Zé olhou Paula no
olhos. Ela no alto da sua montada, senhoril e ele suado e com roupas
remendadas. Não havia duvidas que pertenciam a mundos diferentes:
-
Depois de
tantos anos afastados, – Ele tentou concluir – vossa senhoria casada com o meu
patrão, não espera que tome liberdades...
-
Zé. - Ela
insistiu – Sou eu, a Paula, que brincava contigo em miúda... Que desafiava a
autoridade do pai para se encontrar contigo. Houve demasiado entre nós para que
me desprezes desta forma. Sabes que não casei por minha vontade.
-
Não, não sei.
- Cortou olhando-a nos olhos – O que sei é que te foste e não voltaste senão
casada com esse homem... porque é rico... e eu sou pobre.
-
Não digas
isso, por favor. Eu não sou feliz sabes? - Os olhos verdes humedeceram-se –
Passaram-se tantas coisas desde que nos afastaram... eu era muito jovem, não
poderia desobedecer ao meu pai.
-
Sim,
passaram. - Concordou ele baixando os olhos e deixando transparecer a dor que
permanecia no seu coração – Passaram uns ossos partidos, o teu afastamento, o
ódio do teu pai e a desaprovação do meu... que nunca me perdoou tê-lo desonrado
para com o homem com quem estava desavindo. Casaste e depois também eu casei.
Se antes estavas apenas demasiado alta para mim, agora estás inatingível.
Vai-te, faz de conta que não nos encontramos e não nos arranjes problemas.
-
Um casamento
– sentenciou ela – a maior parte das vezes não passa de umas palavras
memorizadas ditas sem convicção a um representante de Deus sem vocação. O meu
não foi diferente. Henrique é um bruto egoísta e não quer saber de mim para
nada... para ele sou apenas mais uma propriedade que ganhou quando fez o
sacrifício de casar comigo.
-
Deixa-o. - Um
brilho de esperança reluziu nos olhos castanhos de José. - Foge comigo. Também
eu vivo uma vida que não é a minha, suspirando pelos momentos que passamos
juntos.
-
Meu querido.
- Havia lágrimas nos olhos dela – Passaram-se mesmo muitas coisas desde o
“nosso tempo” que já acabou. Vêm-se outros locais, conhecem-se outras
pessoas... aquilo que quero de ti é apenas que me recordes sempre com esse amor
que vejo em teus olhos... e não me julgues, seja o que for que te digam a meu
respeito.
Tocou a égua com o
pingalim e afastou-se sob o olhar espantado de José que se quedou vendo-a
afastar-se na direção da aldeia vizinha, como nos dois dias anteriores.
Entretanto, outro dos seus
companheiros aproximava-se com nova carga:
-
O capataz
está de olho em ti, Zé, mexe-te.
-
Manel. - José
retorquiu rapidamente – Leva-me aqui o Catita e ata-mo lá na carreta que eu
tenho que ir aliviar a tripa... muito depressa.
Manuel, preocupado,
olhou a jovem Paula a desaparecer na curva do caminho antes de fitar o
companheiro para que ele percebesse que não o enganara:
-
Está bem, vai
lá, mas vê se fazes “o teu trabalho” depressa e o deixas de modo que o fedor
não nos chegue ao nariz... ou nos emporcalhe.
E com esta recomendação
amarrou a rédea do Catita ao seu próprio cavalo e retomou a subida sem olhar
para trás.
José saltou agilmente
para o pinheiral que ladeava a face mais elevada do caminho e desapareceu de
vista.
Por entre as árvores e
o mato agreste, evitando os caminhos, ele foi progredindo com dificuldade até
ao topo do monte de onde podia ver a totalidade do atalho que conduzia à
aldeia. Não havia sinal de Paula... e não tivera tempo de chegar ao povoado.
Caminhou cautelosamente
até escutar vozes e aproximando-se viu, numa clareira Paula abraçada a um homem
que não conseguia perceber quem era por estar de costas.
Por trás deles, a
clareira abria-se para o vazio e um penhasco de várias dezenas de metros até às
fragas do rio fazia o limite da pequena área onde os dois se encontravam.
Contornou a clareira
ocultando-se na vegetação até conseguir perceber o que diziam:
-
… tenho já
tudo preparado. - A voz de baixo do homem ouvia-se com dificuldade – Sei onde
está o dinheiro e tenho alguma roupa numa trouxa pronta a agarrar e correr. E
tu?
-
Tenho alguma
roupa escondida também, assim como uma roupa de homem, uma boina e umas botas
que consegui surripiar a um dos pobres coitados que trabalha para nós. - Paula
falava com a voz tremente mas aparentemente feliz – Vestida de homem, ninguém
desconfiará... ninguém reparará em dois homens a viajar no comboio.
-
Quando sair
daqui vou comprar os bilhetes... - Calaram-se enquanto se beijavam ternamente.
À medida que rodavam,
José conseguiu vislumbrar o bigode e a barba loiros e finos. Estava
identificado o seu rival; era o Manuel de Pinho, filho dum casal de lavradores
abastados da aldeia vizinha... andava no seminário no Porto e por isso
chamavam-lhe Manel Seminarista. Belo padre que iria sair dali.
-
Amanhã –
recomeçou o homem – Vens ter aqui antes do nascer do sol. Deves sair já vestida
à homem, para que não chames a atenção a algum vadio que para aí ande, mas traz
a tua roupa numa trouxa. Assim, nunca pensarão procurar-te vestida de homem.
Envolveram-se novamente
em beijos e caricias que rapidamente evoluíram. Depressa a saia dela era
erguida e ele possuía-a, em pé, encostados a um pinheiro, num coro de gemidos
abafados.
José não queria ver
mais.
Foi-se embora tão
silenciosamente como chegara e passou o resto do dia acabrunhado e de dentes
cerrados falando apenas quando era estritamente necessário.
Terminado o trabalho,
depois de cuidar do Catita, passou pela taberna antes de ir para casa jantar.
Tinha bebido o vinho todo que levara e não comera quase nada... sentia-se um
pouco tonto e a calçada, ainda quente do sol, parecia oscilante.
Na entrada da taberna
do ti João já estavam reunidos vários homens que falavam e riam em altas vozes.
O João Sardinheiro e o Quim da Ribeira eram dois deles, não pegavam no trabalho
com muito empenho mas eram lestos a deixa-lo, por isso já se encontravam ali há
algum tempo.
Passou por eles,
cumprimentou com um breve aceno de cabeça, deitou um olhar de soslaio ao
sorriso escarninho do Sardinheiro e entrou na taberna.
O interior era escuro e
apenas umas poucas velas davam alguma luz às paredes enegrecidas por décadas do
fumo da lareira que acendiam nos dias frios. Três mesas com os respetivos
bancos corridos preenchiam o espaço em conjunto com o balcão sebento de
milhares de mãos que pousavam moedas e levantavam géneros.
Por trás do balcão, uma
fiada de pipas servia de pano de fundo aos seus sogros, ti João e ti Mariana,
para matar a sede aos trabalhadores.
Pediu um púcaro de
tinto com um seco “boas tardes”, pagou e saiu novamente, que fazia muito calor
no interior. A sua relação com os sogros não era a melhor; o casamento não lhes
agradava porque José bebia muito, era briguento e constava que não tratava a
filha deles da melhor maneira.
Sentou-se sozinho à
direita da porta nas grandes pedras que lá existiam para o efeito.
-
Então Zé? - O
Quim da Ribeira estava ansioso por novidades e com a sua voz de gozo inquiria –
Estás triste? Correu-te mal o dia?
-
Quieto, que o
homem tá aborrecido. - Brincou o Sardinheiro por entre os sorrisos dos
companheiros e um olhar de ódio de Zé.
-
Não te
“emplouricaste” hoje na tua menina? - Insistiu o Quim.
-
Já vos avisei
para acabarem com a “ladradeira” sobre mim, “lapouços” da merda. - Zé ameaçou
engolindo o conteúdo do púcaro de barro em duas longas goladas.
-
“Lapouços”? -
O Sardinheiro indignou-se e deu um passo em frente enquanto os outros riam. -
“Lapouço” és tu, seu lambão, que andas aí a ver se “larpas” a Paulinha... O Dr
Henrique que te pilhe...
Não conseguiu acabar a
frase porque José, que entretanto se levantara, assestara-lhe um soco no peito
que o deixou sem fôlego.
Quando Quim tentou
avançar na direção do agressor, este colocou a lâmina trabalhada da sua faca ao
pé do nariz do valente:
-
Conheces
esta? Já ta mostrei várias vezes, vai ser hoje que “larpas” com ela no bucho?
Perante o recuo
cauteloso José começou a afastar-se sem dar as costas aos provocadores.
Ti João, que entretanto
alguém tinha ido chamar, apareceu de rompante à porta da taberna empunhando um
varapau:
-
Zé! - Avisou
-
Não se
apoquente comigo, ti João. Vou-me embora antes que tenha que dar uma “saronda”
numa dessas alcoviteiras.
Assim que se achou a
uma distância segura, virou costas e afastou-se com os tamancos a ecoar nas
paredes das casas.
Irrompeu pela porta da
casa como um furacão.
-
Credo em
Cruz, homem de Deus! - Exclamou Maria dos Anjos, ocupada a descascar batatas
para uma malga em cima da mesa – Assustaste-me.
Sem-se importar em
responder à sua mulher, deslocou-se até outra mesa encostada no extremo da
cozinha, pegou na cabaça que sabia cheia de vinho e encaminhou-se para a porta.
Maria dos Anjos
percebeu logo que ele estava furioso e preparava-se para mais uma bebedeira:
-
Vais te pôr
já a “larpar” o vinho? Anda mas é cear, que tá pronto daqui a um “cibo”
-
Não quero
comer. - Rouquejou ele com a porta entreaberta, indeciso entre sair ou entrar.
-
Já me
disseram que a menina Paula falou contigo hoje. Que te queria? - Quis ela saber
sem olhar para ele.
Fora de si, Zé deu-lhe
um murro num braço que fez com que a malga e as batatas voassem para o chão.
Ergueu a sua faca e
espetou-a com força no tampo da mesa. Os arabescos que decoravam a lâmina
reluziram:
-
Já te te
avisei, mulher, para não dares ouvidos às “ladradeiras” do povo! Não te metas
comigo que ainda faço um desatino. Acabo contigo ou com essas putas que te
andam a envenenar.
Arrancou a faca da mesa
quase levando-a junto e saiu batendo a porta com estrondo deixando para trás o
choro e os insultos gritados pela mulher.
Avançar para
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