Tinham almoçado há
cerca de duas horas e ele regressava da segunda
caminhada da tarde, arrastando-se atrás do Catita quando se percebe do
alvoroço junto dos vindimadores e de um grupo deles que desaparece a correr
pelo carreiro abaixo que vai em direção ao rio.
-
Que aconteceu
ti Luisa? - Perguntou a uma mulher que olhava para lá com as mãos na cabeça.
-
Ai, valha-me
Deus, Zé. - Veio agora aqui um dos “canalhitos” do Quim Ferreiro dizer que
aconteceu uma desgraça lá no rio quando tomavam banho. O filho do Tião
escorregou do alto das fragas e caiu à agua. Andam à pergunta dele que não
aparece.
Zé amarrou o Catita e
correu atrás dos outros.
Junto à margem do rio,
metiam respeito as escarpas rochosas que se erguiam de ambos os lados a umas
boas dezenas de metros de altura.
Em ambas as margens,
grandes fragas ovais circundavam as águas que formavam um lago naquele local
antes de se precipitarem de novo
velozmente em direção à foz.
Devido à profundidade,
as crianças das duas aldeias usavam frequentemente aquela bacia para tomarem
banho nos dias quentes.
Estava já uma multidão
à volta do lago. Havia homens em cima das fragas enquanto outros mergulhavam
tentando chegar à criança afogada.
No areal algumas
mulheres e crianças choravam ruidosamente enquanto, com os pés dentro de água,
a tremer, um dos irmãos do desaparecido gritava e chorava o nome dele.
Apesar de ter chovido
fortemente há poucos dias atrás, o caudal do rio baixara de dia para dia
permitindo a que alguns homens atravessassem a vau para a outra margem.
-
Já o achei! -
Gritou um dos homens que mergulhavam. - Está preso nas pedras, no fundo.
-
Arranjem uma
corda, ou um gancho. - Gritou outro.
Num instante, vindo não
se sabe de onde, já uma corda com um gancho em ferro passa de mão em mão até
chegar ao mergulhador que se atira
novamente ao fundo.
Passados uns segundos
ele volta e faz sinal para puxarem.
Vários homens fazem
força na corda que acaba por ceder e logram puxar o corpo da infeliz criança do
fundo do rio.
Logo aparece à
superfície um corpo, de bruços e a gritaria e os choros recomeçam após alguns
minutos sem respirar à espera do desenrolar da tragédia.
Quando o “mergulhador”
se chega ao corpo o o volta, porém, um coro de gritos e exclamações de espanto
invade toda a audiência; o corpo que tiravam do rio, não era de uma criança.
Era um homem feito, de cabelo claro e barba fina e bem tratada, com o rosto
cinzento e os olhos abertos numa terrível máscara de espanto.
-
É o Manel
Seminarista! - Gritou alguém.
-
Valha-me
Nossa Senhora dos Aflitos! - Gritou uma mulher é o meu sobrinho! Manel, Manel!
Gerou-se o caos com uns
a correr para o cadáver outros a correr monte acima para levar a novidade às
aldeias.
-
Mas. - O
capataz dos Mello chegou ao pé do morto agora deitado numa fraga. - Diziam que
fugiu com a menina Paula... Vejam, tem o saco das moedas ainda preso na
cintura.
José já tinha visto o
suficiente e afastou-se começando a caminhar vagarosamente em direção à aldeia.
Junto ao rio, a
confusão continuava:
-
E o rapazito?
Temos que achar o rapazito. Esse daí já não precisa de ajuda. - Disse outro
homem atirando-se de novo à água.
Vários outros
mergulhadores voltaram a fazer-se à água e a revolver os fundos lodosos da
lagoa em busca da criança.
Francisco e alguns
outros aproveitaram a deixa para revistar o corpo. Nos bolsos encontraram,
todos borratados, os bilhetes de comboio e nas costelas havia um ferimento e um
pedaço de metal espetado... teria tido um acidente? E que seria então de Paula?
Terá fugido? Mas deixou o cavalo também...
As horas passavam-se e
os homens começavam a ter dificuldades em manter o ritmo de mergulhos e já
faltava esquadrinhar pouco do fundo do lago.
-
Rapazes! Eh,
rapazes! - Um outro homem chamava a jusante do rio, mesmo junto da curva. -
Vinde cá, depressa.
As pessoas que por ali
andavam estavam completamente desconcertadas com o desenrolar dos
acontecimentos mas foram vários os que acudiram ao chamado.
No local onde uma velha
árvore caíra sobre o rio, estava o corpo sem vida do miúdo. Nos mesmos ramos,
mais à frente, estava encravado o cadáver da jovem Paula, vestida à homem e
embrulhada num tecido branco. Os olhos verdes, sem vida pareciam implorar ao
céu enquanto a cabeça repousava sobre uma imensa aura feita pelo seu cabelo
dourado.
Francisco, estarrecido,
não estava certo do que fazer mas deu ordens aos homens que trouxessem os
cadáveres todos para o mesmo sítio e preparassem umas padiolas para os levar
para a aldeia e dar conhecimento ao seu patrão.
Entretanto apareceu um
homem com uma turquês, logo seguido por um grupo de curiosos.
Voltaram o corpo do
Seminarista e, com a ferramenta, extraíram a peça de metal encravada nas
costelas; todos viram perfeitamente que era a lâmina trabalhada de uma faca
partida pelo punho.
-
É a faca do
Corrécio! - Gritou o Quim da Ribeira.
Entretanto José estava
já a chegar à aldeia. Deixara o Catita lá em baixo, mas agora já nada mais
interessava.
Pela sua cabeça
passavam as imagens de tudo o que acontecera no dia anterior:
Depois de bater em
Maria dos Anjos saiu, furioso, decidido a fazer uma espera ao Sardinheiro e
dar-lhe as pancadas suficientes para que ele não se tornasse a meter na sua
vida. Como a casa dele ficava no extremo da povoação, acoitou-se num casebre
abandonado e foi bebendo enquanto esperava.
Completamente
embriagado acabou por adormecer e não deu pela passagem do seu inimigo e nem
este se apercebeu que esteve quase para terminar mal a sua noite.
Ainda não tinha nascido
o sol quando José acordou com o barulho de cascos de cavalo nas pedras.
Espreitou e viu um
homem franzino montado num cavalo, também ele pequeno, que avançava pelo
caminho que levava às vinhas das ribeiras e à aldeia vizinha.
Percebeu logo que
deveria ser Paula e seguiu o cavaleiro a corta mato, estando umas vezes mais à
frente e outras mais atrás.
Por fim, aproveitando
uma curva larga do caminho, adiantou-se e chegou primeiro à clareira onde
Manuel Seminarista já esperava, algo distanciado do seu cavalo.
Nas sombras difusas,
José colocou-se entre ele e a montada e falou-lhe:
-
Como
conseguiste?
Manuel assustou-se e
tentou divisar no escuro quem lhe falava. Mudou de posição e conseguiu ver o
rosto do interlocutor:
-
Zé.... -
Reconheceu-o – A Paula tinha-me dito que podias causar problemas.
-
Como
conseguiste pilha-la, sacana? - Ele insistiu – Como a fizeste cair nas tuas
lérias padreco fingido?
-
Eu não sou
padre... nem vou ser. - Manuel desculpou-se olhando para o chão.
-
Falso,
maldito. A roubar as mulheres dos outros...
-
Não digas
isso, se pudesses eras tu quem a levava, não eras? Também tu a roubavas ao
bruto do Henrique Mello.
-
Henrique?!? -
José soltou um riso nervoso – Ela não é desse espantalho, ela é minha! Sempre
foi.
-
Zé, tem
calma. Isso já passou, ela mesma me disse que não há nada entre vocês. Apenas
houve um namorico de crianças.
-
Ela é minha!
- Gritou Corrécio fora de si. - E tu vais já embora daqui. Pega esse bilhete
que tens e apanha o comboio e desaparece. Falso padre, bandalho.
-
Isso não vai
ser possível. - Manuel estava decidido. - Ela deve estar a chegar. Vai tu
embora, não tornes as coisas mais difíceis do que são.
-
Já te disse
que quem vai embora és tu. Desaparece!
-
Estás louco?
Porque hás-de assustar a mulher que ambos amamos? Ela quer ir comigo, deixa-a,
resigna-te, se queres mesmo a felicidade dela.
-
A felicidade
dela há-de ser comigo! - E dito isto atirou-se ao Seminarista com uma
tempestade de socos que o jovem só conseguiu defender-se de alguns.
Depressa estavam os
dois envolvidos numa luta silenciosa, a rolar no chão, tentando cada um ter a
supremacia sobre o outro.
Por fim, José, mais
forte e com mais prática de luta, deixou Manuel atordoado no chão e
levantou-se, assestando-lhe dois violentos pontapés:
-
Vais embora
ou não vais? - Sussurrou Zé ao ouvido da sua vítima.
-
Sim, vou, eu
vou. - O outro gemeu enquanto se erguia agarrado às costelas. - Mas antes acabo
contigo!
E dito isto atira-se
novamente sobre o Corrécio. Estão ambos perigosamente perto do penhasco que
desce em linha reta para as fragas no rio. Uma faca brilha no escuro e os
gemidos de Manuel denunciam as duas facadas que recebeu por entre as costelas.
José fez questão de remexer a faca na ferida e deixar o corpo do outro
pendurado na estocada.
Estão assim os dois
abraçados quando Paula sai das sombras e se apercebe do que se passa:
-
Zé, Manuel!
Que fazem? Parem já com isso!
Surpreendido, Corrécio
empurra o corpo do seu oponente para longe de si sem mostrar a faca que estava
cravada.
Manuel cai de joelhos e
rebola do penhasco para o vazio, sem um gemido, ouvindo-se a pancada surda nas
pedras e logo a seguir na água.
Paula soltou um grito
terrível ao assistir a toda a cena.
-
Espera, meu
amor, tem calma. - Zé tentava acalma-la mas ela, de cada vez que ficava sem
fôlego, inspirava e recomeçava a gritar. - Não grites, espera, fujamos nós,
espera.
Ela continuava a emitir
gritos desesperados, completamente rígida pelo horror e o pânico. Corrécio
tenta desesperadamente cala-la tapando-lhe inutilmente a boca e balbuciando
palavras desconexas. Por fim conseguiu cala-la apertando-lhe o pescoço.
Apertou, apertou e apertou até que ela se imobilizou.
Esgotado, Zé deixou-a
cair e sentou-se ao lado dela no chão:
-
Vês? Porque
não te calaste? Eu não te queria fazer mal.
Ao fim de um bocado
ficou finalmente consciente que ela não se mexeria mais. Andou em círculos sem
saber o que havia de fazer e aproximou-se da borda do penhasco. Não se
conseguia ver nada mas ouvia-se o rugir do rio ainda forte pelas chuvadas de há
uns dias atrás.
Junto da égua de Paula
estava uma pequena trouxa com a roupa feminina que estava combinado trazer.
Abriu-a, tirou a saia branca comprida e
embrulhou o corpo franzino da jovem. Colocou alguns pedaços de xisto da casa
arruinada ali perto e rolou o embrulho pela borda do penhasco.
De novo a pancada surda
nas fragas antes da pancada final na água.
Pegou os dois cavalos
pela arreata e desceu todo o caminho até à estação dos comboios onde os amarrou
nas argola existente para o efeito.
Os montes a nascente
pintavam-se já de vermelho quando Zé, sem fôlego, completamente esgotado pela
caminhada de quilómetros sempre a subir, entra em casa cambaleante.
Fora exatamente assim
que tudo se passara ontem, esta madrugada... e parecia que tinha sido há um
milhão de anos.
José abriu a porta de
casa e lá estava Maria dos Anjos a preparar a ceia, boa esposa e submissa.
-
Já cá estás?
- Ela admirou-se. - Já acabou a vindima nas ribeiras?
Sem lhe responder, de
olhos fixos no infinito, ele pega numa cabaça com vinho, bebe três longos goles
e senta-se à mesa.
Após um longo silêncio,
com a mulher a olha-lo, assustada, ele olha-a e com lágrimas nos olhos
pergunta-lhe:
-
Que vai ser
de ti e dos nossos filhos, mulher?
Epílogo
É ali, calmamente sentado à mesa em sua
casa, numa calma e serenidade que nunca teve, que o Regedor, acompanhado dos
voluntários do Concelho vai dar-lhe voz de prisão.
Levaram-no, com as mãos amarradas, até
uma carroça, seguido de perto pelo pranto da mulher da mãe e dos filhos.
João e Mariana choravam à porta da
taberna não se sabe se pela infelicidade da filha se pela desgraça do genro.
A aldeia em peso, uns escondidos,
outros à vista, observaram o triste cortejo como quem segue um funeral.
Apenas os dois jurados inimigos, o Sardinheiro
e o Quim, voltaram as costas com um “bem feito!” para se irem emborrachar na
taberna.
A partir daí tudo foi muito rápido.
Preso e julgado no tribunal da vila, foi sentenciado à morte.
Ainda esperou perto de um mês para que
chegasse a carta do rei com a recusa para o pedido de clemência feito em seu
nome.
Foi numa manhã fria e chuvosa de
Dezembro que o tiraram da cela escura e húmida e o levaram numa carroça pelas
ruas da vila até ao largo onde estava erguida a forca.
Assim se acabou o Zé Corrécio, como o
seu sonho num amor impossível; pendurado sem esperança numa corda.
FIM
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1 comments:
Excelente conto, quer pela história fantástica que reporta um tempo e um modo comum a uma época, quer pela plasticidade dos personagens e enredos e pela beleza cromática que expõe ao leitor, quer ainda pelo documentário que fica.
Este conto leva-nos para as origens de certas alcunhas e para as razões da toponímia antiga, rica pela memória que guarda dos nossos antepassados, pessoas e localidades.
Penso que este conto pode crescer e melhorar, numa reedição que ocorra ao Manuel Amaro Mendonça.
Lê-se com cativação e agrado, ficando, como já disse, a vontade de ler mais, desatando alguns nós em que prende o leitor.
Parabéns, Manuel Amaro.
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