O som de uma
pancada acordou-a e fê-la saltar na cama, sobressaltada.
Sentou-se e
pôs-se à escuta.
Lá fora o vento
uivava e ouviam-se as gotas de chuva misturadas com a neve que caíam no telhado.
Pela janela da sala conseguia ver que era já noite e avizinhava-se tempestade.
Nova pancada,
desta feita conseguiu ver que era na porta da varanda que dava para a rua das
traseiras.
Sem acender o
candeeiro aproximou-se e espreitou pelo vidro da porta, se o quisessem partir,
já o teriam feito. No chão da varanda estavam duas pedras do tamanho de um
punho e, enquanto olhava, uma outra surgiu em voo resultando em nova pancada.
- Quem é o
endemoinhado… - Exclamou abrindo a porta de rompante.
O ar gelado bateu-lhe
com força no rosto com a neve molhada enquanto espreitava para a rua e tentava
distinguir quem era o homem que se ocultava na escuridão.
- Maria! – Uma
voz por demais familiar chamou num sussurro.
- Zé! – Quase
gritou – Que fazes aí, homem de Deus, que se te pilham, matam-te. – Tapou a
boca rapidamente e olhou para trás como se o Coxo estivesse ali na sua casa.
- Atira-me a
chave da loja. – Pediu ele notando-se um sorriso na voz – Depressa que me gelo.
Correu à
cozinha, espreitou pela frincha da porta. O “carcereiro” não estava lá,
possivelmente procurara um sítio mais abrigado da tempestade. Pegou a chave e
atirou-a da varanda.
Atenta, ouviu
abrir suavemente a porta da cave e tornar a fechar. Arrastou o mais
silenciosamente que pôde a mesa do meio da cozinha e afastou o tapete expondo
uma porta que abriu imediatamente.
Do buraco escuro
emergiu um vulto rapidamente identificado pelo rosto sujo mas sorridente do Zé
Sobreiro e ambos se atiraram nos braços um do outro num abraço fremente de amor
e alívio.
De repente a
jovem empurra-o e começa a dar-lhe murros no peito e a invectiva-lo:
- Estúpido.
Bandoleiro. Que fizeste tu, alma perdida? Como foste capaz de nos levar à
perdição desta forma?
O homem, do alto
dos seus quase um metro e noventa, abraçou novamente Maria, prendendo-lhe os
braços e fazendo-a parecer uma criança nas mãos de um gigante enquanto
suplicava:
- Perdoa-me meu
amor, mas aquele fideputa fez-me perder a cabeça. Provocou-me, insultou-te e
desafiou-me para a luta.
Desanimada,
deixou-se prender naquele enorme mas suave amplexo:
- O que foste
fazer… Valham-nos todos os Santos…
- Como é que ele
está? – Quis saber sem a soltar
- Que o salve o
Diabo, porque se Deus o salvar, é por nós e não por ele. – Sentenciou a jovem
- Mas morre? –
Afastou-a para olha-la nos olhos com um ar de preocupação.
- Que sei eu? –
As lágrimas afloravam novamente aos grandes olhos castanhos – Dizem que o
médico não sai do pé dele e que está como morto. Parece que até chamaram um
médico do Porto.
- Aquele
infeliz… - Abateu-se de olhos no chão. – Sabia que não podia comigo, porque
cismava sempre de se bater? Pedi-lhe que me deixasse e acabei por lhe virar as
costas. – O tom de voz elevava-se à medida que as recordações acudiam, vivas, à
memória. – O bastardo descarregou-me uma varada nas costas e, quando dei por
mim, lutávamos os dois furiosamente à bordoada.
Maria benzeu-se
rapidamente enquanto ele continuava a narrativa:
- Foi enquanto o
Diabo esfrega um olho que o bandalho estava estirado no chão a sangrar da boca
e do nariz. Fiquei-me aparvalhado, como se tudo aquilo fosse um sonho, até que
o tio Joaquim me agarrou no braço e disse “Vai-te rapaz. Vai-te depressa que te
matam.”. Corri como um louco montes fora e só parei na Pala da Ovelha por cima
da estrada que vem da Vila.
- Santo Nome de
Deus! – Exclamou a jovem. – Os lacaios do Samões correram os montes todos esta
noite.
- E eu não os
vi? Não acendi fogo nem nada, gelei-me ali aninhado nas pedras noite toda sem
um pio.
- Ninguém entrou
na Pala?
- O estranho foi
isso. O João do Nabal entrou. Não levava archote, olhou a toda a volta e saiu.
Ouvi-o dizer aos outros que lá não estava ninguém.
- Acho que
desconfiou que lá estavas, é bom homem o João.
- Também achei.
Achas que poderá ajudar-nos?
- Não sei. É bom
homem mas não desafia o patrão. É melhor não fiar.
- E agora? O que
fazemos? – O desalento dele era reforçado pelo cansaço visível nos olhos
encovados do rosto tisnado pelo sol.
- Temos que
fugir, e depressa. Falei com o João do Nabal e com a D. Genoveva. Todos me
dizem que temos que fugir. Queriam que fosse mesmo sem ti, acham que a desgraça
maior ainda está para acontecer.
- E vamos para
onde?
- Primeiro vamos
pelas ruínas da casa da Ribeira. A D. Genoveva, que os anos lhe sejam leves,
deixou lá algumas moedas para podermos começar a vida, depois emos de ir a
qualquer lado.
- Tenho família
em Amarante… - Disse pensativamente.
- Podemos ir,
mas não já. Se o Luís morrer, a Guarda há-de estar lá à nossa espera. Nem em
Soutelo, nos meus parentes vamos passar. Vamos directos a vau pelo rio em
direcção a Alijó e dali ao Porto, como me disse o meu tio. A cidade é grande e
não darão por nós tão fácil.
Não tiveram
tempo de planear mais. Com um estrondo, a porta da cozinha abriu-se de par em
par para permitir a passagem do Quim Coxo e do Linhaças.
- Não te disse
que vi o excomungado a entrar aqui? – Perguntou ufano o ultimo.
Zé ergueu o
cajado e puxou Maria para trás de si:
- Vinde, filhos
da puta, mostrem lá se têm tomates que chegue para me apanharem.
À luz
tremeluzente do candeeiro, os dois facínoras olharam-se com um ar de riso:
- Olha, olha. –
Gozou o Coxo – Já a formiga tem catarro.
- Tenho aqui uma
coisa para ti. – O Linhaças puxou voluptuosamente do cinto um revolver que
apontou. – Gostas?
Maria apertou-se
contra o Zé que, preocupado, avaliava a situação.
- Julgas que eu
sou o patrãozinho armado em heroi? – A boca com poucos dentes soltava perdigotos.
– Mas se calhar já não estarás vivo quando lá chegares.
- Depois virei
tratar dessa rameira que aí tens. – Ameaçou o Coxo.
Os dois
olharam-se novamente e tornaram a rir desabridamente.
Aproveitando a
distracção, Zé empurrou Maria para o interior da casa e descarregou pesadamente
o bordão na mão armada do Linhaças que uivou de dor:
- Ai filho da
puta que me partiste a mão!
Nova bordoada
pelos ares e foi a vez de quebrar ossos do Coxo que chocou com força contra a
antepara da porta da cozinha.
Como um relâmpago,
tornou para o Linhaças que gemia e chorava agarrado á mão partida e apontou-lhe
o bordão à cabeça:
- Queres ficar
estendido de uma vez, filho de um cabrão? – A voz do Zé estava alterada pelo
esforço e pelo ódio. – Não me custa nada matar mais um.
Um estampido
ecoou nos ouvidos de todos.
O facínora e o
Zé continuavam a olhar-se de olhos arregalados até que este ultimo tomba de
joelhos e em seguida de borco largando o bordão que rolou para dentro da sala.
Sem o enorme
jovem na frente, o Linhaças pode ver o Coxo deitado no chão empunhando o
revólver fumegante que se perdera na refrega.
Um com a mão e
outro com o braço partidos, colocaram-se junto ao corpo desacordado.
- Será que o
patrão precisa mesmo falar contigo? – O Coxo empunhava a arma apontada à cabeça
do ferido. – Ou vamos ter que alombar com um porco morto até ao solar?
Só o zurrar do
riso do Linhaças se fazia ouvir no interior da casa.
- Não ouves? – O
Coxo gritava – Dá-me uma boa razão para não te mandar para os infernos já.
O outro saltava de
excitação enquanto esfregava a mão ferida e gritava:
- Mata-o. Mata
esse filho da puta, ou dá-me a pistola que o mato eu. - De repente, um esguicho
de sangue salpicou-o e olhou incrédulo o seu companheiro que se abatia
pesadamente com uma expressão de espanto no rosto ensanguentado.
Restava Maria em
pé empunhando uma sachola sangrenta.
Após uns
segundos de hesitação, o Linhaças deu meia volta e desapareceu correndo pela
porta da rua, escorregando na neve e chocando com as pessoas que principiavam a
amontoar-se à entrada.
A jovem atirou a
enxada para o chão, apanhou o bordão e ajudou o Zé a erguer-se:
- Vem meu amor.
Vamos embora daqui.
Embora atordoado
e a perder sangue abundantemente, abandonaram a casa deixando um rasto vermelho
na neve por entre a pequena multidão que abria alas à sua passagem.
2 comments:
Acabei de ler 5; parte deste deste interessante conto ,espero ansiosamente o dia de amanhã para ver como termina, porque a coisa está a ficar feia para o lado dos apaixonados .
maria luísa
E agora??? Ambos assassinos???
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