidamente, assim que ele lhe virou as costas. — Não tem onde cair morto, aqui a dormir pelos umbrais das portas e ainda é malcriado! Não volto a trazer-lhe mais nada para comer.
Pró diabo que a carregue... — Xico resmungou de si para si, enquanto saía, da arcada de acesso aos escritórios, para a rua movimentada. — … os iogurtes estavam fora do prazo e o pão era da véspera!
E não volte a aparecer aqui! Se o vir por aqui outra vez, chamo a polícia! — Ela continuava a gritar do interior. — Ouviu, seu mal agradecido? A polícia!
Aborrecido, caminhou pelo passeio, a espreitar as montras e parou em frente ao quiosque, a ler os cabeçalhos dos jornais. A data chamou-lhe a atenção; sexta-feira 13 de março. “Tá-se mesmo a ver, começou bem!” resmungou para consigo enquanto pegava num dos diários.
Ó Xico! — Chamou o homem atrás do balcão. —  Já te disse que se queres ler o jornal, tens que o comprar!
Eh pá! Está bem! Estava só a ver “as gordas”!  — Desculpou-se largando o jornal.
Virou as costas e atravessou a rua, preguiçosa e despudoradamente, enquanto ignorava os condutores a reduzir velocidade e buzinar protestos.
Espreitou para a entrada da loja abandonada, onde dormia o “Barbas”. Conseguia ver o rasto de papeis e plásticos abandonados que conduziam ao “covil”, na escuridão.
Ó Barbas! - Chamou Xico. - Estás aí?
Um grunhido fraco foi a resposta. Avançou, receoso, para a penumbra.
O Barbas jazia num emaranhado de cobertores, arfante e tremendo de frio. Cabelo e barba completamente brancos, rosto talhado em madeira, assente num corpo esquelético, ninguém sabia que idade tinha… nem ele. O ancião ergueu uma mão, que mais parecia uma garra, pedindo ajuda em gemidos arfados.
Xico baixou-se ao lado dele e pousou-lhe a mão na testa:
Eh, pá, que estás a “arder”!
Chama… chama o médico! — Conseguiu finalmente articular o velho.
Espera, que já volto!
Correu de volta ao quiosque e dirigiu-se ao homem do balcão:
Senhor João! Chame uma ambulância para o Barbas, acho que ele está muito mal!
Raios partam! — Resmungou o homem, pegando no telefone. — Agora passa a vida nisto! Depois eu que me amanhe com os gajos da assistência social a vir aqui dar-me novidades e fazer-me perguntas! Julgam que o velho é meu pai, ou o caraças!
Depois mande-os lá dentro, eu vou só buscar as minhas coisas e vou à minha vida.
Tu é que devias ficar com ele e dar as informações!
Sim, sim, — Ripostou Xico jocosamente. — Deus lhe agradecerá, se não for neste mundo, ao menos no outro.
Vai à m…! — João irritou-se.
Que mau feitio! — O outro riu-se, voltando-lhe as costas.
Atravessou de novo a rua e voltou ao recanto infeto onde o “colega” jazia. Agora parecia dormir, estaria morto? Tornou a pousar-lhe a mão na testa e obteve novo gemido fraco.
Olhou em volta, pelos objetos espalhados em redor do moribundo. Os pertences de uma vida, que mais não eram do que montes de roupas, cartões, garrafas de plástico e velhos eletrodomésticos com variados graus de destruição. Pegou no casaco e começou a revirar-lhe os bolsos; um maço de cigarros com dois cigarros inteiros, uma nota de cinco euros e quatro botões de plástico de tamanhos variados. Deitou os botões ao chão e guardou a nota e os cigarros. Apalpou-lhe o rolo que fazia de travesseiro, de onde tirou um saco de pano com umas dúzias de moedas e remexeu-lhe nos bolsos das calças onde achou um pequeno papel. Procurando a luz que se escoava da porta, acabou por identificar que se tratava de uma aposta do Euromilhões; 3, 5, 13, 16, 31, 32 e as estrelas 3 e 5. “A coisa promete” - Comentou para consigo. - “Nasci a 3 de maio e tenho aqui a data duas vezes; hoje é dia 13 e este ano passo de 31 para 32 anos. Este talão tem tudo para ser premiado.” Guardou-o no bolso do casaco, pegou nas sua próprias tralhas e saiu do covil, depois de deitar um último olhar ao velho, que respirava de forma entrecortada.
Caminhou pela rua que era a sua casa e, chegado ao “prédio dos cafés”, como lhe chamava, pousou as tralhas junto a uma das colunas da extensa colunata que albergava diversas esplanadas. Sempre com atenção aos empregados, passou pelo meio das mesas, surrupiando um palito de torrada ou um pastel trincado que alguém deixara abandonado. Sempre que o empregado reparava nele, desviava o seu caminho e dirigia-se rapidamente para fora da área da esplanada, antes que o expulsassem.
Na última das esplanadas, o empregado acabava de entrar no café e ele pôde explorar as mesas com mais cuidado. Numa delas, estavam quatro moedas de euro, que desapareceram imediatamente nos bolsos do vagabundo. Uma mulher,  sentada na mesa em frente, deitou-lhe um olhar desaprovador e ele, aproximando-se, fez um sinal ameaçador de silêncio, antes de se ir embora apressado.   
Já de novo com os seus pertences, chegou a um portão de madeira, semi derrubado, que empurrou. Entrou no que restava de uma antiga “ilha”, com um pátio enorme, totalmente rodeado por casas que agora não eram mais do que portas e janelas escancaradas por onde espreitavam silvados. Era a “casa” que partilhava com o Manel Passarão, desde que este fugira do Hospital Magalhães Lemos.


*** Fim da 1ª parte ***



Sinopse e Apresentação
Parte 2 - Pouca Sorte
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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Uma Casa nas Ruas - Publicado no blogue "Memórias e Outras Coisas"



A vida nas ruas não é fácil e Xico sabe isso melhor que ninguém. Dormindo entre, umbrais de porta, vãos de ponte ou casas abandonadas, ele existe, sem abrigo, nas ruas do Porto. Tem amigos e inimigos, frequentemente aproveita-se de uns e vive inevitavelmente a fugir dos outros.
Por vezes covarde, muitas vezes marginal, quantas vezes amigo, ele vai ter de decidir se quer manter-se nas ruas ou procurar o seu destino noutro lado... quem sabe até, na sua própria origem.
Não deixe de ler mais este conto que irá ser publicado em vários capítulos, um por semana, a começar na próxima segunda feira dia 26 de Fevereiro de 2018  no blogue "Memórias... e Outras Coisas, Bragança" dando continuidade a uma agradável parceria. Pode acompanhar os episódios neste meu blogue clicando nas imagens correspondentes a cada um dos episódios:
1-Oportunista
2-Pouca Sorte
3-Ausencia Forçada
4-O Céu dos Pássaros
5-O Regresso
6-Começar do zero
7-Criar Raízes 
8-Karma
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sábado, 3 de fevereiro de 2018

Na Pele do Lobo - Parte V - Final


EM FUGA



A noite tomara definitivamente conta do mundo e os dois monges avançavam com dificuldade pela estrada milenar, que ameaçava ser invadida pela floresta em alguns sítios onde começava a esboroar-se. A única luz que tinham, eram uns pequenos raios de luar que iluminavam fracamente através das copas das árvores. 
Que achais que se passou ali, irmão? — A voz de David, tremula de emoção e esforço, fez-se ouvir quase num sussurro.
Creio que o abade já suspeitava do que se estava a passar, mas não esperava que fosse tão grave. Ele bem referiu que era uma coincidência “do maldito” o facto da aldeia ser dedicada a São Cristóvão. — Também o outro denunciava esforço ao falar.
São Cristóvão?!? Que tem isso a ver com homens que se devoram?
Não só que se devoram, mas que se transformam… dizem escritos muito antigos que São Cristóvão era um ser com cabeça de cão.
Bendito seja Deus! — O monge benzeu-se. — Como se pode crer em tal coisa?
Antes de conhecer Nosso Senhor Jesus Cristo, São Cristóvão não só tinha cabeça de cão, como comia carne humana; era um Cynocephalus. Quando se converteu recebeu a forma humana como recompensa.
Agora me lembro! — Os olhos de David brilhavam e pareciam saltar das órbitas, no escuro. — Sim, agora me lembro de ler sobre os Cynocephalus, mas nunca associei a este santo…
Como o abade pensava, esta peste é contagiosa e espalha-se como fogo na palha, temos que nos precaver e alertar todas as terras em volta. Assim que se comerem uns aos outros, passará, mas teremos que impedir que alastre. — Lágrimas correram do olhos de Simão. — A minha fé não foi suficiente para exorcizar aquele mau espírito e não temos tempo para o fazer a qualquer deles, antes que nos devore.
O resto do caminho foi num silêncio pesado, só interrompido pelo arfar dos dois monges, mas começavam a temer falhar o carreiro onde deviam abandonar a calçada e tomar a direção do mosteiro. Por fim, divisaram o que parecia um saco, mas depois acabaram por perceber que era um corpo deitado na estrada. Logo ao lado iniciava-se o trilho que deviam seguir.

*** *** ***
Irmão João! Irmão, que tendes? Aqui deitado no meio da estrada sujeito a ser pisoteado por algum cavalo! — A voz de frei Simão chegava de longe e arrancava-o lentamente do torpor em que se encontrava. — Estais ferido? Isto é sangue? — Ele tentou ver no escuro o liquido viscoso com que empapara as mãos ao ajudar o companheiro.
Onde está o irmão Tiago? — Quis saber David olhando em volta e embrenhando-se no mato que ladeava o trilho.
Não sei. — João arrastava uma voz distorcida e estranha, enquanto se tentava erguer. — Ele deixou-me descansar um pouco. — Ato contínuo, vomitou copiosamente no espaço entre eles. 
Simão largou-o e deu um passo atrás entre o surpreendido e o enjoado. Olhou as mãos sujas à luz da lua e os restos expulsos pelo monge. Grossas gotas de transpiração correram-lhe na fronte quando olhou o João, de novo de joelhos e depois para além dele, numa expressão de puro pânico.
Foge, irmão!!!! — Gritou Simão a plenos pulmões, repentinamente, fazendo gelar o sangue nas veias de João e David.
Tão depressa gritou como se lançou numa corrida na direção do convento, deixando os dois companheiros para trás. David, saiu do meio do matagal e deitou a correr atrás dele, mas tropeçou de imediato em algo volumoso que rebolou entre os seus pés. Conseguiu distinguir no escuro um corpo envergando as vestes de monge. O rosto quase tinha desaparecido, restando os ossos expostos da face com o sorriso eterno da morte. Gritou histérico e relançou-se na corrida atrás do outro.
João, completamente trôpego, correu desajeitadamente atrás dos dois, que lhe ganhavam distância rapidamente. Em pânico, sem parar, tentou olhar para trás para perceber  o que os perseguia e caiu desamparado no meio das silvas que ladeavam o trilho.
Ergueu-se novamente e reiniciou a corrida, se é que se podia chamar corrida às grotescas passadas que dava. Sentia-se tonto e enjoado, a vista fugia-lhe e acabou por apagar-se.

*** *** ***

Sonhava com lobos e via focinhos de presas ensanguentadas, garras que rasgavam carne... e tristeza, tanta tristeza...
O senhor seja louvado, irmão João! — A voz de Félix chegava-lhe difusa, mas transmitia-lhe conforto e calma. Chorou mansamente enquanto sentia dores excruciantes em todo o corpo. — Que fazeis aqui? Onde estão os outros? Valha-nos Deus, está todo ferido e ensanguentado! Acudam aqui, irmãos. Oh valha-nos o Salvador, como ele está!
Sentiu-se erguido no ar e transportado. Assim embalado,  incapaz de responder, entregou-se ao torpor e perdeu o conhecimento novamente.

*** *** ***

Havia paz… não sentia o tecido grosseiro do hábito junto ao corpo. A respiração estava calma, mas não se conseguia mover nem abrir os olhos, como se o seu corpo não lhe obedecesse. De novo lhe chegavam as vozes quase indistintas que sussurravam. Ele escutava como se fosse apenas um ouvinte a quem não interessava a conversa.
De certeza que não havia mais ninguém? Até onde foram?
Quase até à estrada romana, reverendíssimo abade.
Nada, nada? — Mateus insistiu.
Não senhor, há vestígios de sangue em vários sítios, mas supomos que sejam do irmão João. Não sabemos como se feriu desta maneira e não sei como consegue estar vivo, depois de perder tanto sangue. Já reparou bem no rosto dele, cheio de hematomas? Está tão deformado que quase não o reconhecia.
Mas e os outros que foram convosco, irmão Félix?
Como eu e o irmão Marcos trouxemos João numa padiola, os outros seguiram em frente.
O que quer que atacou o irmão João, deve ter atacado também os outros. Valha-me Deus e anda pela floresta às soltas! — O abade gemeu. — Ele deve ser o único sobrevivente. Depressa, tendes que ir em busca dos nossos irmãos, que regressem rápido, os outros devem estar mortos! Ide-vos, via! Faltam poucas horas para anoitecer, levai todos os que puderdes e armai-vos, nem que seja com as facas das cozinhas!
Tudo sossegou novamente e João retomou o seu sono.

*** *** ***

Acordou. Abriu os olhos e comprovou que estava na sua cela. Já era noite, estaria completamente escuro, não fosse uma pequena vela pousada na mesa que usava para ler.
Soergueu-se e rosnou com dores no corpo, mas mesmo assim sentia-se cheio de energia. Esfregou os olhos e achou a pele muito sedosa. Olhou as mãos escuras e enclavinhadas. Ergueu-se cambaleante.
Do pequeno postigo que dava para o pátio chegavam-lhe as vozes dos irmãos:
Encontramos Simão, Tiago e David!!! Estão todos em bocados meio devorados!
Onde está João? Tiago tinha o capuz dele na mão!
Doía-lhe a boca, parecia que os dentes não cabiam lá. Aproximou-se da bacia de cobre, ao pé da vela, para lavar o rosto e estacou ao olhar as mãos castanhas cobertas de pelo sedoso e olhou para a água que ondulava no recipiente; era a cabeça de um lobo que o olhava no reflexo.





** FIM **


Parte IV - São Cristóvão da Chã


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