-
Zé!, Ò Zé. -
A voz chegava longínqua, estridente, a querer arrancá-lo do doce torpor em que
se encontrava. - Zé, acorda, homem de Deus que já nasceu o sol faz tempo.
-
Que queres? -
Rosnou mal humorado, soerguendo-se.
-
Acorda, que
já está todo o povo p'rá vindima. Esta noite fechaste as portadas e eu não
senti o sol nascer nem o cantar do galo.
A mulher de rosto
redondo, já vestida, lenço colorido na cabeça, corpete, blusa branca e saia
rodada de cotim, chamava-o preocupada.
-
E que queres
que te faça? - Sentou-se na borda da cama vestido apenas com as ceroulas e com
os pés descalços nas tábuas do soalho – Tou cá com uns azeites que se não fosse
por nada nem ia trabalhar... - Esfregou os olhos.
A mulher fitou o corpo
pálido, com vários hematomas, do marido. As mãos que esfregavam os olhos e
desapareciam debaixo da cabeleira encaracolada negra tinham feridas nos nós dos
dedos.
-
Andaste outra
vez à bulha, Zé Corrécio, excomungado! - Exclamou ela.
-
E se andei? -
Ergueu-se e empurrou-a violentamente para o lado erguendo a mão como se a fosse
esbofetear.
Ela encolheu-se à
espera da bofetada mas ele mudou de ideias e com novo empurrão dirigiu-se à
bacia da água em barro que estava pousada na cómoda ao lado do jarrão do mesmo
material.
Já se haviam passado
cerca de oito anos desde que se casaram e o seu comportamento para com ela
alternara sempre entre a indiferença e a brutalidade com sexo embriagado à
mistura.
Ela era a filha do
taberneiro, mais nova que ele e em quem ele não reparava. Ele era o Zé
Corrécio, brigão, valente, que levara uma “saronda” do velho fidalgo por lhe
andar a rondar a filha.
Aos seus olhos ele era
admirável, mesmo quando se envolvia nas rixas, que ganhava a maior parte das
vezes, e era corrido da taberna pelo seu pai, João Francisco, que apesar de
tudo sempre respeitou.
Um dia, os oponentes
eram três e ele levou uma “malha” tão grande que ficou desacordado no chão. Foi
o ti João taberneiro que correu com os adversários a varapau, salvando-lhe a
vida.
Como os pais do Zé
Corrécio não lhe falavam há algum tempo devido às “vergonhas” que este lhes
fazia passar com bebedeiras e rixas constantes,
João Francisco e a mulher Mariana de Jesus acolheram-no,
temporariamente, num dos quartos da taberna que também servia de estalagem.
Calhou a Maria dos
Anjos, felicíssima com a sua sorte, a maior parte do trabalho de cuidar do
ferido. Este, com os desvelos da jovem, recuperou rapidamente e reparou
finalmente na admiração de que era alvo.
Assim que se encontrou
melhor, ti Mariana achou por bem que o jovem voltasse para o casebre onde vivia
e saísse de ao pé da sua filha virgem e casadoira.
Era já tarde, porém.
Maria dos Anjos estava grávida.
Embora furiosos, os
taberneiros viram-se obrigados a a falar com os pais do José e obrigarem o
jovem a corrigir a “sua falta” e casar com Maria dos Anjos.
Tantos anos depois, ela
ainda não conseguia deixar de amar aquele homem que nada fazia para alimentar
esse amor.
Ele lavou o rosto com
ruído enquanto ela, perdido o medo, o observava desaprovadoramente de mãos na
cinta:
-
A minha mãe disse que o meu pai te ia proibir
de ir lá beber à taberna se tornasses a armar
tourada por aquelas bandas.
-
Sossega Maria
dos Anjos... Não foi na taberna. Foi mais um ajuste de contas com um tratante,
mas agora já está tudo em pratos limpos. Prepara aí uma côdea, vá, que tenho
que ir. - Exigiu enquanto vestia a camisa e as calças.
Preocupada, a mulher
obedeceu e foi à cozinha preparar uma lasca grossa de pão centeio e uma fatia
de presunto que dobrou cuidadosamente num retalho de pano. Ao lado depositou
uma maçã (que sabia que ele não levaria) e a bota com o vinho que não podia faltar.
Ele pegou a colher e a
malga de madeira com a sopa fria e comeu tudo em quatro colheradas.
-
E a canalha?
- Ele perguntou ao pegar na merenda e limpando a boca com a manga da camisa –
Não os acordas?
-
Não. Estou
atrasada a ti Luísa depois vem a trazer-lhes de comer e a vesti-los. -
Referiam-se aos filhos Olinda e João de cinco e sete anos respetivamente.
-
Vê lá se
começas a por os ganapos a fazer alguma coisa. Não me cries aqui dois madraços
ou encho-te de lambadas. - E enquanto fazia esta ameaça, pegou a faca de
cozinha que estava em cima da mesa e prendeu-a na cintas.
Saiu, batendo a porta
com estrondo e logo se ouviram soar as tamancas de madeira ritmadamente pelo
caminho.
A passo, pôs o chapéu
em palha com abas largas, que detestava, na cabeça e correu pelo canelho para
buscar o cavalo.
Chegado à vinha, já
toda a gente trabalhava em bom ritmo e teve que ouvir um “ralhete” do capataz
antes de pegar ao trabalho, advertindo-o que, se tornasse a atrasar-se,
escusava de aparecer.
João bem sabia que só
trabalhava naquelas vindimas porque
pertenciam ao marido de Paula, o Dr Henrique de Mello, desde o casamento
com ela. Se continuassem na posse do velho Sampaio, não haveria ali nada para
ele.
Ensonado, começou as
suas “caminhadas” com o cavalo carregado até à carroça com as dornas.
Demorava cerca de vinte
minutos em cada viagem de ida e volta e conseguiu fazer quase dez viagens antes
de darem ordens para parar para o “mata-bicho”.
Todos os trabalhadores
se reuniram nas paredes que compunham os socalcos para fazerem um pequeno
intervalo e comerem alguma coisa que trouxessem ou simplesmente descansarem um
pouco.
Zé manteve-se, como
sempre, sozinho. Roeu a côdea e mordeu o presunto que acompanhou com umas
goladas do tinto granjeado por ele e por seu pai com quem tinha reatado alguns
anos atrás.
De repente notou que o
Zé Sardinheiro e o Quim da Ribeira falavam em sussurros deitando-lhe olhares de
soslaio.
-
Que foi? Não
vos chega a bucha? Querem a palha do meu chapéu? - Zé provocou. - Ou alguém
quer acabar o que começamos ontem?
O Quim da Ribeira
virou-lhe as costas com uma expressão de desprezo mas o Zé Sardinheiro
retrucou, jocoso e ignorando a ameaça:
-
A menina
Paula não te veio ver hoje.
Corou e deitou-lhe um
olhar furioso. Olhou demoradamente a faca de cozinha com que estava a cortar o
presunto antes de responder:
-
E que te dá a
ti? Se a esposa do Dr. Henrique Mello vem ou não ver-me?
-
Cá a mim,
nada, é verdade. Isso lá terá que ser entre vocês os três... ou os quatro. - O
Sardinheiro soltou uma gargalhada.
-
Sabes porque
a menina não veio hoje? - Meteu-se o Quim – Porque já andou o povo todo montes
fora à “pregunta” dela. Desapareceu esta noite de casa. Com cavalo e tudo.
-
Chegou-se a
dizer que tinhas culpas no cartório. - Tornou o Sardinheiro – A tua sorte é que
aqui o Quim te viu chegar bêbado a casa tarde na noite.
Zé olhou os dois
homens, cada vez mais furioso.
-
Se tivesses
sido tu que andavas a larpar a menina, era agora que o Doutor te mandava chegar
uns chumbos ao coiro. - Assegurou Quim e ambos riram com vontade. - Tás a
dever-me um copo!
A cacofonia para de
repente quando se apercebem do ar ameaçador de Zé, com a faca em punho,
preparando-se para espetar alguém.
-
Quietos! Que
é lá isso? Não quero cá merdas! - O capataz, Francisco da Mata, que acabava de
chegar intervém no momento certo. - Zé Corrécio, poisa lá a faca das cebolas.
Se fazes baderna aqui vais já corrido pra casa.
-
Essas duas
comadres não têm que fazer e estão a pedir umas cabeçadas... ou uma facada no
bucho. - Zé rosnou, sem baixar a guarda, agastado por Francisco ter usado usado
a sua alcunha, que era coisa que poucos se atreviam a fazer.
-
É verdade o
que eles dizem. - Asseverou o capataz – A mulher do Doutor desapareceu esta
noite. Mas já se sabe mais. Acharam o cavalo dela preso ao pé da estação do comboio...
o dela e o do Manuel Pinho, da aldeia vizinha. Devem ter apanhado o primeiro
comboio da manhã. Nunca mais ninguém os vê.
-
A sério? - O
Sardinheiro não queria acreditar – O Manel Seminarista e a menina Paula? Ora
quem haveria de dizer, o santinho de pau oco.
-
Os pais dele
estão uma tristeza só. - Continuou o Francisco – Ele deitou-lhes a mão a um
monte de dinheiro e foi-se embora.
-
Roubou o
dinheiro aos pais e a mulher ao Doutor Mello. - Riu-se alto o Quim.
-
Pouco
barulho, fala baixo que te ouvem, boca de lavagem. Agora vamos mas é ao
trabalho que se faz tarde. - Admoestou o capataz antes de levantar a voz e
gritar – Ao trabalho! Todos ao trabalho.
Durante todo este
diálogo final Zé, como se não lhe interessasse a conversa, embrulhou o que
restava da merenda, bebeu um trago de vinho e virou-lhes as costas.
Carregou o cavalo com
mais quatro cestos e começou a subida íngreme tomando o cuidado de guiar o
animal pelas pedras menos escorregadias.
Avançar para
4ª e última parte - Achado Macabro |
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