sábado, 12 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quarta parte - O Plano B

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;

E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.

 

Versículos 21, 22 e 23 do livro do Génesis

 

O fracasso dos três emissários em fazer regressar Lilian era embaraçador e só deixara o Criador ainda mais frustrado: não era possível que aquela mortal tivesse a audácia de desobedecer. O facto de a terem amaldiçoado, em nada contribuía para o Seu objetivo e era apenas uma vingança mesquinha, por despeito.

O livre arbítrio era uma coisa complicada, nem os anjos tinham tanta liberdade; podiam tomar decisões independentes e enveredar por este ou aquele caminho, mas apenas na ausência de uma ordem direta. Como poderia lidar com uma criatura que mentia e omitia sem qualquer pejo e recusava-se a cumprir o que lhe ordenavam?

Chegava à conclusão que fora um erro ter criado Adam e Lilian da mesma forma. Inexplicavelmente, embora partilhassem ambos dos mesmos elementos, da mesma inteligência, curiosidade e vontade de aprender, o homem mostrou-se mais submisso e obediente do que a mulher. É verdade que ele tentou sobrepor-se a ela desde o primeiro dia e desde essa altura ela mostrou-se insubmissa exigindo igualdade ao companheiro.

Estava decidido. Teria de arranjar nova mulher para Adam, uma mais ligada a ele, dependente e que não o desafiasse.

Quando o homem dormia, o Criador extraiu uma das suas costelas que misturou no caldo de terra, fogo, ar e água com que formou a nova mulher. Uma vez mais era uma criatura belíssima, mas desta feita com cabelo escuro e olhos castanhos. Segredou ao ouvido da concha vazia as palavras que lhe davam a vida e ela estremeceu, animou-se e sorriu ao Pai.

Chamou-lhe Rrava[1], que quer dizer vida, seria aquela que daria a vida à humanidade, a partir de Adam, que quer dizer terra[2]. Era aquela a segunda mulher do paraíso e desejou que o seu nome fosse menos enganador ou suscetível a deceções como sucedera com Lilian, que significa pura, inocente[3]. Agora queria esquecê-la e começar de novo.

Na mente do Criador, digladiavam-se agora várias fugas no segredo da existência do seu projeto; o escândalo à volta da fuga de Lilian, o facto de ela poder revelar coisas como a localização, o desconhecimento de quem fora o insidioso velhaco causador da sua fuga. Precisava de mais segurança e isso implicava envolver mais elementos; dois querubins, empunhando as suas espadas flamejantes, foram invocados para a segurança do jardim.

A paz voltou então ao paraíso. Rrava, que proveio de Adam, partilhava da sua simplicidade, sendo a sua curiosidade mais pura e menos insaciável. Ambos se quedavam fascinados a escutar o canto cristalino do rio nas pedras, o sussurrar do vento nos ramos das árvores, ou mesmo a conversar com os outros animais, que Lilian achava tão limitados.

O Criador voltara aos Seus ensinamentos, falando-lhes da Sua Criação, de como tudo se interligava, preparando-os para o dia os tiraria da segurança do jardim e esvaziaria a Terra de todas as aberrações que a conspurcavam.

Ele não interferia, mas olhava com preocupação para o que acontecia para lá dos muros invisíveis do Jardim do Éden. Os humanos selvagens, para além das suas limitações em termos de força e tamanho, conseguiam sobrepor-se a outros seres mais possantes. Derrotavam centauros, gigantes e ogres, ainda que com grandes perdas. Os outros deuses pareciam desinteressados em proteger as suas criações, ou haviam resolvido deixar os selvagens à sua vontade, na luta pela sobrevivência. A sua tenacidade e inteligência acabavam por compensar a falta de força da espécie humana. Alguns pequenos agrupamentos de casas de adobe tonavam-se aldeias à medida que mais casas iam sendo construídas para albergar a população que crescia.

Nunca fora intenção do Criador que os humanos dominassem o fogo, ou utilizassem os ossos dos animais que matavam para fazerem armas e as suas peles para vestuário, mas reconhecia que, se assim não fosse, não teriam nenhuma hipótese contra as outras espécies criadas para os exterminar. O equilíbrio natural era quase perfeito e, nesse aspeto concordava com as vozes contra a criação dos humanos, eles eram uma rotura nesse equilíbrio. O animal-inteligente, ao contrário do animal-força-bruta,, estaria predestinado ao sucesso. Nada de répteis gigantescos, desajeitados e brutos como aqueles que povoavam a Terra na primeira fase… ainda bem que acabara com praticamente todos, ou quase, os que restaram desapareceriam com o tempo. Chegara à conclusão que detestava cobras e lagartos.

O ser humano era o mais próximo que podia existir da face mais frágil dos anjos, que Ele amava profundamente. Como estes últimos eram imortais e tinham em si um demónio furioso, removeu na sua criação a capacidade de se transformar, ficar invisível ou incorpóreo, deu-lhes, contudo, a capacidade de questionar e tomar decisões de moto próprio. O ser humano não se sentiria compelido a seguir as ordens do Criador, se tal não pretendesse, mas também o seu tempo de vida seria finito, se algum deles Lhe desagradasse, bastaria ignorá-lo até que chegasse ao fim dos seus dias… embora por vezes a Sua Infinita Paciência se esgotasse e mandasse Samael acabar com ele, ou eles. Sabia que o arcanjo nem sempre cumpria a totalidade das missões e a sua compaixão acabava por deixar vivos alguns elementos dispersos das tribos que fora incumbido de eliminar até à última alma, mas não se importava, também Ele sofria por mandar castigar os Seus filhos.

Lilian estava agora também a testar a Divina Paciência e a desafiar as Suas ordens. Ignorá-la, seria fácil e apenas teria de esperar algumas centenas de anos até que ela envelhecesse e morresse, para Ele seria o mesmo que uns minutos na escala temporal divina. A simples existência dela, porém, incomodava-o e prejudicava a sua atenção ao projeto. Quem sabe se não mandaria Samael visitá-la para eliminar o problema.

Também não pretendia, assim que os dois humanos do Seu jardim estivessem prontos, deixar vivos os outros, cheios de vícios e maldade no coração cultivados nas constantes lutas pela sobrevivência. O Seu jardim produziria aqueles que iriam povoar o mundo; humanos e outros animais a coexistirem livremente. A Terra teria de ser um lugar de paz e concórdia, para isso, sofreria uma purga quase total. O próximo evento de extermínio seria para apagar da face do planeta todos os seres com algum nível de inteligência, que não estivessem sob o seu controlo e não fossem da Sua Própria Criação.



[1] Eva em hebraico é Chava, que deriva da palavra "vida". CH em hebraico tem o som de RR, logo Chava = Rrava.

[2] Adão em hebraico é adam. Assim ele se chama, pois a Torá nos conta que Deus tirou-o da terra, que significa adamá em hebraico. Com esse mesmo radical temos a cor vermelha, adom que pressupõe que a terra era vermelha como o barro. Todos somos descendentes de Adão, por isso ser humano é ben adam, que literalmente significa filho de Adão.

https://www.hebraicosimples.com/post/nomes-b%C3%ADblicos-significado-em-hebraico

[3] Como este texto trata-se de uma adaptação livre do Génesis, assumi que Lilith, a existir, não se chamaria assim, terá tido um nome hebraico, daí ter escolhido Lilian (porque não?). Só terá começado a ser chamada de Lilith mais tarde, associando-a ao demónio feminino Liliu da Mesopotâmia.

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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Maldição de Calígula

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Caio Júlio César Augusto Germânico, ou Caio César, ficaria conhecido na história como Calígula, que significa "botinhas", como lhe chamavam os legionários comandados por seu pai, quando criança e usava as cáligas (sandálias militares) nos pés.

Estava-se em 32 D.C. e Calígula, ou Caio César, como era chamado, encontrava-se com o seu tio-avô, o imperador Tibério, voluntariamente exilado na ilha de Capri.

Nos últimos anos, após a morte do filho, Druso, O Jovem, Tibério mudara-se para a ilha de Capri e desinteressara-se completamente da política, entregando-se a atos de sadomasoquismo, pedofilia e outras perversões sexuais. A governação do império ficou praticamente entregue a Lúcio Élio Sejano, que governou aumentando o seu pecúlio e o dos seus próximos, enquanto foi fazendo desaparecer a maioria dos opositores.

Apesar de ser o herdeiro de Tibério, Calígula sabia estar completamente dependente dos caprichos do soberano; como a sua mãe e os seus irmãos, a qualquer momento poderia sofrer um trágico acidente que lhe tirasse a vida.

Foi neste ambiente que ele foi abordado por uma bela e escultural mulher, a rondar os trinta anos, de longos cabelos vermelhos e olhos verdes, que disse chamar-se Dinah e ser da Judeia. Ele reconheceu-a como uma das muitas meretrizes que frequentavam as orgias de Tibério.

Ela mostrou-lhe uma caixa de madeira trabalhada, aparentando ser muito antiga. Dentro, residiam duas soberbas estatuetas em madeira, esculpidas na perfeição; representavam um demónio masculino e outro feminino. Explicou-lhe que aquele objeto tem passado pelas mãos dos homens mais importantes de Roma e o seu poder pode fazer dele o próximo imperador.

Calígula, suspeitando que estava perante uma armadilha de Tibério, ou de alguém para o fazer cair em desgraça perante ele, disse-lhe que se fosse embora, ou mandaria chicoteá-la. A mulher respondeu-lhe que não temia as ameaças dele, pois o poder das divindades que adorava, era muito superior ao dele ou do governante mais poderoso dos Homens.

Ela explicou-lhe que pertencia a uma irmandade que fizera aquela caixa há muitas gerações, para adorar a Primeira Mulher, Lilith, ali representada com o seu filho e amante Asmodeus. As preces feitas às duas divindades são ouvidas e cumprem-se na maioria das vezes.

Como nunca ouvira falar daqueles deuses, tentou despedi-la novamente, mas a mulher insistiu; “Júlio Cesar recebeu-a e desprezou-a; foi assassinado pouco depois. O grande Augusto herdou-a e utilizou-a para se livrar de Brutus e de Marco António e Cleópatra.”




O futuro imperador olhou-a de alto a baixo e Dinah, percebendo que conseguira a sua atenção, continuou: “Até Tibério a utilizou para afastar os outros herdeiros de Augusto…, mas quer destruí-la e isso irá levá-lo à ruína. A minha missão é arranjar um novo dono, para que isso não aconteça.”

O silêncio de Calígula encorajou-a a prosseguir e ela explicou que aquele objeto era um Altar de Orações e podia pedir-se-lhe o que quiséssemos para vingar os agravos que nos houvessem feito. Para isso bastava escrever num papiro o nome de quem queremos atingir e guardá-lo na caixa. Em pouco tempo, a vida dessa pessoa começará a sofrer os efeitos.

 — Se era Tibério que estava de posse disto, por que está contigo agora? — Interrogou ele, com um olhar conhecedor.

— Fui eu quem lha entregou há alguns anos para o ajudar a tornar-se César. — Ela baixou os olhos. — Ele obteve o que queria, mas não cumpriu a sua promessa. Por fim, sabe que está a ser castigado e quer destruir o altar. Eu sabia onde estava. Fui buscá-lo. Serás o novo dono e o novo César.

— Que tenho de fazer? — Perguntou Calígula ao fim de alguma hesitação.

— Para já, aceitar o altar nas tuas mãos — Dinah pousou o objeto nas dele — e prometer que, uma vez César, tudo farás para aumentar o número dos fiéis do culto a Lilith. Darás privilégios e erguerás um santuário a ela. Se o não fizeres, o teu fim estará próximo.

— Aceito. — Confirmou ele gravemente.

— Agora, escreves num pergaminho o nome da pessoa que queres atingir e o que queres que aconteça. — Enquanto falava, ela retomou o altar e abriu-o sobre uma pequena mesa de apoio aos escribas, expondo as duas imagens. — Depois colocas dentro da caixa e fechas novamente, enquanto recitas: “Lilith, mãe de todos os homens, Primeira Mulher, que caminhas pelos caminhos da noite e pelos abismos desconhecidos desde os primeiros dias do mundo. Ofereço a minha vontade, em troca da tua força. Concede-me o que desejo, e serei teu servo fiel, até o último suspiro. Que a tua sabedoria escura ilumine o meu caminho e que a tua sombra envolva os meus inimigos. Pelo pacto que selamos, eu entrego o meu destino a ti. Que assim seja, nas profundezas e além.

O futuro imperador de Roma ajoelhou ao lado da mesa enquanto repetia a oração que Dinah ensinava. Assim que terminou, pegou num dos rolos de pergaminho que se encontravam na mesa e começou a escrever a maldição pretendida que atingisse o seu tio-avô. Escreveu o nome de Tibério em letras maiúsculas, de forma bem clara e terminou expondo a sua pretensão de ser imperador.

— Eu sou Dinah Lua de Prata, sacerdotisa da Estrela da Manhã e sou tua testemunha. — A mulher ergueu as mãos aos céus. — Escuta-me Lilith, mãe das bruxas, esposa de Samael, mãe e amante de Asmodeus, recebe este teu filho e faz aliança com ele. Amen!

Calígula ergueu-se e pegou cuidadosamente no altar com uma mão, mantendo a carta na outra: — Eu guardarei isto da minha mão. Apenas eu saberei onde se encontra.

— A forma como usares, ou tratares este altar, — avisou a sacerdotisa —, ditará o sucesso ou desastre dos teus planos… ou da tua vida.

Ele suspirou e deitou um último olhar à carta que ditaria o seu destino e o do carrasco da sua família, que ficaria encerrada naquela caixa, à vontade das forças do mal. Fechou as tampas decididamente, com o som do martelo do juiz após proferir a sentença.

O futuro imperador Calígula não sabia, mas, cometera um erro mortal. Assinara o seu nome no texto da maldição que seria executada por um demónio.



Suporte para esta publicação:
Imagens obtidas por IA https://designer.microsoft.com/


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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sabotagem no Paraíso - Terceira parte - A Investigação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 



 

O Criador ficou profundamente magoado com o que aconteceu. Perguntou a Adam se ele sabia com quem Lilian se encontrara e com quem criara aquela insatisfação e descontentamento. O inocente homem desconhecia completamente as respostas àquelas perguntas, ficando inclusivamente surpreendido com a constatação que havia mais gente além do casal primevo e do Pai.

O projeto do Criador estava comprometido, sem a presença da mulher…. Ela era parte essencial na Sua recomendação “Crescei e multiplicai-vos.” Retirou-se deixando o homem/criança entregue a si próprio, sozinho no paraíso.

Como Criador e Omnipotente, não podia deixar as coisas como estavam; invocou três anjos para procurar a fugitiva e a trouxessem a todo o custo. Se ela não obedecesse, estaria sujeita a ser morta ou a uma maldição eterna, assumindo que uma criatura ignorante do mundo e praticamente acabada de nascer, saberia o significado disso.

Durante meses, os emissários percorreram as aldeias miseráveis e as grutas do deserto em busca de Lilian ou de informações do seu paradeiro.

No Céu, Rafael moveu uma subtil investigação para saber quem estaria por trás de um ato tão sedicioso. A comunidade angelical estava dividida; ninguém estava ao corrente do que se passava, mas mesmo assim, muitos respondiam às perguntas com evasivas para confundir o investigador.

Miguel foi pessoalmente à presença de Lúcifer para o questionar em Nome do Criador. O rei dos deuses e demónios da Terra respondeu ao vago interrogatório escarnecendo da autoridade e poder do Criador. Mostrou-se interessado e questionou o mensageiro sobre o projeto sigiloso, sem, no entanto, obter nada de compreensível sobre o que era e o que acontecera. Quando foi confrontado com uma pergunta direta, não podia mentir, pois continuava uma entidade angelical, apesar do seu estatuto de demónio; respondeu que, fosse lá o que tivesse acontecido, se fosse obra dele, não haveria nenhuma dúvida. Não era seu costume esconder a mão após atirar uma pedra.

O projeto conseguira manter-se em segredo durante tanto tempo, principalmente porque poucos sabiam que existia, embora alguns desconfiassem. A partir daquela altura, a dúvida estava dissipada; havia mesmo um novo projeto entre as Mãos do Criador! Interesses punham-se em movimento, uns a favor e outros contra.

Sanvi, Sansavi e Samangelaf, assim se chamavam os perseguidores de Lilian, localizaram-na finalmente numa gruta da remota Terra de Nod, longe de tudo. Os três apresentaram-se na sua forma humana, envergando simples túnicas e sandálias: o objetivo não era assustá-la, mas convencê-la a voltar.

Ela recebeu-os com frieza e desinteresse, sentada numa pedra e amamentando um menino com poucos dias. Não mostrou medo nem respeito pelos emissários, senão quando um deles perguntou quem era o pai da criança.

A mulher recusou-se a responder a todas as perguntas, embora os interrogadores e o próprio Criador não tivessem dúvidas de que um, ou mais anjos, estavam por trás da conspiração que redundara na fuga dela.

Os anjos ficaram nervosos com a determinação da criatura e a capacidade de recusar a responder, mesmo às perguntas diretas, ao contrário das entidades angelicais. Aqueles seres eram realmente muito mais independentes do que eles e, portanto, mais perigosos.

Era hora de passar a uma atitude mais determinada e os três anjos, falando em uníssono, para se tornarem ainda mais solenes e ameaçadores, ordenaram à criatura fugitiva que regressasse ao Seio do Pai. Seria perdoada e tudo voltaria a ser como dantes, teria apenas de revelar quem eram os conspiradores, ou, pelo menos, quem era o pai da criança.

Ela baixou a cabeça e acenou negativamente, abraçando o seu filho.

Um dos anjos insistiu, que, pelo menos tornasse ao Jardim e implorasse o perdão do Pai, tinham ordens para não regressarem sem ela. Estavam autorizados até a tirar-lhe a vida ali mesmo e levar o corpo.

Lilian mostrou-se irredutível e, no momento seguinte, sem sequer se levantar do lugar, gritou-lhes que se fossem embora, pois ela nunca regressaria… a criança começou a chorar.

Vendo que havia necessidade de “grandes remédios”, o trio transformou-se; a sua essência angelical emergiu e eles cresceram até perto de três metros de altura, descomunais asas nasceram-lhes nas costas e todo o corpo resplandecia como metal em brasa. Novamente em uníssono instaram a que Lilian regressasse sob pena de ser amaldiçoada em Nome do Criador.

Ela voltou a gritar-lhes, por entre o choro da criança, que se fossem embora e a deixassem em paz.

As três terríveis vozes anunciaram então que, em virtude da sua desobediência, estava amaldiçoada em Nome de Deus até ao fim dos seus dias. Teria muitos filhos, mas quase nenhum vingaria; as doenças e a violência levariam quase todos. Ela teria uma vida longa, mas a maioria dela, seria passada a chorar a morte das crias. Terminaram com as palavras que selavam a maldição e que ecoaram no teto da gruta e fizeram tremer o chão como trovões.

Em seguida, como se fossem um só, voltaram-se e caminharam para a saída, ignorando as pedras que Lilian lhes arremessava, lavada em lágrimas.

Quando Samael e mais dois anjos se materializaram à frente dela, haviam-se passado muitas horas que chorava de joelhos no chão, ainda abraçada ao filho.

O anjo abraçou-a ternamente e sussurrou-lhe ao ouvido: “Acalma-te, estamos aqui para te ajudar. Não sabia onde estavas e a única forma de o saber, era seguindo aqueles três. Agora que estou aqui a teu lado, não deixarei que te aconteça nada de mal.”

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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Sobre “A Caixa do Mal”

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


O objeto conhecido por Caixa do Mal, ou a Caixa de Orações, é uma caixa esculpida em antiquíssima madeira de cedro do Líbano sobre a qual já foram feitos alguns reparos em folha de cobre. Da simbologia arcana que a recobre, destacam-se os selos dos demónios Lilith e Asmodeus. Possui dois suportes móveis para poder ser colocada na vertical e abrir as duas portas, simulando um altar portátil.



No seu interior, repousam finíssimas esculturas, do mesmo material da caixa, representando ambas as terríveis divindades. Na base do demónio masculino estão gravados os numerais romanos VI e nos do feminino XI. Acredita-se que se refiram à superstição romana do número dezassete (XVII), que pode ser convertida em VIXI (em latim, “Eu vivi”) e se viveu, então já não vive mais…



  

Todo o conjunto apresenta os danos do peso dos séculos e da manipulação por gerações de adoradores e curiosos. A madeira encontra-se ressequida e coberta de fendas, embora continue extraordinariamente dura. Reza a tradição oral ter sido esculpida a partir de um dos destroços provenientes da destruição do Templo de Salomão em 587 AC.

Na realidade, a origem da Caixa do Mal perde-se nas brumas do tempo. Não se sabe quando tal artefacto foi construído, nem quando foi consagrado às duas maléficas entidades. A primeira referência escrita ao objeto, estava dentro dele próprio; uma carta do imperador romano Calígula, que foi um dos seus proprietários, algures entre os anos 32 a 41 DC.

No Dia de Todos os Santos, 1 de novembro de 1755, durante o terramoto que destruiu a cidade de Lisboa, o tsunami que lhe sobreveio atirou com vários navios para terra, entre eles um veleiro de nome e proveniência desconhecida que se destruiu próximo do palácio do Duque de Aveiro. Do meio dos destroços, os criados do Duque serão atraídos pela estranha caixa que entregarão ao seu amo.




Suporte para esta publicação:
Imagens da caixa e do veleiro: IA https://designer.microsoft.com/
Imagens dos demónios, arte de Artur Mósca https://www.facebook.com/arturmosca


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quinta-feira, 18 de julho de 2024

Debaixo dos Céus chegou às 60 000 visualizações

 


Este nosso blogue que tem mais de 20 anos atingiu agora as 60 000 visualizações. 

Obrigado a todos os amigos e leitores.

Boas leituras





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domingo, 9 de junho de 2024

Sabotagem no Paraíso - Segunda parte – Paraíso ou Nem Por Isso

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




Samael resolveu ficar invisível e explorar cada pedaço do jardim escondido pelo Criador. Cada dia que passava, sentia-se mais fascinado pela fantástica Obra que havia sido feita. Conseguia perceber, pelos seus olhos divinos, a graciosidade, a mestria do intrincado das Palavras que terão sido usadas e reconheceu o poder e sabedoria do Criador.

Ocasionalmente, tornava a revelar-se a Lilian e deixava-se bombardear pelas perguntas da inocente criatura, cada dia mais fascinado pela sua perfeição e pelo encanto da voz e da aparência. Ao fim de algum tempo, porém, aborrecia-se do interrogatório e partia intempestivamente, como da primeira vez. Voltava no dia seguinte, assim que a encontrasse sozinha.

Desde o primeiro dia, Samael solicitou-lhe que não mencionasse os seus encontros a Adam ou ao Criador; era o primeiro pecado cometido por omissão no paraíso. Ele próprio, não revelara aos seus irmãos que descobrira o esconderijo. Primeiro, fizera-o porque pretendia exibir-se junto deles por conseguir desvendar o segredo sem ajuda, depois, porque queria saber mais, antes que tudo fosse destruído, finalmente, sentia-se culpado pela ocultação e pelo carinho que nutria pela criatura.

Se Miguel ou Rafael soubessem o que ele descobrira, em pouco tempo todos os outros acabariam por saber. Samael enfrentaria forte resistência aos seus intentos e seria rapidamente denunciado. Havia muitos, como aqueles dois, que defendiam as Intenções do Criador cegamente, enquanto outros não teriam descanso enquanto não matassem as criaturas e abrissem o Jardim do Éden a todas as outras. Nem queria imaginar o que faria Lúcifer com esta informação…

Claro, que o Criador não permitiria que o Seu segredo fosse divulgado ou o Seu trabalho destruído…, mas, para isso, era preciso que soubesse o que acontecia. Samael teria de esforçar-se enormemente para não se denunciar, pois, se fosse confrontado com uma pergunta direta, não conseguiria mentir, como qualquer entidade angelical.

Os lamentos de Lilian sucediam-se à medida que sabia mais sobre o mundo que não conhecia. Ela ridicularizava Adam, que se divertia a escutar o falar limitado dos pássaros ou das cabras e até a observar as evoluções que uma folha fazia ao cair das árvores. Isso era muito pouco para ela, queria conhecer mais. A parte pior, porém, era quando ele queria que ela se lhe submetesse e ficasse por baixo e quieta, durante as relações sexuais, que só aconteciam quando ele desejava.

O anjo percebeu, ali, a possibilidade de minar o trabalho do Criador; aumentando o descontentamento da mulher, traria a infelicidade e o desequilíbrio à relação. Como já estava fragilizada, bastaria uma pequena ajuda.

Os contactos com Lilian tornaram-se mais frequentes e prolongados. Quando o tema “das coisas do mundo” se esgotava, Samael ensinava-lhe as palavras para fazer surgir fogo ou água, ou para provocar um pequeno remoinho de vento que erga uma pilha com os galhos caídos na clareira. Por fim, ensinou-lhe a palavra que lhe permitia sair do jardim e ver com os seus próprios olhos, sempre acompanhada, como era o mundo para lá do lugar onde vivia.

Ela não ficou muito impressionada com o que viu do exterior. Lá fora, havia casas e roupas, mas também deserto, calor imenso e falta de água, alguns animais eram perigosos e nenhum falava ou dava mostras de a perceber! O jardim era muito mais bonito e organizado; tudo era calma, havia muita sombra e água e os animais eram pacíficos e faladores. Aqui não precisava de usar roupas, no entanto, sentia-se amarrada no jardim e parecia-lhe que se respirava melhor fora, mesmo no ar seco do deserto.

Um dia, durante uma das longas conversas, foi inevitável, as bocas de ambos tocaram-se e Lilian conheceu, naquela tarde, o verdadeiro significado de clímax e êxtase. Foi a primeira traição do paraíso…, mas repetiu-se muitas vezes a partir daí.

Claro que, se o sexo de Lilian com Adam já era muitas vezes uma situação tensa, por recusa dela em fazê-lo ou submeter-se aos desejos dele, a partir daquela altura piorou. A mulher recusava ser possuída e a harmonia do paraíso estava ameaçada; quando estavam juntos discutiam e, quando separados, ficavam amuados e sombrios.

Adam solicitou ajuda ao Criador e, juntos, questionaram Lilian, com o Pai tentando demonstrar doçura e compreensão, ao contrário do companheiro. Ela mostrou-se obstinada e recusou-se a responder a algumas perguntas, para estupefação do Criador, que começava a ficar altamente desconfiado de que havia elementos estranhos na equação.

Por fim, o Pai confrontou-a com uma pergunta direta: — Diz-me, minha filha, falaste com mais alguém além de nós e os animais do jardim?

Lilian abriu muito os olhos. Desprezava Adam, pois já percebera as suas limitações, mas tinha medo da reação do Criador. Hesitante, com o rosto muito corado e os braços estendidos, como que afastando os interrogadores, deu uns passos atrás, sem saber o que fazer. Balbuciou, no entanto, um tímido “Não.” Foi a primeira mentira do paraíso.

O Pai sorriu tristemente e repetiu a pergunta.

Para espanto dos dois, Lilian proferiu a palavra que Samael lhe ensinara e evaporou-se em pleno ar.

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quinta-feira, 23 de maio de 2024

Lançamento "Depois das Velas se Apagarem"


 

Ao longo dos últimos anos, fruto das participações em antologias e das publicações em sítios da “internet” e no meu próprio blogue, escrevi uma abundante quantidade de contos, que periodicamente organizo e publico em livro.

Por esta razão, “Depois das Velas se Apagarem” é um livro composto por uma compilação desses contos, nunca publicados em livros exclusivamente meus e orientados para um tema. O primeiro conto, “Na Pele do Lobo” foi parcialmente publicado eletronicamente, em episódios, mas a história é consideravelmente maior e poderá aqui usufruir da sua totalidade.

Apesar do título, algo tétrico, não se trata de um livro de terror, mas sim da luz, ou da ausência dela e, ao longo das suas mais de trezentas páginas, os assuntos abordados são os mais diversos que possam imaginar.

“Depois das Velas se Apagarem”, entramos no mundo da escuridão, ou daquilo que não é visível com a luz.

Se “Na Pele do Lobo” a componente sobrenatural é visível na forma de uma terrível epidemia que grassa em volta de um remoto mosteiro do século XIII, outros há como, “Por Acidente”, no qual a escuridão paira nos nossos dias, no comportamento insano movido pelo ciúme. Também há espaço para outros, como “Candy” que traz à luz uma presença doce, mas que não é deste mundo, ou como “Para um Bem Maior” ou “A Promessa” onde, uma abordagem bem disposta, se confunde a falta de sorte com a subtil mão do sobrenatural.


Por Um Bem Maior

O que é importante frisar aqui é que a escuridão pode estar no sobrenatural, mas também na alma humana, individualmente, como em “Brindemos a Laurinda” ou “Água e Sangue” ou coletivamente, quando são as luzes da civilização que se apagam, como em “Desolação” ou “Na Margem do Lago”.

É por esta razão que nem toda a maldade é sobrenatural.

Acompanhe-me nesta história e venha conhecer personagens mágicos e fascinantes, como “Lavínia”, almas errantes como em “Expiação” e em “Inquietação” ou mesmo uma velha lenda trazida à luz, como em “A Moura do Castelejo”.


A Moura do Castelejo


Não podemos, porém, esquecer a construção de uma lenda; “Alva, a Bela”, passada durante a ocupação romana da península ibérica e mais especificamente de trás-os-montes, tem todos os ingredientes para ser uma história contada por gerações no desfiar dos anos. Em pleno ruir do império, as invasões bárbaras e o seu impacto no quotidiano de uma villa romana, são o pano de fundo para o aparecimento de um personagem cuja simples presença irá moldar para sempre as vidas e a consciência daquelas pessoas e das gerações futuras.

Espero que gostem tanto como eu desta minha nova obra e apreciem cada uma das histórias e dos seus personagens. Sintam-se parte dos mundos que criei e vivam os ambientes descritos e abram bem os olhos para ver o que há “Depois das Velas se Apagarem”.

Obrigado pela vossa leitura e preferência.

Saber mais ou encomendar “Depois das Velas se Apagarem”

 As encomendas podem também ser feitas por e-mail (manuel.amaro@debaixodsceus.pt) ou pelas redes sociais do Facebook ou Instagram. O importante é ler. 


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Em Destaque

Lançamento "Depois das Velas se Apagarem"

  Ao longo dos últimos anos, fruto das participações em antologias e das publicações em sítios da “internet” e no meu próprio blogue, escrev...

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