Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
AUSÊNCIA FORÇADA
Ninguém reconheceria Xico, naquele homem parado em frente à obra de construção de mais um prédio de apartamentos da cidade: Cabelo curto, calça e blusão de ganga (sem rasgos ou remendos) e sapatos pretos, cansados, mas engraxados. Tudo fornecido pela assistência social da cadeia, claro, pois se ele nada tinha quando o “internaram” há seis meses no presídio, agora pouco melhor estava. Consigo, além da roupa “nova”, apenas tinha cerca de trezentos euros, ganhos a trabalhar na carpintaria da prisão, que era o que restava após as viagens de regresso. Não merecia seis meses por um simples roubo a uma viatura, sucede é que conseguiram provar mais dois assaltos perpetrados por ele, sendo que o primeiro deles, fora durante o período de pena suspensa de uma outra condenação. Nove meses de prisão! Conseguiu sair com dois terços da pena cumprida, por bom comportamento.
A obra que observava, desalentado, erguia-se no local onde vivera vários meses com o seu amigo Manel “Passarão”; a velha ilha, antigo bairro de trabalhadores de uma fábrica já desaparecida. As casas arruinadas, o pequeno casebre onde viviam, o pátio onde tantas vezes comeram e conversaram… tudo se foi. Por onde andará o Passarão?
Começou a caminhar ao longo da rua, a pensar nas suas perspetivas de futuro… não estava preparado para voltar aos vãos de escada ou às ombreiras das portas para dormir. Nas últimas semanas de prisão, já só pensava no pequeno casebre que ele e o passarão limparam e onde viviam como “reis do pátio”, na ilha abandonada, de onde ele correra com alguns companheiros de rua. Não se conseguia imaginar outra vez a arrastar cartões e cobertores por essa cidade fora, a dormir onde calhava.
— Olha quem ele é! — Uma inconfundível voz fanhosa fê-lo estremecer e olhar para o lado, a tempo de ver dois homens, um enorme, de careca polida e barba enorme, que lhe chegava ao peito, e o outro enfezado, de nariz adunco e vermelhão. Eram o Vesgo e o inseparável Pinguinhas… e estavam a atravessar a rua na sua direção.
— Olá rapazes. Não quero confusões, eh? — Pediu Xico erguendo as mãos abertas à altura dos ombros.
— Ah não queres, é? — Vesgo quase encostou o nariz ao dele enquanto lhe dava um soco leve, no estômago. Habituado ao “protocolo”, Pinguinhas colocou-se estrategicamente atrás de Xico e segredou-lhe ao ouvido:
— Estás f** pá, vais “mama-las” todas juntas!
— Espera lá Vesg… Tone! Tem pena de mim, “meu”, saí ontem da “choldra”! — Xico, intoxicado pelo indescritível hálito, quase tratou o Vesgo pela sua odiada alcunha, o que resultaria certamente numa tareia.
— Ah! Então foi aí que te enfiaste, filho de uma p**! Ninguém sabia onde andavas, apanharam-te foi? — O Vesgo soltou uma gargalhada, após o que o mirou de alto abaixo. — E vens aí todo janota, aposto que tens umas notas contigo. Tu és daqueles que gosta de trabalhar na “choldra” para te pouparem o traseiro.
Os apressados transeuntes que se cruzavam, em ambas as direções da calçada, olhavam para o trio, uns com curiosidade, outros com receio, mas ninguém mostrava vontade de intervir. O comum dos cidadãos não se intromete nos “afazeres” de gente com aspeto de bandido e, a menos que seja muito incomodado, ou humilhado, não se manifesta, por maior que seja a injustiça presenciada. Para ele, as pessoas “mal vestidas”, ou aparentando menos asseio, são praticamente invisíveis, por isso é possível morrer-se num passeio, numa das mais movimentadas artérias da cidade, sem que ninguém dê por isso.
— Mostra lá a “guita”! — Exigiu o Vesgo ao mesmo tempo que intrometia a mão, sem cerimónias, por dentro do casaco do outro e extraía a carteira.
— Então, Tone. — Xico parecia prestes a chorar. — Custou-me a ganhar isso…
— Não te preocupaste com os ganhos do Manco, pois não, seu tinhoso? — Gritou-lhe o Pinguinhas ao ouvido. — Quando roubaste o carro no “pouso” dele, o Manel Preto deu-lhe uma tareia e tirou-lhe o dinheiro todo que ganhou.
— Que é isto? — O Vesgo escandalizou-se, erguendo algumas notas de vinte e dez euros. — Cem “paus”? Estás a gozar comigo?
— Que queres? — Xico encolheu-se, nervoso. — O gajos pagam cada vez pior!
— Deixa-te lá de merdas, pá! — O outro não se deixava enganar. — Tens aí mais escondido! Passas para cá ou tenho que te dar nas ventas?
Com visível sofrimento, Xico tirou uma nota de cinquenta euros, que tinha escondida no cinto e que desapareceu rapidamente a um gesto do Vesgo.
— Vês como estás a ficar esperto? — Disse este beliscando com força uma das bochechas da vítima.
Repentinamente, o Pinguinhas passa de um salto ao lado do Vesgo e dá-lhe uma cotovelada antes de se afastar em passo largo. Ambos repararam, do outro lado da rua, a viatura da PSP, parada, de onde dois agentes observavam atentamente.
— Safaste-te por agora, “gandulo”. — Ameaçou o Vesgo antes de seguir atrás do amigo, ao mesmo ritmo. — Mas não perdes por esperar. As nossas contas só estão meio saldadas!
— Filho da p** — Resmungou Xico, de si para si, enterrando as mãos nos bolsos em fúria e acelerando o passo na direção contrária à dos seus molestadores. — Um dia ides paga-las todas juntas.
Percorreu as ruas dos quarteirões mais próximos, espreitando em todas as reentrâncias e perguntando aos ex companheiros que reconheceu, pelo amigo Passarão; ninguém sabia o que era feito dele. Começava a ficar preocupado.
Sentiu sede, ao passar numa esplanada abrigada por uma arcada, mesmo em frente a uma das faculdades da Universidade do Porto. Várias vezes passara ali, pelo meio das dezenas de estudantes que frequentavam o local, para roubar os pagamentos ou as gorjetas deixadas em cima das mesas. Agora entraria como cliente.
Procurou uma mesa desocupada e sentou-se, começando a procurar algumas notas num dos esconderijos do forro do casaco.
— E se eu te pusesse a andar daqui, com dois pontapés nos fundilhos? — Assustado, Xico enfrentou o olhar fulminante do empregado que o mirava com o tabuleiro reluzente debaixo do braço e as mãos na cintura. — Não era bom?
— Que é? — Retorquiu, recuperando a calma e a insolência. — Sou um cliente! — Exibiu uma nota de vinte euros. — Tenho dinheiro!
— Pois então, o que vai ser? — Quis saber o outro, tirando-lhe a nota da mão com mestria. — Esta é melhor ficar do lado de cá, porque nunca se sabe.
— Eh, pá! — Insurgiu-se o ex presidiário. — Vou fazer um pedido e vais ter que me dar o troco!
— Mande pois, vossa excelência! — O empregado sorriu do seu próprio desplante.
— Quero uma cerveja!
— Uma cerveja! E ainda são 11 horas da manhã! Não será melhor comer qualquer coisita? — Estava a tornar-se impertinente, a gozar a oportunidade, enquanto erguia a nota no ar. — Quanto mais gastares daqui, menor será a minha gorjeta.
— Gorjeta!?! — Xico não aguentou mais. — Quem te disse que ias ter gorjeta?
— Digo-to eu. Quem tem “o guito” na mão? — A nota continuava erguida no ar. — Vais dar-me uma parte do que me tens roubado, quer queiras quer não! Trago alguma coisa de comer? Olha que bebes uma cerveja por vinte euros!
— P** que pariu! — Gemeu. — Mas hoje só me saem ladrões?
— Eh, lá! Aqui o único gatuno é tu, ouviste, bandalho? Roubaste já aqui muito dinheiro, basta-me chamar o patrão e levas um “enxerto de porradas” que nem te seguras nas pernas! — O homem perdeu o ar de gozo e insistiu ameaçadoramente: — Vais comer alguma coisa ou não?
— F**! — Rendeu-se, coçando a cabeça exasperado. — Traz-me um prego em prato!
Sem se dar ao trabalho de responder, o empregado fez uma elegante rotação e caminhou em passos largos para o interior do café.
Xico revolveu os bolsos e os esconderijos e contou, disfarçadamente, o dinheiro que lhe restava… estava quase sem nada! “Cento e cinquenta para o “boi” do Vesgo e agora vinte para este chupista! Estou tramado.” — Lamentou-se.
O prato foi pousado com delicadeza sobre a mesa, logo seguido pela cerveja, o copo e os talheres. O ex presidiário olhou para o empregado, ressentido. Este devolveu-lhe um sorriso trocista, pousou uma nota de cinco euros na mesa e piscou-lhe o olho, sem deixar de sorrir, antes de rodar e afastar-se novamente.
— Espera! — Pediu Xico, visivelmente mais satisfeito por reaver uma parte do dinheiro.
— Que queres? — O outro mostrou-se enfastiado. — Não penses, com isto, que vamos ficar amigos!
— Por acaso viste por aí o meu amigo? Aquele gordo, de cabeça pequenina…
— Aquele meio tolinho que costumava ajudar as velhas com as compras?
— Esse mesmo! — Sorriu esperançado. — Viste-o?
— Já não o vejo há um ou dois meses. Mas ouvi por aí que arranjaram-lhe lugar numa instituição, ali para os lados da Rotunda da Boavista, mas não sei o nome. Vá, come que eu tenho de trabalhar, bom apetite.
— Obrigado! — Atirou, antes de se lançar com vontade à refeição. Afinal ainda havia gente boa neste mundo…
Três dias se passaram desde o seu regresso à liberdade. Com muito custo, não teve alternativa senão retornar à vida nas ruas. Para evitar os conflitos por um vão de escada ou um umbral de uma casa comercial, acabou debaixo de uma ponte na via rápida. Os cobertores que lhe deram na ajuda de rua e os cartões de um frigorífico que achou no lixo, estavam seguros naquele local abrigado dos ventos e dos olhares cobiçosos.
Durante todo o tempo livre (aquele em que não estava a praticar pequenos furtos, a mendigar ou a rebuscar o lixo) aproveitava para “passear” a rotunda da Boavista, na esperança de ver o Passarão… mas sem sucesso. Não queria acreditar como tinha saudades daquele gigante acriançado. Estava desanimado… faltava-lhe a força de antigamente, não queria entrar em conflitos nem em “atividades” que o levassem de novo para a cadeia e começou a lembrar-se da aldeia que deixara para trás há uma eternidade. “A mãe ainda seria viva? Como o receberia? Às pedradas, na certa! Mas se calhar, lá até se conseguiria arranjar um trabalhito… nada que cansasse muito, claro. Se bem que, todo o trabalho por lá é pesadíssimo.”
De repente, ali estava ele! O Passarão, envergando umas sapatilhas gastas e um fato de treino, que nem estava rasgado. Atravessava a rua, com alguns jornais debaixo do braço e Xico deixou-se ficar a observar o amigo, que corria para o jardim do centro da rotunda. Onde ele próprio se encontrava sentado num dos bancos. Manel imobilizou-se a alguns metros e pousou os jornais, cuidadosamente dobrados e cintados, noutro banco. Dirigiu-se depois para uma grupo de pombas, que começara a pousar perto e atirou uma mão cheia de algo, atraindo imediatamente outro bando. Todas se empurravam e bicavam pela sua porção. Em seguida, estendeu ambas as mãos abertas, com as palmas para cima e algumas das aves pousaram nos improvisados poleiros, começando a debicar o alimento que sabiam encontrar-se ali. Não demonstravam qualquer receio daquele personagem.
Ostentando uma expressão feliz, o homem a quem chamavam Passarão, rodava lentamente sobre ele próprio, mantendo as “passageiras” a alimentarem-se nas suas mãos.
Acabado o alimento, foi como se costuma dizer: “merenda comida, companhia desfeita” e as aves levantaram voo, quase em simultâneo em todas as direções.
Rindo, feliz, começou uma corrida, de braços abertos, numa patética tentativa de voar, em volta das pombas, que levantavam assarapantadas, para pousarem logo de seguida, habituadas que estavam ao comportamento excêntrico do seu benfeitor. Numa das suas evoluções, o homem passou perto do banco onde encontrava encostado o seu observador.
— Olá Passarão. — Saudou Xico.
Ele estacou, entre a surpresa e o receio daquele que perturbara “o seu voo”, mirando-o com os seus olhos redondos e brilhantes. Decorridos uns segundos, um lampejo de reconhecimento iluminou-lhe o rosto:
— Xico!!!! — Gritou enquanto o apertava num abraço capaz de partir costelas. — Há tanto que não te via!
— Eh, calma lá com as saudades! — Exclamou o outro, sem no entanto o sacudir violentamente, como fazia antes, nem perder o sorriso.
— Que tens andado a fazer? — Havia lágrimas nos olhos do enorme homem. — Pensei que te tinhas ido embora de vez!
— Ora… — Xico hesitou. — Tive um pequeno percalço, mas já lá vai. Agora voltei para as nossas “jantaradas” noturnas, no nosso pátio…
— O nosso pátio já não há… — O Passarão fez uma expressão triste. — Estive muito tempo sozinho, tu não vinhas… Depois uma manhã apareceram lá uns gajos com capacetes brancos e disseram que eu tinha que arranjar outro poiso, que aquilo ia tudo abaixo.
— Deixa lá, não te apoquentes! — Sossegou-o o amigo. — Vamos arranjar outro sítio.
— Não posso. Agora estou a viver no alojamento!
Passarão contou ao companheiro tudo o que acontecera desde que ele se fora. Como vagueou pelas ruas sem arranjar onde dormir e escorraçado dos cantos onde se tentou alojar, ocupados por outros com necessidades semelhantes. Por fim, encontrou um jovem voluntário dum abrigo que lhe arranjou cama, roupa e comida.
Mostrou-lhe, com orgulho indisfarçável, as sapatilhas “novas” e explicou que saía sozinho todos os dias, para comprar os jornais para os “doutores” no escritório.
— Então não queres vir comigo? — O amigo perguntou-lhe. — Preferes ficar com os “doutores do escritório”? — Entoou com certo escárnio.
— Não vês? — Ele fez uma careta de tristeza. — Lá tratam-me bem, dão-me de comer, tenho uma cama só para mim, tomo banho, mudo de roupa todos os dias…
— Claro, por tudo isso, trocas o teu amigo. — Xico mostrou todo o desagrado enquanto levantava a voz. — Não sou teu amigo, eu? Não partilhávamos tudo? Não éramos os reis do nosso pátio? Tínhamos aquela ilha inteira só para nós!
— Mas, Xico, já não há pátio! Agora só as entradas das lojas e dos escritórios e já estão ocupadas! O “Zé Rameloso” bateu-me quando me deitei na porta ao lado da dele. O Vesgo e o Pinguinhas roubavam-me tudo e davam-me “cachaçadas”. Foi o doutor Tomé que lhes deu uma corrida e eles nunca mais me chatearam.
Desanimado, o outro mirou-o, num olhar trémulo e brilhante; havia um rio a querer soltar-se dele.
— Está bem. — Anuiu numa voz estrangulada, antes de lhe voltar as costas e começar a caminhar. — Vai lá para os teus doutores e para a tua comida e cama quentinhas. Eu volto para o meu vão da ponte. Pela noite, também conseguirei algo de comer na ajuda de rua.
Havia um enorme nó na garganta do Manel, que todos conheciam por Passarão e as lágrimas irromperam livremente sobre as bochechas carnudas e rosadas.
— Espera! — Gritou ao amigo, antes de iniciar uma corrida e o agarrar com força. — Espera, eu vou contigo!
Uma vez, mais, contra a sua natureza, Xico não pontapeou o amigo, nem o nem o sacudiu, antes deixou-se apertar, enquanto limpava uma lágrima teimosa.
Tiveram ainda uma pequena discussão sobre a devolução do troco dos jornais aos “doutores”, mas também aí prevaleceu a opinião do Xico.
Acabaram no café mais próximo a beber umas “minis”.
*** Fim da 3ª parte ***
|
|
0 comments:
Enviar um comentário