segunda-feira, 19 de março de 2018

Uma Casa nas Ruas - 4ª parte

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


O CÉU DOS PÁSSAROS



Os dias seguintes foram alegres. Durante o dia, pediam umas moedas aqui e ali, roubavam nos cafés as gorjetas e os pagamentos esquecidos e à noite, contavam histórias da prisão ou do abrigo, para espantar o frio. Xico não perdeu o hábito de assaltar os automóveis com objetos à vista e ainda conseguiram algum dinheiro extra, mas sempre de atalaia, não fossem o Vesgo ou o Pinguinhas estarem por perto.

O Passarão não queria andar pela Boavista, com medo de encontrar um dos seus conhecidos do abrigo, que ele abandonara de forma tão ingrata, por isso vagueavam mais pela Foz, ou pela zona da Alfândega, roubando turistas incautos.

Um fim de tarde, nas arcadas da Ribeira, tiveram de se esgueirar pelas ruelas estreitas, para fugirem às vistas do Manco, que “guardava” os carros no parque da Alfândega. Se aquele estava ali, o Manel Preto, ou mesmo o Vesgo, não andariam longe.
Passaram pelas esplanadas interiores e de repente, nas costas de uma cadeira, sem ninguém à vista, ali estava um belo casaco de couro, acompanhado de um avantajado estojo de máquina fotográfica em cima da mesa. Sem um som, Xico olhou em volta, pegou o casaco e entregou o estojo ao Passarão, exibindo um dedo atravessado sobre os lábios, antes do gesto para correr.
Au secours! Des voleurs! — Uma voz masculina ecoou entre as paredes.
Correram como loucos, mas, um homem enorme, de cabelos compridos e óculos de sol, ao estilo do John Lennon, estava quase a apanhar o afogueado Passarão. Este, vendo-se em perigo, atirou com o estojo à cara do turista, que abateu-se desamparado, numa confusão de peças da câmara fotográfica, despedaçada com a queda.
Só pararam a correria, completamente sem fôlego, nas arcadas de Miragaia, onde normalizaram a respiração e avaliaram a “presa”. O casaco era de couro genuíno, mas demasiado grande para Xico, o que foi uma felicidade para o Passarão. Havia porém outra surpresa, a carteira; para além dos cartões de crédito, que seriam vendidos facilmente, tinha quase seiscentos euros em notas. Saíra-lhes a sorte grande!
Disfarçaram cuidadosamente o casaco e caminharam, sem levantar suspeitas, até à mercearia onde habitualmente faziam algumas compras. Vinho, salpicão, pão, batatas fritas, queijo… seria um jantar digno de reis! Xico nem protestou quando o amigo quis incluir um frasco de Nutela, alguns biscoitos e chocolates no rol.
Recolheram ao vão da ponte que habitavam e dedicaram-se a consumir os deliciosos acepipes, que estavam riscados da dieta habitual há demasiado tempo, bem regados com o vinho caro, mas não necessariamente bom. Foi um longo e bem disposto jantar, onde riram da aflição que passaram e da cara do infeliz turista quando a máquina fotográfica lhe bateu e se estatelou no chão.
Os estômagos já estavam saciados e o vinho já lá fermentava, quando Xico resmungou que a câmara fotográfica deveria valer muitos euros e que ali ficou estatelada em mil pedaços. Censurou o amigo, numa voz arrastada, que se ele não fosse tão gordo, correria mais que o palerma do “franciú”.
Enquanto estavam nestas cogitações, ouviram um baque seco ao passar de um automóvel. Na via rápida, logo abaixo deles, uma pomba rebolou pelo asfalto.
Coitadinha! — O Passarão apanhou a ave, que se mexia com dificuldades, com as asas numa posição impossível.
Deixa-a. — Advertiu Xico torcendo o nariz. — Essa já está a meio caminho para o outro lado. Além do mais, ainda podes apanhar alguma doença com isso.
Mas a pobrezinha está ferida…
Está mais morta que viva! Põe-na para aí num canto e  deixa-a morrer sossegada.
Achas que ela vai para o céu, como nós?
Como nós?!? — A gargalhada cínica de Xico ecoou no vão da ponte. — Quem te disse que nós vamos para o céu?
Não vamos? — Os olhos enormes do Passarão abriram-se ainda mais de espanto, fitando o amigo. — Mas o padre Mateus, quando me ensinava a catequese, dizia que íamos todos para o céu.
Devia ser um bom tretas esse teu padre! — Os efeitos da digestão e os vapores do álcool começavam a “pesar” e a deixá-lo sonolento. — Quando o cabrão do anjo da morte nos vier buscar, há-de deixar-nos numa encruzilhada qualquer e a gente que se “desmerde”. De certeza que o céu é como um belo condomínio fechado: quando o porteiro, o São Pedro, vir essas tuas roupas “de marca”, manda-te logo pedir noutra freguesia! Nós somos filhos de um deus menor, meu irmão. O nosso deus não é o mesmo dos bancários ou políticos; nem é o mesmo deus dos “bófias”! Nascemos para enganar e ser enganados a vida toda… depois de morrer, se alguma coisa houver, não há-de muito diferente disto. Os melhores lugares estarão ocupados pelos que chegaram primeiro e esses reservarão os outros para os seus amigos… não haverá sítio para nós.
Traído nas suas convicções mais profundas, Manuel fixou o olhar, sem ver, no trânsito que corria veloz na estrada. Aquilo era algo com que não estava a contar. Aceitava a fome, o frio e os maus tratos; até o facto de não ter uma casa onde dormir, porque sabia que um dia iria para o céu, onde não lhe faltaria nada. As lágrimas sulcavam-lhe o rosto quando perguntou:
Então e esta pomba também não vai para esse céu?
Achas? Pensas que eles querem lá esses ratos com asas a cagar nas estátuas e nas asas dos anjos? Ela deve de ir para algum céu dos pássaros, ou outra merda qualquer. Um sítio onde possam voar à vontade, comer o que encontrarem e cagar onde lhes apetecer… agora deixa-me, que quero dormir.
Xico enrolou-se e puxou o cobertor para cima. Manuel aconchegou a pomba no seu próprio cobertor e afagou-a ternamente. A cabeça da ave tombava e demorava a ganhar forças para se erguer novamente. A única coisa que se movia sempre rápido, era o piscar dos pequenos e assustados olhos que o fitavam. Por fim, a cabeça não se ergueu mais e os olhos pararam de piscar. O bom gigante chorou mansamente, com a testa encostada no chão e a mão pousada sobre o cadáver, como que tentando impedir que o anjo da morte viesse reclamar a pequena alma.

***

Depois do sucesso do furto na Ribeira, a dupla permitiu-se uns dias de menor atividade e, ao mesmo tempo, mudança de ares; não fossem ser reconhecidos pelas margens do Douro.
Vagueavam pelo jardim central da Rotunda da Boavista, com Xico sempre atento às “oportunidades”. O companheiro, brincando com as pombas, mantinha um dos olhos nos caminhos em volta, não fosse aparecer um dos “doutores” para exigir-lhe o dinheiro que  deram para o jornais, que nunca chegaram ao destino.
Manel! — Xico alertou o amigo, colocando-lhe uma mão a impedir o avanço. — Olha ali!
A poucas dezenas de metros, um homem magro de raça negra, cabelo grisalho e barba rala da mesma cor,  atravessava a rua, a partir do centro da rotunda.
É o Manel Preto! — O Passarão reconheceu, assustado.
Que anda esse filho da p** a fazer aqui? Ele quase não sai da Ribeira! — Exclamou Xico olhando rapidamente em em volta. — Não gosto nada disto. Vamos embora!
Puxou o braço do companheiro e aceleraram o passo na direção contrária à do bandido. Contornaram as estruturas das diversões, ali montadas e quase bateram de frente com um magricela de nariz afilado e dentes proeminentes.
Ora vejam só! — Exclamou o recém chegado, com voz fanhosa. — Tone! Ó Tone! Estão aqui!
Cala-te, Pinguinhas do c**! — Exigiu Xico, agarrando o outro pelos colarinhos. — Parto-te os cornos, se o chamas! Foge Manel!
O visado ficou sem saber que direção tomar, enquanto as lágrimas brotavam dos olhos.
De repente, já o Vesgo chegava junto dos três e despachou dois sonoros “cachaços” no pobre Passarão, que chorava agora como uma criança.
Sabes o que me disseram na Ribeira, seu monte de merda? — Perguntou o Vesgo agarrando o cabelo de Xico e abanando-lhe a cabeça violentamente, fazendo-o largar o outro facínora. — Que palmaste seiscentos “paus” a um “franciú”.
Ai! — Gemia a vítima. — É mentira, quem te disse isso?
Terá sido um passarinho, senhor Passarão? — Agora era o Pinguinhas que saltava para chegar e bater no pescoço vermelho do infeliz.
Estás a fazer-me de parvo? — Gritou o bandido, salivando a enorme barba, trocando ainda mais os olhos e sacudindo-o com ainda mais violência. — O casaco do burro do teu amigo de onde veio? É que foste roubar na nossa área, sem autorização e nem sequer deste uma parte ao Manel Preto. Ele já te vai “fazer a folha”! — Tirou um telemóvel do bolso e começou a marcar um número.
Foge, Manel! — Xico atirou o telemóvel ao chão e tentou soltar-se do aperto férreo que lhe segurava o cabelo.
Envolveram-se numa luta, mas Xico, mais franzino, não era adversário para o seu encorpado oponente, que o socou no rosto várias vezes, com violência.
O Passarão, vendo o amigo quase sem sentidos, usou a força que não sabia que tinha e, com um simples empurrão, fez o Pinguinhas voar para o meio da relva e terminar numa grotesca cambalhota invertida. Em dois saltos, estava junto ao surpreendido Vesgo, que foi agraciado com um potente soco, semelhante a um martelo, mesmo no meio dos olhos. O bandido abateu-se como um castelo de cartas.
Recuperando a sua personalidade dócil, o bom gigante ajudou o amigo a erguer-se. Este último, assim que recuperou das pancadas e do espanto, puxou pelo braço do companheiro enquanto gritava um “Vamos depressa!” Correram como loucos enquanto os inimigos se levantavam, atordoados.
Terminado o jardim, havia a rua, com imenso tráfego para atravessar. O Vesgo, vertendo sangue do nariz, estava quase a apanha-los, bufando insultos. Atrás dele corria o Pinguinhas, também de rosto ensanguentado.
Num pânico cego, o Passarão libertou-se da mão de Xico e atirou-se numa desnorteada travessia da estrada. 
Chiar de travagens e estrondos de chapa e vidros contaram o resto da história; Xico assistiu, em choque, ao curto voo do infortunado companheiro, que terminou num baque surdo, como um saco. Caiu de rosto para cima e cabeça ressaltou com força no chão. Bandos de pombas levantaram a um só impulso por todo o jardim.
Gritos de terror e expressões de espanto ouviram-se de vários pontos do jardim e da rua, várias pessoas acorreram à vítima imóvel no chão, mas Xico chegou primeiro. O Vesgo e o Pinguinhas, não querendo ser alvo de atenções indesejadas, desapareceram rapidamente.
Puxou um pouco a cabeça do amigo e pousou-a no nos joelhos. Os olhos estavam raiados de sangue, que também corria fracamente do nariz e da boca. Todo o corpo do gigante tremia, como que acometido de súbita febre.
Que fizeste tu, meu idiota? Porque não esperaste? — Lágrimas corriam no rosto coberto de equimoses de Xico. — Vê o que fizeste!
Xico... — Gemeu fracamente o amigo. — ...achas que vou para o céu?
Não digas isso! Vais mas é para o hospital e eles remendam-te todo, ficas bom num instante!
Eu não quero ir para o céu, Xico! — Também o gigante chorava enquanto tossia espuma rosada. — Não vou para o céu do padre Mateus. — Novo acesso de tosse. — Vou fugir para o céu dos pássaros… achas que me mandam embora de lá...?
As tremuras pararam de repente.
Não meu amigo. — Xico abraçou carinhosamente a cabeça do companheiro, enquanto chorava sem pudor. — Eles não te fariam uma desfeita dessas!
Os dois amigos quedaram-se rodeados por um largo círculo de pessoas, por sua vez cercados pelos automóveis parados nas mais estranhas posições. Por cima das suas cabeças, bandos de pombas esvoaçavam alegremente, umas em volta das outras, como que dando as boas vindas a um amigo há muito esperado.


*** Fim da 4ª parte ***





3-Ausencia Forçada
5-O Regresso
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1 comments:

M.L.M disse...

Quem te ler , é capaz de pensar que já andaste nesta vida mas eu sei que não é apenas o resultado de muitos estudos, sobre estes desprotegidos da sorte.


os meus parabéns.

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