Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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— Sim, ouviu bem. Peço desculpa! — Humberto mostrava-se verdadeiramente contristado a falar com o Inácio, quando se encontraram casualmente ao sair do bloco de apartamentos onde ambos residiam. — Por toda a razão do mundo que
eu pudesse ter, nada me dava o direito de falar consigo da forma como falei.
Ele estava consciente da expressão apatetada de Inácio, de quem
era vizinho vai para dez anos, que não sabia como reagir a esta sua nova atitude
completamente discordante da que sempre lhe conhecera.
Como a maior parte
dos habitantes de prédios, conheciam-se mais ou menos superficialmente, fruto de
contactos esporádicos em reuniões de condomínio, ou na frequência das áreas
comuns do edifício, como as garagens, átrios, escadas ou elevadores. A relação entre
ambos, porém, sempre fora tensa e desagradável, devido ao péssimo feitio de
Humberto, que explodia ao mínimo contratempo e partia para o insulto pessoal e
a ameaça física. Não era, de resto, apenas com Inácio esta atitude, a fama dele
alargava-se a todo o bloco… e à maior parte dos locais frequentados por ele.
— Mas que se passa consigo? — Interrogou o baixo e anafado
vizinho, entre o receoso e o divertido. — Está doente? Alguma doença em fase
terminal?
— Não, Graças a Deus que não… penso eu. — Humberto sorriu,
para maior espanto do interlocutor. — Apenas estou a pôr a mão na consciência e
a perceber que não tenho agido bem consigo estes anos todos e, principalmente ontem,
quando discutimos por causa do seu cão a ladrar no corredor quando você entrava
em casa. O barulho incomoda-me e peço-lhe por favor que evite que o animal o faça
naquele local onde ecoa imenso. Tenha um bom dia.
Com estas palavras, voltou-lhe as costas e caminhou pelo
passeio, deixando o vizinho olhando-o assombrado, segurando a porta da entrada
com uma mão e o saco de papel da padaria na outra.
Humberto tinha consciência do seu péssimo feitio e muitas
das vezes arrependia-se, algumas horas depois, das coisas que dizia ou fazia. Mas
o simples relembrar da situação, trazia de volta o azedume e acabava por rematar
com um sentenciador “Foi-lhe bem feita!”
Não era nenhum “hércules”. Nos seus quarenta e muitos anos,
sempre fora magro, alto e seco de carnes; era a violência latente nas suas
palavras e gestos, aliada à transfiguração instantânea de uma pessoa educada
noutra sem qualquer filtro, que surpreendia e deixava sem reação as “suas
vítimas”. Não poucas vezes, se vira envolvido em trocas de socos com alguns
objetos da sua raiva, menos preparados ou educados, ou que simplesmente não
aceitaram ser desaforados de ânimo leve. A coisa resolvia-se em poucos segundos;
ou ficava-se, ou os presentes envolviam-se e separavam os contendores,
permitindo-lhe manter a face (intacta).
A sua existência decorria num mundo onde as pessoas pareciam
fazer fila para o desfeitear, desprezar, ou simplesmente aborrecer e ele fazia
questão de se manifestar ruidosa e odiosamente, sempre que tal acontecia. Mesmo
no emprego, a maior parte dos colegas de trabalho, temiam-no ou evitavam-no, apesar
de lhe reconhecerem a diligência e eficiência profissionais. A grande exceção
era Lucília, sua mulher, que conhecera nesse mesmo emprego e com quem
casara, rendido aos seus encantos e à surpreendente capacidade de dulcificar o
seu comportamento. Apenas a ela aquiescia quando censurado e só a ela
reconhecia o seu problema. Após a violenta discussão com Inácio na noite
anterior, Lucília, cansada e envergonhada dos problemas com os vizinhos, repreendeu-o
asperamente e apresentou-lhe um ultimato: Ou ele mudava de atitude, ou ela mudava
de casa… sozinha.
Humberto não conseguia conceber a sua existência de regresso
à solidão dos tempos antes dela. Quando discutia no emprego, bastava um
vislumbre da sua presença, para que o possante dragão que cuspia fogo pelas
ventas, se transformasse num dócil cordeiro, ou no mais cordial dos colegas de
trabalho. Quando regressava a casa, era como se saísse de um túnel quente, escuro
e sujo e entrasse num imenso vale ensolarado, fresco e florido. A sua “fada do
lar” recebia-o com o “solvente de mau-humor” que só ela possuía. Por isso, decidiu
que aquele dia seria o primeiro do resto da sua vida mais tolerante e afável.
Envolvido nessas doces vibrações, sonhava acordado com a
admiração e alegria que esperava ver mais logo nos belos olhos da sua doce
Lucília. Ignorou de forma estoica o buzinar insolente do camionista quando se
demorou a atravessar a passadeira, não resmungou, como sempre fazia, pelo ruído
das motos e deu os bons dias a muitos dos conhecidos, alguns dos quais se
imobilizaram no passeio, para confirmar se tinham ouvido bem.
No Pão Quente, não se incomodou pelo facto do funcionário ter
atendido primeiro os que estavam sentados, nem por ter três outros clientes à
sua frente. Quando chegou à sua vez, sorriu e saudou o empregado, deixando-o
ainda mais nervoso e confundido. Quando este pousou o saco de papel com o seu
pedido em cima do balcão, um dos pães rodou para o tampo de granito e ele colocou-o
rapidamente de volta à embalagem. Humberto estremeceu e arregalou os olhos,
corou, mas controlou-se e expeliu ruidosamente o ar do peito.
— Meu caro. — Avisou apaziguadoramente para o jovem
funcionário que parara de respirar, pois percebia ter cometido uma falta, embora
não soubesse ainda qual. — Esse pãozinho, rolou num balcão duvidosamente limpo
e você apanhou-o com a sua mãozinha descuidada, pois a luva ficou ali em cima
da prateleira. Importa-se de o substituir?
Como um foguete e
quase em pânico, o rapaz calçou a luva de plástico, pegou novo pão da caixa e
trocou-o pelo “conspurcado”. O sorriso condescendente de Humberto estremeceu e
desmoronou-se quando, o solícito funcionário, arremessou a unidade recusada para
a caixa onde se encontravam os restantes pães para venda.
“Lembra-te, este é o primeiro dia de uma nova vida!”
Humberto recomendou para si próprio, quando virou as costas ao balcão onde
deixara as moedas para pagamento, sem agradecer nem se despedir. “Pelo menos aquele
pão já não será para mim.”
Regressou a casa, satisfeito consigo mesmo, enquanto
contornava alguns dejetos canídeos abandonados no passeio. Evitou os seus comentários
a meia voz contra os amantes de animais, porcos, ignorantes e menos
inteligentes que o seu animal de estimação. Não insultou a criança que quase o
atropelou com a bicicleta nem se sentiu incomodado com o cão que o veio farejar,
no limite da trela do dono.
Estava realmente um belo dia de primavera, com sol e uma
temperatura amena, os pássaros chilreavam nos fios elétricos e nos beirais dos
telhados. Tudo para ser feliz, não percebia como podia estar sempre zangado.
Em frente à porta de entrada, com o saco do pão debaixo do
braço enquanto procurava a chave no bolso, recebeu sobre o ombro os generosos
dejetos de uma das pombas, “que a estúpida da velha do quinto esquerdo insistia
em alimentar”. Algumas pingas, perante o olhar escandalizado dele, caíram sobre
os alimentos.
Simultaneamente, a porta do prédio abriu-se e de forma
intempestiva, Inácio saiu, arrastado pelo enorme e trapalhão Retriever que
possuía, quase derrubando Humberto. O saco de papel estatelou-se no chão; pães
rolaram pelo passeio em todas as direções.
— Grandessíssima besta! — Explodiu Humberto, descontrolado,
apontando o indicador espetado diretamente aos olhos do outro. — Que tens nessa
cabeça de balofo gorduroso? Não sabes controlar o “cavalo”? Em qual das pontas
da trela está o animal inteligente? Devia de te rebentar essas fuças!