Debaixodosceus.pt e Amazon.com: Uma parceria de sucesso
2017 Publicação "Daquele Além Marão"
2020 Foi criada a nova imagem
2017 Apresentação na Casa dos Transmontanos do Porto
2022, Pela primeira vez, publicação em capa dura além de capa mole
2017 Apresentação na Confeitaria Luso-brasileira
2020 Publicação "Entre o Preto e o Branco"
2017 Apresentação no CITICA de Daqueles Além Marão
2016 Apresentação no CITICA de "Lágrimas no Rio"
2016 Publicação de Lágrimas no Rio
2016 Apresentação no ISLA de "Lágrimas no Rio"
2015 "Terras de Xisto" - A primeira publicação
2022 Publicação de "A Caixa do Mal"
2022 Devido ao seu sucesso, "Lágrimas no Rio" tem 2ª edição
2022 Publicação "Na Sombra da Mentira"
2022 Publicação "Depois das Velas se Apagarem"

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

A Embaixada

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 16

O que faz que os homens formem um povo é a lembrança das

grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.

Ernest Renan

Escritor e historiador francês.

(1823-1892)

Os dias estavam mais claros e o frio já não mordia os ossos com a mesma intensidade. Havia um vento suave que acariciava a planície e trazia o cheiro de primavera. As montanhas distantes, porém, continuavam com os cumes alvos, os ursos não deviam aparecer por enquanto, mas não tardariam.

Erem sentia-se cansado e não ficou nada aborrecido quando os caçadores disseram que não havia necessidade de fazer parte dos grupos. Graças à franca colaboração com os estrangeiros residentes e agora reforçados com os companheiros do convalescente Tibaro, havia homens e mulheres suficientes para a caça. Os seus quase quarenta e oito anos pesavam-lhe e o frio do inverno parecia não lhe ter ainda saído dos ossos, mesmo ali, sentado ao sol à porta da sua casa redonda.

Com os olhos fechados, deixando-se levar pela letargia, começou a chegar-lhe ao ouvido um rufar longínquo. Ergueu-se subitamente desperto. Recentemente acordaram que haveria sempre duas pessoas de vigia, durante o dia, no alto de um monte próximo. Quando fosse avistada a aproximação de alguém, faria ressoar com pancadas um enorme tronco oco que arrastaram para lá. Sequências de uma pancada, intervalada com duas batidas rápidas, significava uma pessoa, duas pancadas, três, seriam três ou mais. O batuque era constante e isso era alarmante.

O chefe correu até ao topo da colina onde já tinham chegado outros aldeãos que discutiam acaloradamente. Os vigias, um era uma das suas sobrinhas e outro um neto de Tailan, apontaram nervosamente o extremo norte da planície. Distinguia-se perfeitamente um grupo de cerca de trinta indivíduos armados de lanças que descia o caminho em direção ao casario de Barinak, logo atrás havia mais uns quantos que parecia arrastarem algo. Chegariam primeiro ao agrupamento de casas onde Tailan e a maioria dos estrangeiros residia.

— Depressa, vão ter com Lemi e Tailan, que reúnam os homens que houver por aí e vão para o extremo do povo no caminho da montanha. — Erem enviou os vigias, sentindo-se preocupado por a maioria dos homens se encontrar na caça ou a arrastar as pedras do santuário. — Que levem armas. — Depois voltou-se para outro dos homens: — Corre a avisar Zia do que aqui vimos. Ela que reúna as mulheres capazes de lutar e vão lá ter também.

Acompanhado de vários dos que já se encontravam no alto da colina, Erem apressou-se na direção que indicou ser o ponto de encontro onde esperariam os forasteiros que se aproximavam. Se viessem com más intenções teriam de lutar. O que o preocupava era que, mesmo conseguindo igualar o número de inimigos, seria com mulheres pouco habituadas a usar as armas e os homens que, como ele, já não estavam na melhor das formas. O seu coração apertava-se com a ideia de que viriam em busca dos assaltantes que estavam agora mortos e atirados do penhasco para onde era arremessado o lixo da aldeia.

Atravessou o “bairro” dos estrangeiros, onde já não passava há muito, que era simbolicamente separado do resto do povoado por um pequeno regato, afluente do largo rio que fornecia água e peixe à população. As construções alinhavam-se ao longo do trilho calcado a que chamavam o caminho da montanha que serpenteava até ao limite do casario. Reparou, com admiração, que já havia muitas casas e poucas tendas, desde a sua autorização para que fossem construídas. Como era cada vez mais difícil encontrar pedra suficiente e a pouca distância, para todas as casas, várias delas já eram completamente construídas em adobe e apenas cobertas de colmo; havia-as quadradas, redondas, retangulares, as tradicionais redondas de pedras empilhadas eram uma minoria. Com a utilização dos ângulos retos, havia vários exemplos de habitações geminadas partilhando o telhado. Qualquer uma delas tinha uma área muito superior à da humilde palhota de Erem e possuir mais do que uma divisão. Algumas tinham até as paredes alvas como a neve, cobertas do que parecia ser um pó que, embora sujasse as mãos, não saía da superfície.

O chefe chegou ao extremo da povoação. Os invasores ainda não se avistavam devido ao relevo do caminho sobre uma suave colina. O seu olhar analítico observou como a linha de árvores não andava longe do casario e como seria fácil um atacante mal-intencionado chegar por ali, em vez de o fazer pelo caminho. Começavam, entretanto, a chegar alguns aldeãos, com ar preocupado, mas todos traziam lanças ou ferramentas com que pudessem causar dano. Olhou o simples punhal de cobre que trazia à cintura e perguntou-se se não deveria ter ido buscar a sua lança também.

O vento suave carregava as nuvens que obscureciam o sol, a espaços; o frio que se fazia sentir lembrava que a primavera ainda era uma criança e o inverno não andava longe.

Quando os invasores chegaram ao alto da elevação, já havia perto de quarenta elementos a esperá-los e eles imobilizaram-se à vista das primeiras casas, parecendo conferenciar.

Zia foi a última a chegar. Trazia um grupo de dez ou quinze crianças armadas de fundas. Numa guerra, toda a ajuda é pouca, dizia o sorriso dela para o olhar interrogativo do chefe.

Àquela distância, já se podiam distinguir os recém-chegados; com exceção de dois deles, todos trajavam igual; a cabeça tapada com chapéus castanhos, túnicas cintadas que desciam até ao joelho, tendo depois as canelas e os pés cobertos por peles. Além da lança, onde reluziam as pontas de cobre, traziam o que parecia ser um pedaço de madeira forrado a pele. Era óbvio que se tratava de gente preparada para combater. Os outros dois aparentavam um aspeto diferente, com longas túnicas; uma cor de sumo-de-uva e a outra preta, cabelos longos a cair até aos ombros e grandes barbas.

Não se ouvia um murmúrio do lado dos defensores de Barinak, quando um dos invasores se afastou dos restantes e caminhou para a povoação em passo largo, mas pausado, erguendo bem as mãos nuas.

— Saudações e paz, vos envia Mirsulo, déms pótis[1] de Hatiweik. — Falou o homem numa voz forte e clara, embora com sotaque carregado. — Que Tarunte, deus da guerra e da paz, vos dê muitos filhos e alimento para todos. — Pousou a mão direita sobre o coração e fez uma curta e respeitosa vénia.

— Saudações e paz, estrangeiro. — Erem adiantou-se. — Que nos quer Mirsulo, com tantos homens preparados para a guerra?

— Peço perdão em nome do meu senhor. — O homem parecia versado em diplomacia. — Os caminhos são perigosos e Hatiweik tem muitos inimigos. Os homens são para proteção e não para a guerra. Mirsulo veio pessoalmente buscar o seu filho Tibaro, para o honrar enterrar junto dos seus antepassados. Disseram-nos que se encontrava com Erem, déms pótis de Barinak.

Levantou-se uma onda de murmúrios felizes entre os atemorizados defensores.

— Eu sou, Erem, filho de Birol. — Continuou o chefe. — Mas o teu senhor está enganado, Tibaro não morreu. Está vivo e recupera dos seus ferimentos.

Após uma rápida expressão de alegria, o emissário perdeu toda a compostura e partiu numa corrida a reunir-se aos seus.

Desta vez foram os dois elementos que se destacaram do grupo e avançaram rapidamente, seguidos de perto pelo emissário. O homem de preto tinha um ar austero e grave por baixo do chapéu de couro entrançado. As espessas barbas pareciam querer fugir em todas as direções de tão desengraçada carranca. O seguinte trazia os cabelos soltos decorados com pequenas esferas e apenas um fio em volta da cabeça suportando um disco reluzente no meio da testa. Iguais discos pendiam em cada uma das orelhas e um ainda maior ao pescoço, pousado sobre a túnica cor de vinho decorada com finos entrançados e pedaços de peles. O seu rosto visível por cima da barba aparada exibia confusão e alegria quando se dirigiu a Erem:

— És o guardião do meu filho e também o seu salvador? — O homem pousou a mão sobre o coração. — Se tal coisa é verdade, pois só acreditarei quando vir com os meus próprios olhos, serás o meu irmão mais querido que aqueles do meu próprio sangue!

Mirsulo, felicíssimo, agarrou e abraçou um atordoado Erem, antes que qualquer pessoa pudesse reagir. Ato contínuo, os soldados soltaram grandes gritos de alegria, embora mantendo a distância.

Confundido, mas agradado, ao mesmo tempo, Erem sorriu e pediu-lhe que o seguisse até ao convalescente. O acompanhante de Mirsulo, sem perder o seu ar austero, seguiu-os como uma sombra silenciosa. O caminhar dos dois chefes lado a lado foi o mote para o “desmobilizar das hostes” e os defensores dividiram-se, uns atrás deles e outros para junto dos soldados, a saciar a curiosidade.

Nehir, que se recusava sempre a participar nas atividades que envolvessem mortos e feridos, aguardava na sua tenda, tristemente, que começassem a chegar as primeiras vítimas. Qual não é o seu espanto, vê chegar o pai e um estrangeiro vestido com roupas estranhas, a conversar alegremente, logo seguidos por quase toda a aldeia misturada com outros estrangeiros.

O encontro entre Mirsulo e Tibaro foi comovente, o chefe estrangeiro não conseguiu deixar de verter uma lágrima. Apesar de ter dez filhos, aquele era o mais velho e o que ele esperava que lhe sucedesse. Não o conseguia dissuadir de participar nas caçadas… e esta quase lhe tinha sido fatal.

Apesar de quase não se conseguir ouvir, Tibaro falou com o pai e acalmou-o, dizendo que se sentia bem melhor e tecendo elogios à curandeira, à sacerdotisa, ao extraordinário chefe de Barinak e ao seu povo acolhedor. Foi o momento do silencioso companheiro de Mirsulo intervir e questionar diretamente o doente sobre o tipo de tratamentos que lhe fizeram.

Ao ver o esforço que Tibaro fazia para falar e notar que a sua respiração ficava cada vez mais ofegante, Nehir tocou no braço do estranho e pediu-lhe que não o maçasse mais; ela responderia a todas as perguntas.

O homem, que estava curvado sobre o doente, ergueu-se e deu um passo atrás, olhando-a com um misto de desdém e escândalo: — Quieta, mulher! — Ordenou rispidamente numa voz de barítono. — Quem te deu ordem para falar?

Imediatamente, qual leoa a defender a cria, Zia colocou-se ao lado da filha: — Tu é que precisas de autorização para falar, homem! — Ela apontou-lhe o dedo ao peito. — És um convidado na tenda dela e nesta aldeia!

— Parem! — Interveio Erem olhando interrogativamente para Mirsulo.

— Elas têm razão, Savírio. — O chefe estrangeiro advertiu sem sorrir. — És um convidado aqui. Tens de respeitar os costumes. — Depois olhou diretamente para Erem e explicou. — Não estamos acostumados que as mulheres desempenhem estas funções e muito menos interpelem diretamente os homens.



[1] Proto-indo-europeu: “Senhor de sua casa”, derivará em déspota.



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A seguir

15 - Medicina Primitiva


17 - O Conselho de Barinak

Introdução


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domingo, 29 de outubro de 2023

Medicina Primitiva

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 15
 

A arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a Natureza cuida da doença.

Voltaire

Escritor, historiador e filósofo iluminista francês

(1694-1778)

Enquanto o grupo reunido por Himono e Kiala se apressavam noite dentro, Erem mandou quatro homens levar o jovem, que se debatia em aflição, para o santuário.

Transportaram o ferido numa padiola, logo seguidos por um dos estrangeiros, de nome Amanur e quase toda a população da aldeia. Passaram pela área ainda não preenchida do círculo que já contava com seis imponentes megálitos. Deitaram-no sobre a pedra que servia de mesa para os sacrifícios e mantiveram-lhe os braços seguros enquanto Zia invocava a atenção de Swol e Mensis.

O céu estava encoberto, mas as franjas das nuvens refletiam a luz forte da lua que brilhava bem acima delas. Não fora isso, estaria uma noite magnífica, de um céu estrelado onde Mensis governava invicta sobre as humildes estrelas, que eram as fogueiras do povo do céu.

O chefe apressou-se a ir buscar a sua cabeça de leão cerimonial e o cocar de penas da mulher. Vários homens acorreram a trazer madeira e fogo para acender no meio do círculo, aos pés da pedra sacrificial frente ao ídolo Swol. A cerimónia teria de ter tudo o que era exigido para obter o favor dos deuses.

Os mais próximos olhavam espantados enquanto Nehir esculpia e aguçava uma fíbula de corvo e utilizava os finos ossos das costelas para esvaziar o interior do osso maior. Em poucos minutos, obteve um pequeno tubo reluzente e afiado, que estendeu em oferta para o céu.

Zia, já devidamente ataviada com o seu cocar de penas de pomba, “cantava” a Swol, enquanto circulava em volta do monólito que o representava. Entoou a história, cantada por pais aos filhos durante incontáveis gerações, do dia em que Manu, o primeiro homem, abriu os olhos. Lembrou aos deuses como Swol e Mensis se apaixonaram por aquele ser indefeso e desceram dos céus para o ensinar a sobreviver sem garras nem dentes temíveis. Como Tharun atirou o fogo dos céus, fendendo em milhares de lascas o Grande Carvalho de onde nasceu o mundo, dando o fogo e criando as lanças para os homens. Lembrou como Swol, cuidou de Manu e usou o seu calor para derreter as neves e florescer as plantas e como o seu brilho atraiu os animais de todos os tamanhos e feitios para que ele se alimentasse. Cantou sobre Mensis que se transfigura no céu noturno e que vela sobre a noite, trazendo a luz sobre a escuridão e o poder sobre os espíritos das sombras.

Depois estendeu as mãos sobre o objeto que a filha lhe apresentava e invocou os nomes Da Pater e Da Mater[1] para que guiassem a mão de Nehir. Em seguida, pegou de num cesto de vime fechado, uma pomba completamente cinzenta e, após a exibir aos céus por poucos segundos, torceu-lhe o pescoço sem cerimónia.

Um dos homens estendeu uma pequena taça de barro a recolher o sangue que a sacerdotisa vertia ao abrir ao meio a ave sacrificada.

O círculo exterior do santuário estava preenchido por um enorme grupo de homens e mulheres, agora que se lhe juntavam os elementos da responsabilidade de Tailan. Erem, com a cabeça de leão sobre a sua, conduzia-os num som gutural grave, que fazia vibrar o peito e os próprios menires, ritmando com o bater de uma grossa vara numa pedra e acompanhado por alguns homens que ressoavam peles esticadas sobre quadrados de madeira.

A sacerdotisa tomou a taça com o sangue e aspergiu o ferido que se debatia cada vez com menos intensidade. Depois pintou uma linha vermelha no rosto do paciente desde o queixo até ao cabelo, dividindo-o ao meio e exclamou: — Em nós, existem Swol e Mensis, o rei do dia e a rainha da noite. Unidos no nosso corpo como um só! — Repetiu a linha vermelha no rosto da filha e incentivou: — Que os deuses guiem a tua mão!

Perante o olhar estarrecido de Amanur, Nehir, sussurrando o encantamento da cura, colocou a mão direita atravessada desde o queixo do moribundo cobrindo todo o pescoço. — Agarrem-no bem. — Avisou, enquanto com a esquerda, apontava a agulha de osso que preparara na parte mole logo abaixo da área tapada. De olhos postos no céu, que começava a ganhar cor, invocou a ajuda divina: — Swol! Salva o teu filho! Mensis, dá-me o poder da cura — Tornou a atenção para a mão que segura a agulha e, com a direita, deu-lhe uma pancada seca.

Um espirro de sangue aspergiu os mais próximos e no segundo seguinte, o som ofegante do ar a entrar e a sair começou a ouvir-se através da cânula. O paciente começou imediatamente a acalmar-se.

— Da Mater te proteja e mantenha os maus Ansu[2] afastados. — Pediu Nehir colocando a mão sobre a testa do ferido.

Amanur, ainda indeciso se o seu companheiro morria ou estaria salvo, continuava a agarrar-lhe o braço com força, até que a mão do, até aí moribundo, tocou-lhe, indicando que o magoava. Olhou para o rosto de Tibaro onde a tonalidade cinzenta começava a desvanecer-se. Os olhos dele estavam novamente abertos e vivos, aparentemente ainda a tentar perceber por onde respirava. A sua expressão exibia sofrimento pelo pescoço magoado.

— Podem deixá-lo. — Anunciou Nehir para todos os que agarravam o ferido. — Swol ajudou-nos por agora, mas os próximos tempos é que dirão se se salva ou não.

— Os outros têm de chegar com a cabeça do auroque antes do nascer do sol. — Zia sussurrou preocupada para a filha, antes de gritar para a audiência com os braços no ar: — Swol seja louvado!

— Swol! — Responderam os presentes em êxtase, fazendo ressoar as suas vozes nas pedras do círculo inacabado.

A curandeira colocou, cuidadosamente, um pouco de mel em volta do novo ferimento para evitar infeções e segurar a agulha de osso que lhe permitia respirar. Depois untou-lhe o pescoço com uma pasta de urtiga e lavanda para reduzir a dor e a inflamação.

— Vai viver? — Perguntou Amanur, quase para ninguém em especial.

— Está salvo para já. Mas não pode falar e só poderá beber, não comer. Só respira por este buraco. — Confirmou Nehir sobre os gritos de graças dos acólitos. — Temos o mau Ansu[3] que está no pescoço e que o pode matar ainda. Se o tirarmos de lá, daqui a uns dias poderemos tirar o osso que lhe pus. Precisamos da cabeça do auroque. Vem, reza connosco.

— Rezar? — O outro hesitou com um trejeito da boca. — Ao vosso deus? Swol? O nosso é Tarunte, o deus do trovão.

— Também adoramos Tarhun, deus do trovão e da guerra. — Esclareceu Nehir com estranheza. — Mas é Swol, o rei dos céus, quem comanda a vida. Ele salvou o teu companheiro. — Encolheu os ombros e juntou-se ao coro.

Desconfiado, Amanur quedou-se de joelhos junto de Tibaro. O seu amigo estava salvo para já. Seria Swol ou Tarunte o seu salvador? Aquele círculo inacabado de pedras era tão rude quanto intimidante e o ídolo grosseiramente talhado no menir central parecia escarnecer dele.

A curandeira e a xamã mandaram distribuir uma infusão de folhas de secas de papoila e ajoelharam-se, sentando-se sobre a parte anterior das pernas, sempre implorando a ajuda do deus. Todos os presentes colaboravam no som ressonante e profundo que parecia preencher todo o espaço e ressaltar nas pedras.

Rompiam os primeiros alvores da madrugada quando o grupo de oito homens, alagados em transpiração, surgiram no santuário. Quatro deles transportavam a descomunal cabeça segurando-a com esforço pelos longos cornos. Os outros quatro traziam as patas traseiras e dianteiras em cestos de vime. Os gritos de graças, que já duravam há uma eternidade, calaram-se abruptamente. O tamanho do troféu era maior do que alguma vez alguém havia visto.

Alguns homens e mulheres, entorpecidos pela imobilidade e atordoados pelos efeitos da infusão, acudiram a animar o fogo que era pouco mais do que umas pequenas chamas que refulgiam entre os troncos quase consumidos. Gerou-se de imediato uma atividade frenética e curiosidade em volta dos recém-chegados.

Amanur falou apressadamente com Kiala e Himono, apontando alternadamente para Nehir e Zia, contando tudo o que se passara durante a sua ausência. Ambos olharam com espanto para Tibaro e apertaram-lhe os braços com alegria, vendo-o a recuperar as cores.

A Xamã, assim que achou a fogueira digna do sacrifício, reuniu seis guerreiros que com ela dançaram em volta da dos despojos do auroque, pousados no chão aos pés da pedra sacrificial onde estava ainda deitado Tibaro. A cada três passos, apontavam as lanças para a cabeça decepada, simulando atacá-la.

Os gritos de Swol dos assistentes e os de ameaça dos dançarinos, o rufar das peles deixava-os a todos como que hipnotizados, a transpirar e de olhos esbugalhados. Por fim, a um grito de Zia, com as mãos erguidas, todos se imobilizaram e o silêncio caiu como uma pedra em todo o espaço. Numa aproximação ritual, Erem, imponente debaixo da temível pele de leão, caminhou rodopiando artisticamente uma clava que desfechou com força na cabeça do auroque.

— Swol! — Gritou Zia. — Salva o nosso irmão! — Como um eco, toda a assistência repetia as suas palavras. — Envia o mau Ansu[4] para junto de Welnos[5]! — Nova pancada com a clava. — Oferecemos-te este ser magnífico, que deu a vida para que o nosso povo não tenha fome!

Com estas palavras, os guerreiros ergueram a cabeça decepada e colocaram-na sobre a fogueira onde começou a crepitar. Zia e Erem colocaram as patas dianteiras da besta a cada um dos lados da cabeça. As traseiras seriam depois atiradas ao rio para que o auroque nunca consiga completar-se e perseguir os seus matadores.

Durante horas, sob o olhar atento dos estrangeiros, homens e mulheres cantaram e dançaram em volta do fogo onde os restos da besta se consumiam, embora alguns desistissem e fossem e abandonando a cerimónia.

Quando apenas já pouco restava identificável na fogueira, eram apenas seis os membros do clã que ainda se mantinham a acompanhar o chefe, a xamã e a curandeira.

Tibaro acabara por adormecer na sua “cama” de pedra coberto com uma pele negra e só quando os cânticos foram substituídos pelas conversas dos resistentes é que despertou novamente. Zia e Nehir ajudaram-no a erguer-se e logo se aproximaram os seus companheiros, que até ali se haviam mantido sentados em pedras a assistir. O paciente foi levado para a tenda de Nehir onde continuaria o seu descanso tão necessário à recuperação.

Erem, visivelmente cansado, despediu-se dos “resistentes” e dirigiu-se para a sua cabana, logo seguido por Zia. Mas os acontecimentos não haviam acabado naquela manhã, onde o sol já ia alto; no largo em frente à sua casa, o cativo jazia, ainda amarrado ao poste, com a cabeça pousada numa poça de sangue e lama. A pouca distância dele estava a pedra que utilizaram para o matar.



[1] Deus pai e deusa mãe.

[2] Espíritos

[3] Espírito

[4] Espírito

[5] Deus do submundo



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A SEGUIR

14 - Decisão Difícil

16 - A Embaixada

Introdução
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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Decisão Difícil

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 14


Só quem nunca pensou chegou alguma vez a uma conclusão. Pensar é hesitar. Os homens de ação nunca pensam.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escritor português

 

Naci tomou a dianteira em direção ao pai, logo seguido por todos os outros, a mole de curiosos que se reunia em volta deles, abriu alas para que chegassem ao chefe.

Erem abraçou brevemente o filho e ouviu com atenção o relato nervoso do que acontecera, enquanto verificava que quase todos ostentavam ferimentos, a maioria ligeiros.

Nehir e Zia observaram o jovem que jazia desacordado na padiola a respirar curta e aflitivamente; tinha, como os outros, o cabelo escuro entrançado e decorado com esferas brilhantes, sobrancelhas espessas e o rosto pálido alongado, atravessado por um ferimento que sangrava abundantemente. Envergava uma túnica comprida castanha que lhe chegava aos joelhos e ostentava uma placa reluzente, marcada com traços, ao pescoço. Os pés e as pernas estavam envoltos em várias tiras de couro que seguravam uma mais grossa que lhe protegia a sola dos pés. A curandeira indicou que o levassem para a tenda dela, enquanto a mãe, ajudada por outras mulheres, começou a cuidar dos feridos menos graves.

Erem olhou com desconfiança para os seis altos e silenciosos guerreiros que seguiram o ferido para a tenda. Todos traziam o cabelo igual, com pequenas variantes, vestiam túnicas semelhantes e calçavam sandálias… tudo manufaturado com grande perfeição. Nem os melhores artesãos do clã conseguiriam reproduzir qualquer daquelas peças.

Naci fez tenção de os seguir, mas o pai tocou-lhe no braço e pediu-lhe que explicasse o que acontecera e quem eram os estranhos. Juntou-se de imediato grande parte do clã para escutar.

— Temos dois belos auroques para ir buscar. — Cemil aproximou-se também, sorrindo para o irmão, havia uma nódoa negra na face direita e um corte na testa que eram as suas mais recentes “medalhas” e os dentes avermelhados exibiam um espaço negro onde haviam desaparecido alguns. — Vamos é ter de os dividir com os nossos novos amigos.

— Mas que são eles? — Era evidente a suspeição de todos, verbalizada por Lemi, que, entretanto, se juntara para saber as novidades.

— Dizem que o seu povo se chama Hati e vivem numa grande povoação toda construída em pedra. Para nós, são o povo das cascatas que se localiza a cerca de dois dias subindo o rio. — Esclareceu Cemil limpando um fio de sangue que lhe escorria para a barba. — O povoado chama-se Hatiweik falam como nós, mas há muitas palavras que não entendemos.

— Estávamos escondidos a vigiar uma enorme manada de auroques, havia uma fêmea mais pequena que se distanciava lentamente dos outros. — Começou a contar Naci. — Esperávamos que estivesse longe o suficiente para o apanharmos sem que o resto da manada se apercebesse…

— … quando aqueles malucos apareceram vindos não sei de onde a atacar o animal que nós vigiávamos. — Continuou Cemil rindo com a sua boca vermelha. — Claro que um enorme macho, que estava por perto, investiu sobre eles assim que se mostraram.

— Num instante, a presa, os estrangeiros e o terrível macho corriam todos na nossa direção. — Naci arregalou os olhos e ergueu as mãos simulando as hastes do auroque.

— Aqui o teu filho, — Cemil colocou o braço sobre o filho do chefe —, sem deixar que o medo o vencesse, ergueu-se da vegetação e atirou a lança certeira sobre o pescoço da nossa presa. O pior é que já estavam todos em cima de nós e eu demorei muito a levantar-me.

— Foi uma enorme confusão. — Confirmou Naci rindo-se com vontade. — Assustaram-se todos connosco e o macho, que vinha logo atrás, começou a distribuir cornadas em todas as direções.

— Quando dei por mim, — acrescentou excitadamente Cemil, exibindo mais uma vez a falta de dentes na boca ensanguentada —, voava de cara contra uma pedra.

— Eu levei com um dos Hati em cima. — Continuou o filho do chefe. — Depois o auroque interessou-se por outro deles e ainda lhe deu umas boas pancadas, antes de nós todos juntos acabarmos com ele.

— Ainda bem que os deuses vos trouxeram a salvo a todos. — Erem suspirou de alívio, mas logo acrescentou, batendo nas costas do irmão e rindo: — A uns mais inteiros que outros.

Todos riram com gosto, mas logo o chefe acrescentou: — Falem com Lemi para terem dois grupos a sair às primeiras luzes e trazer as carcaças da vossa excelente caçada. Eu agora verei como está o estrangeiro.

A tenda de Nehir era invulgarmente grande; dava para estar em pé com uma criança às costas e cabiam três homens deitados ao comprido e quatro à largura. As peles de auroque, cozidas umas às outras, eram suportadas por enormes presas de mamute. Fora o primeiro lar de Erem e da família antes do chefe se decidir trocar por uma casa de pedra, mais pequena e logo mais fácil de aquecer. A filha não os quis acompanhar e continuou lá com o irmão Nuri, posteriormente assassinado pelos homens-macaco. Atualmente, aquele era o local onde todos os feridos e doentes recorriam, antes mesmo de ir pedir a Zia que intercedesse junto dos deuses.

Erem, acompanhado de Alim, que chegara, entretanto, informado do que se passara na caçada, aproximaram-se da entrada da tenda. Alguns membros do clã tentavam convencer os dois estrangeiros de que, se alguém podia salvar o seu companheiro, era aquela curandeira. Calaram-se ao avistar os recém-chegados.

O chefe aproveitou para deitar mais uma mirada ao vestuário dos dois jovens que lhe devolveram uma pequena, mas respeitosa inclinação de cabeça, enquanto franqueavam a entrada.

Toda a tenda estava na penumbra, apenas iluminada pela luz vermelha do braseiro ao centro e o pequeno recipiente de argila, com gordura, que ardia na mão da curandeira. O estrangeiro estava deitado no chão, sem a túnica, apenas com um pedaço de tecido embrulhado na cinta.

Nehir, de joelhos, já havia limpado o longo ferimento do rosto do paciente e observava-lhe o pescoço, enquanto ele respirava com dificuldade em inspirações curtas e rápidas. A pele das faces tornava-se azulada e por vezes abria muito os olhos, como um peixe fora de água. Os braços batiam no chão alternadamente e empurrava com os pés, como se quisesse afastar-se de alguma coisa.

A curandeira olhou com preocupação para o pai e depois para o doente.

— Escapa? — Quis saber Erem.

— Não sei. — Ela fez uma careta com os dentes cerrados. — Está muito mal. Não consegue que o ar entre nele e se continuar assim morrerá em pouco tempo.

— Mas não tem furos no peito nem nas costas. — Observou o chefe.

— Pois não. — A filha concordou, tornando a olhar para o estrangeiro que parecia cada vez mais aflito. — Mas tem o pescoço muito vermelho e parece que não o consegue mexer. Acho que o espírito zangado do auroque que eles mataram se agarrou ali e vai sufocá-lo.

Zia entrou na tenda no preciso momento em que estas palavras eram proferidas. Examinou o pescoço do paciente, afastando-lhe as mãos com que se debatia.

— Não podemos fazer uma oração para expulsar o mal? — Sugeriu Erem, torcendo a boca em desagrado. — Um sacrifício com o fígado do animal? O coração?

— Acho que morre antes disso. — Concluiu Zia para os outros dois, antes de se voltar para a filha: — Ainda te lembras, quando estávamos com Birol, de como Nida, a mulher do xamã Gokai salvou o teu tio depois do ataque do urso?

— Eu era pequena, mas lembro-me bem. — Nehir baixou os olhos. — Também já me lembrei disso, mas tenho medo de o fazer.

— Fez um sacrifício com a cabeça do urso e as pontas das lanças dos guerreiros que o mataram… — Erem recordava-se — … ao por do sol!

— Ele não aguenta até ao por do sol. — Sentenciou Zia. — Além disso, não foi só o sacrifício que Gokai fez…

Um gemido alto, apesar de sufocado, fez com que os companheiros do ferido entrassem alarmados.

— … Nida fez-lhe um buraco para entrar o ar. — Concluiu Nehir sem levantar os olhos.

— Um buraco? — Alarmou-se um dos estrangeiros?

— Não consegues salvar Tibaro? — Quase sussurrou o outro, abordando diretamente Nehir.

— Ele tem um mau espírito, possivelmente o auroque que mataram, no pescoço e não o deixa respirar. — Atirou Zia de chofre.

— E tu queres cortar-lhe o pescoço? — O primeiro dos estrangeiros indignou-se.

— Espera, Himono. — Tornou o outro, antes de questionar, desta vez, Zia. — Achas que o salvas? Que pensas fazer?

— Já vimos salvar um parente nosso com o mesmo problema há muito tempo. — Explicou a mulher do chefe. — Não sabemos se resulta, mas, se não fizermos nada, só poderemos confiar nas orações a Swol. Penso que não verá os primeiros alvores.

— Mas… — o chamado Himono continuava escandalizado —… cortar-lhe o pescoço? Estás louco Kiala? Temos de o levar para casa, para Mirsulo, ele saberá o que fazer.

— Não é cortar o pescoço, é apenas um buraco… — tentou esclarecer Nehir.

— Mirsulo é tão curandeiro como tu ou eu. — Sentenciou Kiala. — Teria de ser o curandeiro Savirio e não sei se aguentará até lá.

— São livres de partir quando quiserem, como eram livres quando chegaram cá. — Esclareceu Erem. — O vosso amigo está muito mal e se a minha mulher e filha dizem que não escapa se não se fizer nada, acredito que assim será. Se não quiserem fazer nada, nada faremos. Se quiserem levá-lo ao vosso curandeiro, enviarei alguns homens para vos acompanhar. De todas as formas, faremos um sacrifício no santuário, assim que formos buscar a cabeça e as mãos do auroque, para que Swol ajude a libertar os ares para o vosso amigo.

— São precisos dois dias para chegar lá, com todos saudáveis. Com ele assim, levaremos mais de três. Mandamos dois dos nossos avisar Mirsulo do sucedido com o filho, mas serão dois dias para lá e outros dois para cá. — Concluiu o chamado Kiala. — Também compreendo que ele não aguentará de nenhuma forma. — Baixou os olhos pensativamente.

— O sacrifício deve ser realizado ao nascer do dia ou ao cair da noite. — Explicou Zia. — Não podemos falhar. Se aparecer um pouquinho do sol nas montanhas do nascente antes de começarmos, terá de ser adiado para o por-do-sol. Se, nessa altura, já não houver luz nas montanhas de poente, não se poderá começar e adia-se para o dia seguinte…

Por fim, Kiala exclamou, decidido: — Iremos buscar a cabeça e as mãos da besta. Com a tua autorização, pedirei a ajuda de Naci e mais alguns.

— Podes dispor de tudo o que é nosso para salvar este homem. — Acedeu Erem.

— Sei que Mirsulo ficará furioso, se Tibaro estiver morto quando ele chegar, mas mais furioso ficará se souber que nada fizemos para o salvar. — Kiala falou diretamente para o companheiro. — Agora deixemos os curandeiros trabalhar.

 

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13 - O Cativo


15 - Medicina Primitiva


Introdução
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terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Cativo

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 13

O número dos nossos inimigos varia na proporção do crescimento da nossa importância. Acontece o mesmo com o número dos amigos.

Paul Valéry

Filósofo, escritor e poeta francês

(1871-1945)

 

 

Indecisos sobre o que fazer com o ladrão, amarraram-no a uma estaca no centro do povoado, mesmo em frente à casa de Erem. Na fúria vingativa, os aldeãos despojaram-no das roupas, encheram-no de pancadas e atiraram-lhe toda a espécie de objetos inomináveis. As tentativas para extrair algo de inteligível dele, porém, foram infrutíferas. Não conseguiam perceber a algaraviada do invasor, apesar de, por vezes, uma ou outra palavra parecer familiar. Chamaram vários dos estrangeiros residentes, mas nenhum conseguiu entabular uma comunicação. Por gestos, conseguiram perceber que ele provinha de algum lugar distante para lá das montanhas a norte e que eram um clã numeroso.

O pequeno e improvisado, “conselho” com Erem, Lemi e os recém-admitidos, Alim e Tailan, discutiu o pouco que sabia. Se por um lado sentiam-se mais descansados por saber que os ladrões estavam longe, por outro, o facto de chegarem até ali, significava que se movimentavam… talvez na direção da aldeia. Além disso, possuíam armas de cobre; facas, espadas curtas, as pontas das flechas e até os próprios arcos estavam decorados com finas folhas trabalhadas do metal. Estavam obviamente perante um povo bem armado e com conhecimentos para além dos deles.

Distribuíram as armas pelos melhores guerreiros, mas Erem, satisfeito com o punhal que lhe fora oferecido há algum tempo por Alim, abdicou da espada que lhe caberia e permitiu que fosse entregue a outro.

Como havia trabalhos a desempenhar, gradualmente, o grupo que circundava o cativo foi ficando menor, reduzindo-se apenas às crianças que começaram a divertir-se atirando-lhe pedras. O homem gritava na sua língua incompreensível e rosnava-lhes sem sucesso, para alegria dos petizes. Foi Zia quem interveio fazendo-os dispersar. Antes dela própria se ir embora, ainda deitou um olhar preocupado ao prisioneiro; que haveriam de fazer com ele? Deveriam simplesmente matá-lo como muitos sugeriam? Oferecê-lo a Swol no círculo de pedra? Seria uma honra para os deuses ou iriam conspurcar o lugar sagrado?

Já não chovia há uns dias e as planícies estavam forradas de erva tenra que veados e auroques pastavam livremente. Havia muito trabalho a caçar e a desmanchar as carcaças para secar as carnes. Além disso, também beneficiando dos dias que cresciam, a operação de construção do santuário recomeçou e as equipas para arrastar as pedras já saíam todos os dias para a sua atividade.

Ao anoitecer, todos regressavam e a fogueira no centro da aldeia já ardia, acendida pelas mulheres. Apesar da casa da reunião já ter sido terminada, desde que não nevasse ou chovesse, muitos preferiam continuar ali ao ar livre, em vez de fechados atrás de paredes.

À medida que a luz desaparecia e o número de pessoas em volta da fogueira crescia, também os murmúrios acerca do prisioneiro se faziam ouvir. À semelhança das crianças, também os adultos atiravam pedras, ossos, ou mesmo brasas ao cativo.

A chegada de Erem e Zia impôs algum respeito e os grupos familiares retomaram as suas atividades normais colocando pedaços de carne sobre as brasas que depois dividiam entre si. Alguns bebiam uma pasta de água e cereais mal triturados, acompanhados de carne seca. Tudo era melhor quando havia fruta, mas, para já, tinham de se contentar com algumas bagas ou amêndoas e nozes bolorentas.

Faltava apenas um dos grupos de caça… especificamente o de Naci e Fikri, que era o que normalmente se arriscava mais a afastar-se mais da aldeia, mas também era frequentemente o mais bem-sucedido.

Em volta da fogueira, as famílias faziam a refeição e falavam entre si ou em conversas cruzadas com os grupos vizinhos. Erem e Lemi, em grupos separados, debatiam o que deveriam fazer com o prisioneiro. Este último era de opinião que tinham de o matar; era culpado de roubo e quase de certeza matara ou colaborara nas mortes do último assalto. Ou entregavam-no aos familiares das vítimas para se vingarem, como muitos exigiam, ou sacrificavam-no aos deuses.

Nehir, normalmente silenciosa nestes debates, interveio: “Swol e Mensis acasalaram e velam pelos homens desde Manu[1]. Trazem a noite e o dia, as plantas e os animais que comemos, tudo isso para que os seus filhos não precisem de se matar e comer ou serem comidos. Matar outros homens é mau. Os deuses não gostam.”

Zia assentiu para os outros gravemente e depois sorriu e acariciou carinhosamente o braço da filha.

Apesar da conversa importante, Erem estava distraído, atento a todos os movimentos para além da fogueira, sempre na esperança de ver chegar Naci e o seu grupo de caça. Ele era o seu eterno rival, que contestava a maioria das suas decisões, mas era também o alvo da sua admiração, amor e desvelo. Amava os outros filhos, claro; Nehir, a curandeira, sempre serena, atenta e mística, Asil, que escavava as pedras e bocados de madeira transformando-os em objetos de culto, Altan e Tekin, os mais velhos e mais sensatos. A angústia instalou-se-lhe no peito ao lembrar Nuri, morto pelos homens-macaco. Ninguém poderia duvidar do seu amor por todos os filhos e orgulho em todas as suas conquistas, mesmo as de Asil, que alguns homens desprezavam como sendo fraco e pouco dado a lutas; as suas esculturas de madeira levavam longe o nome de Barinak e as pedras do seu amado santuário ficavam maravilhosas após terem sido escavadas por ele… só era pena que demorasse tanto tempo. Às vezes ia espreitá-lo nas suas visitas ao santuário, a bater diligentemente com um pedaço de basalto num dos enormes monólitos até conseguir extrair da sua superfície o focinho de um leão, um cervo, ou mesmo um gafanhoto. Mas era Naci a sua eterna fonte de preocupações; arrojado, atirava-se de peito aberto a qualquer luta e saía quase sempre vencedor. Os deuses sorriam-lhe desde o nascimento, que acontecera numa noite escura, de grandes relâmpagos e trovões que abafavam os gritos de Zia. Durante o seu crescimento revelou-se um líder nato; os outros jovens seguiam-no cegamente deslumbrados com a sua coragem e ímpeto… mas Erem temia faltar-lhe ainda muita sensatez. Era demasiado jovem e as suas ações punham muitas vezes todos em risco, além dele próprio. Lemi dizia que Birol, o avô, também fora assim, mas foi gradualmente ganhando calma e discernimento.

Erem queria a opinião do filho, embora soubesse que na maior parte das vezes realizaria precisamente o oposto, deixando-o furioso. Servia-se dele como um dos pratos de uma balança onde tentava equilibrar a impetuosidade dele e a sua própria sensatez. Ao mesmo tempo, mostrava ao filho que, na maior parte das vezes, agir sem refletir seria um erro. Naci, porém, achava que o pai ficava velho e fraco e já tardava a hora em que um dos irmãos, ou mesmo ele, deveria tomar o seu lugar.

O chefe estava envolvido nesses pensamentos, com o olhar fixo no miserável prisioneiro amarrado ao poste, rodeado por imundícies e pedaços de comida que adultos e crianças lhe atiraram. Estava completamente nu e a sua pele clara marcada pelas equimoses das pancadas que levara. Só não estava já morto pelo respeito que Erem exigira. Como um animal selvagem encurralado, mantinha-se curvado e os olhos vivos circulavam pelos seus captores, sempre pronto a esquivar-se ao que lhe arremessavam. “Tenho de lhe deixar umas peles para dormir” — Refletiu de si para si. — “Não quero que morra gelado. Precisamos de saber o máximo que pudermos dele e do seu clã. Só então se decidirá o que fazer com ele.”

Murmúrios alterados e pequenos gritos de algumas mulheres fizeram-no olhar para além das casas mais próximas, a distância limitada pela escuridão. Ali pareciam materializar-se dois guerreiros magros, vestidos com túnicas compridas. Traziam o cabelo em finas tranças decoradas com pequenas esferas, empunhavam lanças bem direitas, mais altas um palmo do que eles. Vários membros do clã levantaram-se alarmados e preparavam-se para enfrentar a ameaça, quando, pelo meio dos recém-chegados, passou a trote um dos lobos que Cemil, um dos irmãos de Erem, criara desde filhote. O predador domesticado atravessou calmamente o centro do aldeamento, rosnando aos que estavam demasiado próximos, em direção ao amontoado de troncos onde dormia. Atrás dos estranhos, que se mantiveram imóveis, começavam a sair da escuridão os esperados membros do grupo de caça, seguidos por Fikri e Cemil. Dois homens arrastando uma padiola fechavam o cortejo.



[1] O Primeiro Homem

0_1925_Pikt_Doebel
12 – As Aparências Iludem

 

 

A seguir:

 

Decisão Dificíl

Na Madrugada dos Tempos
Introdução – Na Madrugada dos Tempos

 

 

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