segunda-feira, 13 de abril de 2015

Corrécio 2ª parte - A Tentadora e os Provocadores




Zé olhou Paula no olhos. Ela no alto da sua montada, senhoril e ele suado e com roupas remendadas. Não havia duvidas que pertenciam a mundos diferentes:
-         Depois de tantos anos afastados, – Ele tentou concluir – vossa senhoria casada com o meu patrão, não espera que tome liberdades...
-         Zé. - Ela insistiu – Sou eu, a Paula, que brincava contigo em miúda... Que desafiava a autoridade do pai para se encontrar contigo. Houve demasiado entre nós para que me desprezes desta forma. Sabes que não casei por minha vontade.
-         Não, não sei. - Cortou olhando-a nos olhos – O que sei é que te foste e não voltaste senão casada com esse homem... porque é rico... e eu sou pobre.
-         Não digas isso, por favor. Eu não sou feliz sabes? - Os olhos verdes humedeceram-se – Passaram-se tantas coisas desde que nos afastaram... eu era muito jovem, não poderia desobedecer ao meu pai.
-         Sim, passaram. - Concordou ele baixando os olhos e deixando transparecer a dor que permanecia no seu coração – Passaram uns ossos partidos, o teu afastamento, o ódio do teu pai e a desaprovação do meu... que nunca me perdoou tê-lo desonrado para com o homem com quem estava desavindo. Casaste e depois também eu casei. Se antes estavas apenas demasiado alta para mim, agora estás inatingível. Vai-te, faz de conta que não nos encontramos e não nos arranjes problemas.
-         Um casamento – sentenciou ela – a maior parte das vezes não passa de umas palavras memorizadas ditas sem convicção a um representante de Deus sem vocação. O meu não foi diferente. Henrique é um bruto egoísta e não quer saber de mim para nada... para ele sou apenas mais uma propriedade que ganhou quando fez o sacrifício de casar comigo.
-         Deixa-o. - Um brilho de esperança reluziu nos olhos castanhos de José. - Foge comigo. Também eu vivo uma vida que não é a minha, suspirando pelos momentos que passamos juntos.
-         Meu querido. - Havia lágrimas nos olhos dela – Passaram-se mesmo muitas coisas desde o “nosso tempo” que já acabou. Vêm-se outros locais, conhecem-se outras pessoas... aquilo que quero de ti é apenas que me recordes sempre com esse amor que vejo em teus olhos... e não me julgues, seja o que for que te digam a meu respeito.
Tocou a égua com o pingalim e afastou-se sob o olhar espantado de José que se quedou vendo-a afastar-se na direção da aldeia vizinha, como nos dois dias anteriores.
Entretanto, outro dos seus companheiros aproximava-se com nova carga:
-         O capataz está de olho em ti, Zé, mexe-te.
-         Manel. - José retorquiu rapidamente – Leva-me aqui o Catita e ata-mo lá na carreta que eu tenho que ir aliviar a tripa... muito depressa.
Manuel, preocupado, olhou a jovem Paula a desaparecer na curva do caminho antes de fitar o companheiro para que ele percebesse que não o enganara:
-         Está bem, vai lá, mas vê se fazes “o teu trabalho” depressa e o deixas de modo que o fedor não nos chegue ao nariz... ou nos emporcalhe.
E com esta recomendação amarrou a rédea do Catita ao seu próprio cavalo e retomou a subida sem olhar para trás.
José saltou agilmente para o pinheiral que ladeava a face mais elevada do caminho e desapareceu de vista.
Por entre as árvores e o mato agreste, evitando os caminhos, ele foi progredindo com dificuldade até ao topo do monte de onde podia ver a totalidade do atalho que conduzia à aldeia. Não havia sinal de Paula... e não tivera tempo de chegar ao povoado.
Caminhou cautelosamente até escutar vozes e aproximando-se viu, numa clareira Paula abraçada a um homem que não conseguia perceber quem era por estar de costas.
Por trás deles, a clareira abria-se para o vazio e um penhasco de várias dezenas de metros até às fragas do rio fazia o limite da pequena área onde os dois se encontravam.
Contornou a clareira ocultando-se na vegetação até conseguir perceber o que diziam:
-         … tenho já tudo preparado. - A voz de baixo do homem ouvia-se com dificuldade – Sei onde está o dinheiro e tenho alguma roupa numa trouxa pronta a agarrar e correr. E tu?
-         Tenho alguma roupa escondida também, assim como uma roupa de homem, uma boina e umas botas que consegui surripiar a um dos pobres coitados que trabalha para nós. - Paula falava com a voz tremente mas aparentemente feliz – Vestida de homem, ninguém desconfiará... ninguém reparará em dois homens a viajar no comboio.
-         Quando sair daqui vou comprar os bilhetes... - Calaram-se enquanto se beijavam ternamente.
À medida que rodavam, José conseguiu vislumbrar o bigode e a barba loiros e finos. Estava identificado o seu rival; era o Manuel de Pinho, filho dum casal de lavradores abastados da aldeia vizinha... andava no seminário no Porto e por isso chamavam-lhe Manel Seminarista. Belo padre que iria sair dali.
-         Amanhã – recomeçou o homem – Vens ter aqui antes do nascer do sol. Deves sair já vestida à homem, para que não chames a atenção a algum vadio que para aí ande, mas traz a tua roupa numa trouxa. Assim, nunca pensarão procurar-te vestida de homem.
Envolveram-se novamente em beijos e caricias que rapidamente evoluíram. Depressa a saia dela era erguida e ele possuía-a, em pé, encostados a um pinheiro, num coro de gemidos abafados.
José não queria ver mais.
Foi-se embora tão silenciosamente como chegara e passou o resto do dia acabrunhado e de dentes cerrados falando apenas quando era estritamente necessário.
Terminado o trabalho, depois de cuidar do Catita, passou pela taberna antes de ir para casa jantar. Tinha bebido o vinho todo que levara e não comera quase nada... sentia-se um pouco tonto e a calçada, ainda quente do sol, parecia oscilante.
Na entrada da taberna do ti João já estavam reunidos vários homens que falavam e riam em altas vozes. O João Sardinheiro e o Quim da Ribeira eram dois deles, não pegavam no trabalho com muito empenho mas eram lestos a deixa-lo, por isso já se encontravam ali há algum tempo.
Passou por eles, cumprimentou com um breve aceno de cabeça, deitou um olhar de soslaio ao sorriso escarninho do Sardinheiro e entrou na taberna.
O interior era escuro e apenas umas poucas velas davam alguma luz às paredes enegrecidas por décadas do fumo da lareira que acendiam nos dias frios. Três mesas com os respetivos bancos corridos preenchiam o espaço em conjunto com o balcão sebento de milhares de mãos que pousavam moedas e levantavam géneros.
Por trás do balcão, uma fiada de pipas servia de pano de fundo aos seus sogros, ti João e ti Mariana, para matar a sede aos trabalhadores.
Pediu um púcaro de tinto com um seco “boas tardes”, pagou e saiu novamente, que fazia muito calor no interior. A sua relação com os sogros não era a melhor; o casamento não lhes agradava porque José bebia muito, era briguento e constava que não tratava a filha deles da melhor maneira.

Sentou-se sozinho à direita da porta nas grandes pedras que lá existiam para o efeito.
-         Então Zé? - O Quim da Ribeira estava ansioso por novidades e com a sua voz de gozo inquiria – Estás triste? Correu-te mal o dia?
-         Quieto, que o homem tá aborrecido. - Brincou o Sardinheiro por entre os sorrisos dos companheiros e um olhar de ódio de Zé.
-         Não te “emplouricaste” hoje na tua menina? - Insistiu o Quim.
-         Já vos avisei para acabarem com a “ladradeira” sobre mim, “lapouços” da merda. - Zé ameaçou engolindo o conteúdo do púcaro de barro em duas longas goladas.
-         “Lapouços”? - O Sardinheiro indignou-se e deu um passo em frente enquanto os outros riam. - “Lapouço” és tu, seu lambão, que andas aí a ver se “larpas” a Paulinha... O Dr Henrique que te pilhe...
Não conseguiu acabar a frase porque José, que entretanto se levantara, assestara-lhe um soco no peito que o deixou sem fôlego.
Quando Quim tentou avançar na direção do agressor, este colocou a lâmina trabalhada da sua faca ao pé do nariz do valente:
-         Conheces esta? Já ta mostrei várias vezes, vai ser hoje que “larpas” com ela no bucho?
Perante o recuo cauteloso José começou a afastar-se sem dar as costas aos provocadores.
Ti João, que entretanto alguém tinha ido chamar, apareceu de rompante à porta da taberna empunhando um varapau:
-         Zé! - Avisou
-         Não se apoquente comigo, ti João. Vou-me embora antes que tenha que dar uma “saronda” numa dessas alcoviteiras.
Assim que se achou a uma distância segura, virou costas e afastou-se com os tamancos a ecoar nas paredes das casas.
Irrompeu pela porta da casa como um furacão.
-         Credo em Cruz, homem de Deus! - Exclamou Maria dos Anjos, ocupada a descascar batatas para uma malga em cima da mesa – Assustaste-me.
Sem-se importar em responder à sua mulher, deslocou-se até outra mesa encostada no extremo da cozinha, pegou na cabaça que sabia cheia de vinho e encaminhou-se para a porta.
Maria dos Anjos percebeu logo que ele estava furioso e preparava-se para mais uma bebedeira:
-         Vais te pôr já a “larpar” o vinho? Anda mas é cear, que tá pronto daqui a um “cibo”
-         Não quero comer. - Rouquejou ele com a porta entreaberta, indeciso entre sair ou entrar.
-         Já me disseram que a menina Paula falou contigo hoje. Que te queria? - Quis ela saber sem olhar para ele.
Fora de si, Zé deu-lhe um murro num braço que fez com que a malga e as batatas voassem para o chão.
Ergueu a sua faca e espetou-a com força no tampo da mesa. Os arabescos que decoravam a lâmina reluziram:
-         Já te te avisei, mulher, para não dares ouvidos às “ladradeiras” do povo! Não te metas comigo que ainda faço um desatino. Acabo contigo ou com essas putas que te andam a envenenar.
Arrancou a faca da mesa quase levando-a junto e saiu batendo a porta com estrondo deixando para trás o choro e os insultos gritados pela mulher.



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