















sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Estás aí, mãe?
1937 – 2021
Estás aí, mãe? Para lá dos sonhos, noutra dimensão? Estás aí? Nesse corpo vazio e imóvel?
Eu sei que não estás. Como sei que não és tu por trás da janela iluminada daquela divisão onde escreveste tantos poemas. Daquela mesma janela de onde me dizias “Está tudo bem!”, mesmo quando não estava tudo muito bem.
Já não habitas a casa onde me contavas as histórias da tua juventude e eu os frutos da minha imaginação, que redundavam em contos que lias e comentavas avidamente. Quanto tempo passamos, após a partida do pai, a ver as fotografias enquanto me explicavas quem eram aqueles já desaparecidos há muito nas brumas do esquecimento.
Estás aí, mãe? A esperar, de olhos brilhantes, aqueles poucos minutos por dia que eu te dispensava? Estás naquele velho sofá, mesmo ao lado de um outro vazio há tanto tempo, no qual nunca fui capaz de me sentar?
Já não estás lá. para eu entrar sem que me respondesses e te encontrasse sentada a dormir, sozinha na sala, com a televisão apagada. Tu que adoravas o pequeno ecrã, os livros e os teus poemas, estavas cada vez mais debilitada e desinteressada.
Estás aí, mãe? Trocaste enfim o andarilho pela cadeira de rodas e os teus pés já não obedecem. Consegues suster-te nas pernas sem que eu tenha de erguer em abraços que tantas vez me pediste?
Sei que não estás. Não ocupas mais esse corpo sofrido que já não conseguia suster o peso da alma. Que te afastavas lentamente, cada vez que, ausente de tudo e de todos, ficavas a olhar o vazio, atenta em algo que não conseguíamos ver.
Estás aí, mãe? Nessa calma falsa de respirar entrecortado, entorpecida pelas drogas que te dão para suportar os horríveis tratamentos? Nesse sono exausto pelo sofrimento, quase morte, espelhado no rosto cadavérico.
Perdoa-me mãe, que pedi a Deus que te poupasse e não sofresses mais e depois de tantos dias ausente, olhaste para mim e sorriste. Foram uns segundos apenas, uns ínfimos momentos com um pé no nosso mundo e outro na eternidade. Nesse momento, que me pareceu ter durado uma vida, os teus olhos diziam-me “Não faz mal, está tudo bem.”
Já não estás aí, mãe. Não foi surpresa para mim que voltasses para o teu mundo de ausência, nem o desfecho final, que aguardava há mais de uma semana…. era já esperado o fim do teu sofrimento e a partida para junto daquele que ainda hoje amas e de quem te custou tanto apartar.
Sei que não estás aqui, mãe. Descansa em paz.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Deusas, Fadas e Bruxas–Os Pentautores e os mitos
Os Pentautores continuam a sua imparável produção e, desta feita sem um dos seus membros fundadores Ana Paula Barbosa, mas com a fantástica convidada Lucinda Maria, lançam-se nas fronteiras dos mitos, da magia e dos milagres.
Ao longo de seis belos contos o imaginário captado e colado ao dia-a-dia, mostrando como o sobrenatural e o quotidiano podem andar de mãos dadas.
Não perca mais esta obra dos Pentautores.
As palavras da convidada Lucinda Maria:
“Deuses, fadas, bruxas” — o tema desta colectânea é, certamente, um tema de interesse e constituiu um exercício de criatividade. Tenho a certeza de que os Pentautores estiveram à altura desse passeio pelo mundo da fantasia.
Este tema é um convite à imaginação. Senão vejamos. Os deuses existiram ou existem? As fadas são reais ou imaginárias? As bruxas estão por aí, espreitando a ocasião para nos fazer mal?
Em princípio, a resposta a estas perguntas terá de ser negativa.
Houve deuses, sim, que foram estudados nas diversas mitologias, principalmente na greco-romana. As religiões politeístas adoravam vários deuses, ídolos que os próprios homens construíam, seguindo a sua ideia. Outras vezes, adoravam o sol, o fogo e outros elementos da natureza. As religiões monoteístas tinham um só Deus, mas nunca o viram e, por isso, representavam-no como entendiam. Ainda hoje é
assim.
As fadas são também seres mitológicos associados à beleza e ao bem. Segundo parece, o primeiro autor a mencionar estes belos seres com asas e varinhas de condão foi o escritor Pompónio Mela, um geógrafo do século I depois de Cristo. No geral, são usadas para acalmar e encantar as crianças, pois são simpáticas, mágicas e belas. Quem nunca ouviu falar da fada Sininho do Peter Pan?
As bruxas são o oposto. Mulheres feias, com nariz grande e cheias de verrugas, famosas pelas suas gargalhadas terríveis.
De chapéu alto, deslocavam-se pelo ar. Diziam que as bruxas voavam em vassouras à noite e principalmente em noites de lua cheia, que faziam feitiços e transformavam as pessoas em
animais e que eram más. Quem nunca ouviu falar das bruxas de Salém? Estas foram julgadas e executadas nos Estados Unidos.
Outras mulheres suspeitas de bruxaria caíam nas fogueiras da Inquisição. Exageros! Hoje em dia, é tudo mais suave e até se celebra o Dia das Bruxas (Halloween).
Como está provado que a leitura faz bem à saúde, leiam os Pentautores! Decerto, viverão bons momentos de entretenimento e aprendizagem.”
Os Pentautores
A convidada
terça-feira, 30 de novembro de 2021
Sonho (2003)
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Dormia calmamente quando senti o toque fresco da tua mão no meu rosto em total contraste com o calor que fazia no quarto.
sábado, 30 de outubro de 2021
A Cripta (2017)
terça-feira, 12 de outubro de 2021
Filhos de Um Deus Menor–A antologia é uma realidade
No passado mês de março deste ano, emiti um apelo para dar vida à antologia “Filhos de Um Deus Menor”, um dos trabalhos inacabados do meu saudoso amigo e editor Isidro Sousa. Acudiram quinze autores.
Não posso dizer que não tenha ficado um pouco surpreendido com tão pequena adesão ao projeto. O Isidro tinha tantos autores que o acompanhavam e, pelo menos nesta antologia, estavam registados mais de vinte. Contactei os nomeados um a um através do Facebook, (como não tenho acesso aos documentos da Sui Generis não possuo os e-mail) e a grande maioria nem respondeu. É possível que não saibam usar a ferramenta nas devidas condições, ou que tenham perdido o acesso, ou mesmo a vontade de usar a mesma, mas o certo é que, dos quinze autores aqui reunidos, nem todos faziam parte da listagem original.
Como alguém disse um dia, “poucos, mas bons” e aqui estão reunidos trabalhos de quinze autores que quiseram contar histórias de filhos de deuses menores. Ao longo de mais de duzentas páginas, vamos conhecer vários tipos de discriminação, algumas baseada em factos reais.
Porque a sociedade é cruel para os que são diferentes, ou para aqueles em quem não vê utilidade, este é um livro sobre as diversas formas de discriminação. Histórias com ciganos, africanos, refugiados do médio oriente ou simples despojados da sorte, estão presentes nesta antologia de contos, que pretende homenagear o Isidro Sousa, também ele com uma vida difícil e que batalhou até as forças se acabarem.
Venha ouvir as palavras dos nossos escritores.
AUTORES
- Ana Paula Barbosa
- Carla Santos Ramada
- Carlos Arinto
- Diamantino Bártolo
- Fernanda Cruz
- Fernando Morgado
- Gabriela Lopes
- Jorge Santos
- Lucinda Maria
- Manuel Amaro Mendonça
- Olimpia Gravouil
- Paula Homem
- Rosa Marques
- Suzete Fraga
- Teresa Morais
ENCOMENDAS
https://www.debaixodosceus.pt/formulario
manuel.amaro@debaixodosceus.pt
https://www.amazon.es/dp/B09HPPJGVM/ref=monarch_sidesheet
quarta-feira, 29 de setembro de 2021
Água e Sangue
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Água e sangue, era o que Estevão tinha na mão naquele momento.
Limpou com um lenço de papel, apressadamente. Sentia-se gelado, com gotas de transpiração fria a perlar-lhe a fronte.
Olhou em volta para os restantes passageiros do avião que o transportava para Nova Iorque, completamente alheios ao seu drama pessoal. Até mesmo o homem gordo sentado na outra fila, para além do lugar vazio a seu lado, dormitava, a cabeça caída sobre o jornal.
Tornou a tossir, mas desta vez para um lenço de papel, que também se manchou de carmim. Engoliu em seco, olhos esbugalhados, fitando incrédulo o conteúdo do papel, que rapidamente amarrotou, enojado e colocou no saco de vómito. Encostou a cabeça para trás tentando controlar a respiração acelerada, enquanto tinha a sensação de que o estômago iria rebentar a qualquer momento.
Que estava a acontecer? — Perguntava-se, prestes a entrar em pânico. — Nunca antes se sentira mal durante uma viagem de avião… o pequeno-almoço no hotel foi normalíssimo. Claro que a tensão em que vivera nos últimos dias… particularmente no último, pode explicar a dor de estômago, a azia e o enfartamento, mas não o sangue na expetoração. Ele sempre fora saudável.
Gradualmente, a respiração voltava ao ritmo normal, enquanto relembrava o objetivo da sua viagem. Finalmente as coisas iam correr bem para ele. Tinha pena de não ter Irene consigo, mas ela estava a tornar-se um peso e os súbitos acessos de consciência estavam a preocupá-lo. Manteve os olhos fechados enquanto lembrava a discussão da noite anterior no quarto do hotel:
***
— É que nem te importaste com o Bernardo, que conheces há tantos anos! — Irene, o longo e fino roupão mal tapando o corpo bem torneado, de que disfrutara pouco tempo antes, apontava-lhe um dedo acusador. — Deixaste-o ficar com as culpas, não eram amigos?
— Amigos, é uma força de expressão, que queres? — Replicou Estevão, voltando-lhe as costas e atirando para o ar um gesto contrariado. — Ele era o segurança, via-o todos os dias e cumprimentava-o… daí a sermos amigos… não lhe fiz mal, nem nada.
— Ele tem mulher e filhos. De certeza perdeu o emprego e pode até ser preso. — Insistiu ela. — Enganaste-o!
— Não sei porque é que estás com esses pruridos todos. — O homem enervou-se e quase lhe gritou aos ouvidos. — Ele também estava disposto a fugir com o dinheiro. Queria lá saber da mulher e dos filhos!
— E por isso, não tiveste problema nenhum em enganá-lo e deixá-lo fechado naquele armário até que chegasse a polícia. — Irene empurrou-o. — Também não tiveste nenhuns escrúpulos em deixar a tua própria mulher e o teu filho "que amavas tanto".
Estevão virou-lhe as costas novamente e dirigiu-se para a janela.
— E o Ferreira que tanto confiava em ti? — Ela não desistia. — Esse sim era teu amigo, por isso deixava-te fazer a contagem do dinheiro sozinho e assinava como se contasse. — Irene pousou os olhos no chão. — Como se sentirá ele agora, sabendo-se enganado, sabendo a forma como te apropriaste do dinheiro e sabendo que vai ter de explicar aos patrões onde estava ele, enquanto tu fugias com o resultado das apostas. Não precisavas de ter escondido aquele dinheiro no carro dele, estava "entalado" que chegasse.
— Nós fugíamos! Nós! — Ele pôs-se ao pé dela de um salto e agarrou-a pelo braço com violência. — Nós, roubamos aquele dinheiro! O Ferreira, o Bernardo, a mulher dele e a minha, foram todos baixas necessárias para atingir o NOSSO objetivo.
— Ainda bem que referes que somos NÓS! — Ela sacudiu-o com violência e tirou um saco de viagem do armário, que atirou para cima da cama. — Vamos pegar nessa mala que levas avidamente para todo o lado e dividir o NOSSO dinheiro! Não vá acontecer alguma coisa…
Estevão abriu a boca para expressar o seu desacordo, mas ela nem olhou para ele, apenas despejou para cima da cama os molhos de notas cuidadosamente cintados.
Dividiram aquela pequena fortuna em silêncio e Irene começou a arrumar a sua parte no compartimento falso da mala de viagem.
— É assim que queres estar comigo? — Rouquejou ele. — Com esta desconfiança?
— E eu posso confiar em ti? — Perguntou Irene. — Traíste tudo e todos… eu serei a próxima, quando te der jeito. Não querias dividir o dinheiro e dormias praticamente com a mala debaixo de ti… queres falar de confiança? — Ela cravou os olhos verdes nos castanhos dele. — Eu não fiz isto por dinheiro, fi-lo por ti, para estar contigo! Estava cega! Estava preparada para passar a vida a fugir, sempre a olhar por cima do ombro, mas de mão dada contigo. Tenho estado a aperceber-me nestes dias que o teu único amor é o que tens aí nesse saco, eu sou apenas a gaja que te ajudou e com quem dás umas quecas.
— Hipocritazinha de m** — Enfureceu-se Estevão. — Tens muita pena dos tansos, mas queres a tua parte! Leva-a e depois desaparece-me da vista. Amanhã de manhã no aeroporto vou trocar o meu bilhete, segue para a Venezuela, eu vou para onde me levar o vento. Espero que sejas feliz. — Torceu a boca com desprezo nestas últimas palavras.
— Por mim, podes ir para o inferno! — Atirou ela, raivosa.
— Irei, descansa. — Confirmou Estevão, a voz quase sumida. — Esperarei lá por ti, se chegar primeiro.
***
Agora, ali sozinho, naquele imenso avião cheio de passageiros, sentia falta dela. A dor lancinante que lhe mordeu o estômago, justificou as lágrimas que verteu. Deixou-se cair de cabeça no assento vazio enquanto relembrava as últimas horas no aeroporto… não precisava ter feito aquilo…
Naquela manhã, assim que chegaram ao terminal, foram tomar café, como dois bons amigos. Sentados na sala de espera, Irene comportava-se como se aguardasse que ele dissesse algo, mas ele estava furioso, não lhe perdoava a desconfiança e… a obrigação de lhe entregar a parte dela. Irene tirou da mala duas pequenas garrafas de água e deu-lhe uma delas com um sorriso triste. "Ficamos assim?" Interrogou. Ele bebeu dois longos golos e atirou a garrafa para o recipiente de reciclagem, ao mesmo tempo que se erguia. "Não tens o que querias?" Acusou, antes de se despedir com um "Fica bem!".
Todo interior do avião parecia estar com as cores alteradas, ardia-lhe a boca e a garganta e sofreu novo ataque violento de tosse.
A última coisa que fizera no aeroporto, após trocar o seu bilhete, foi um telefonema duma cabine. De longe, ficou a apreciar o espetáculo, quando as autoridades rodearam Irene e a manietaram. Não estava perto o suficiente para poder disfrutar do rosto dela quando os agentes abriram a mala e encontraram, não a quantia que ela tinha posto lá, mas apenas a parte que ele deixara; o suficiente para a incriminar.
"Livrara-se dela e dera-lhe uma lição!" Ele sorriu, mas foi incapaz de conter um vômito sanguinolento sobre o tecido da cadeira onde pousava a cabeça.
Tentou erguer-se, mas tudo parecia andar à volta. A hospedeira aproximou-se e olhou-o horrorizada, com a quantidade de sangue ele tinha na camisa e nas mãos. Gotas copiosas, vermelhas, corriam do nariz e dos olhos. Confuso, meteu a mão ao bolso à procura de um lenço e encontrou um envelope. Sem saber como lidar com a sua situação, dedicou a atenção ao achado e viu que tinha o nome dele, com a letra de Irene. Deixando dedadas rubras, abriu-o.
Lá dentro, havia um rótulo de raticida e um post-it onde ela escrevera:
"Só para saberes o que tinha a água que te dei. Sempre vais chegar primeiro ao inferno."
domingo, 29 de agosto de 2021
A Caminhada (2016) (revisto)
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Exausto, foi com grande alívio, que o octogenário se deixou cair no banco de jardim, na entrada do parque. Aquelas caminhadas custavam-lhe cada vez mais e, pelos vistos, demoravam cada vez mais. Estava a começar a anoitecer. Fez um esforço para recordar a que horas saíra de casa, mas não conseguia.
Deixou-se ficar um pouco a restaurar as energias… noutros tempos, achava ele que não há muito, faria todo aquele percurso a correr e quase sem transpirar, mas agora… como se pusera naquele estado?
Olhou com curiosidade os sapatos de quarto, empoeirados, como se os visse pela primeira vez; os seus pés estavam “gordos” e o calçado parecia querer rebentar. "Não admira que me sinta cansado! Tenho de fazer uma dieta!" Pensou de si para si. "Recuperar a forma, esta fadiga só pode ser banhas, olha-me que patas”.
Recostou-se e esticou preguiçosamente os braços pelas costas do banco, enquanto apreciava o trânsito barulhento e apressado.
O seu olhar fixou-se no enorme edifício na esquina: "Que esquisito, não me recordo de ter sido derrubada a padaria e já ali está um prédio de uns sete andares, pronto e habitado! Não há dúvida que tudo agora é construído a uma velocidade estonteante!"
Uma carrinha branca imobilizou-se ao pé do edifício e descarregou dois fardos de jornais, antes de arrancar em grande velocidade. Estranhou a distribuição do jornal tão tardia, normalmente acontecia de madrugada. "Está tudo tão diferente…" Ainda se recordava do sinaleiro, luvas e capacete brancos a gerir o transito naquela esquina, antes da sua substituição pelo semáforo, que empoleiraram muito alto, mesmo no meio do cruzamento. Não foi assim há muito tempo… mas também o semáforo lá não está, foi substituído por um conjunto de colunas, cada esquina sua, com o seu próprio conjunto de luzes… de certeza que fora feito para a autarquia ajudar a enriquecer um qualquer fabricante amigo. Sorriu com a sua própria maledicência.
— Bom dia! — A voz masculina sobressaltou-o, fazendo-o descobrir a seu lado o jovem polícia que o mirava com curiosidade.
— Boa tarde! — Corrigiu-o.
— O senhor está bem? — Perguntou o agente.
— Eu? Sim, estou! E você? — Ele não estava a perceber a razão da abordagem.
— Eu também estou, obrigado! — O polícia endireitou-se com um sorriso e afastou-se num passo curto para a berma da rua, sem o perder de vista. Pegou no telemóvel e fez uma chamada.
Ao fim de um minuto ou dois, fitou com suspeição o agente que regressava, sempre com um sorriso nos lábios.
— Posso perguntar-lhe o seu nome? — O jovem voltava à carga.
— Posso saber porquê? — Respondeu na defensiva. — E o seu, qual é?
— Peço desculpa pela minha falta de maneiras. — A boa educação do polícia começava a ser irritante. — Meu nome é Meireles!
— E eu sou obrigado a dizer-lhe o meu? — Agora estava a ser deliberadamente insolente.
— Não, claro que não. Não está a fazer nada de mal. — O jovem exibiu um rosto triste. — Era simples curiosidade.
— A minha mãe dizia que a curiosidade matou o gato! — Atirou com um ar de triunfo, voltando o rosto para o lado, como que indicando que acabara ali a conversa. — Tenha uma boa tarde! — Rematou.
— Um bom dia, quer o senhor dizer! — O rapaz era insistente. — Ainda é de madrugada, o sol está a nascer agora. — Apontou para as silhuetas dos prédios onde um clarão avermelhado parecia querer sobrepor-se às trevas.
— Madrugada? — O rosto dele tornou-se uma máscara de espanto, enquanto a sua mente trabalhava em alta velocidade: "A que horas saíra de casa? Quanto tempo caminhara?... De onde viera?"
Um pequeno Opel Corsa parou bruscamente ao lado do passeio onde os dois se encontravam. Outro jovem, este à civil, correu para eles e olhou-o nos olhos, preocupado.
Já eram dois de volta dele, que estava naquele estado de confusão… começava a ficar assustado, quando o recém-chegado disse finalmente, numa voz estrangulada:
— Pai! Graças a Deus! Andamos a noite inteira à tua procura!
quinta-feira, 29 de julho de 2021
Brindemos a Laurinda
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Photo by Tembela Bohle from Pexels
Naquela tarde de agosto, André caminhava apressadamente pelo passeio largo, ao lado da rua movimentada. Já há muito não passava por ali, mas só arranjara estacionamento longe do local onde se dirigia e estava a cortar caminho.
Junto das mesas da esplanada de uma confeitaria, um dos clientes agarrou-lhe o braço. Olhou-o com surpresa e irritação, mas logo o seu rosto se transformou:
— Filipe?!? — Exibiu um sorriso rasgado e abraçou o outro assim que ele se ergueu. —Que andas a fazer por aqui?
— Tive de voltar para tratar da venda da casa. — Fez-lhe um gesto de convite e ambos se sentaram. — Há quase um ano que estava fechada e como não faço tenções de voltar a viver lá… melhor vender do que deixá-la estragar-se.
— De certa forma tens razão. — Concordou André. — Mas não esperava nada ver-te e confesso, já tinha saudades tuas.
— Eu também. Temos de nos encontrar mais vezes, marcar uma data no mês, sei lá. — Ele fez aquele ar de comprometido de quem faz uma promessa que não pensa cumprir. — Afinal, estou a menos de trinta quilómetros daqui, é um instante.
— E escolheste logo esta confeitaria… — André fez um gesto a abarcar o conjunto das mesas e cadeiras.
— Foi de propósito. — Confessou Filipe. — Fez parte da melancolia que me atingiu assim que cheguei.
— Eu nunca mais voltei cá… desde que aquilo aconteceu. Mas fizemos bem em nos mantermo-nos separados. — André baixou os olhos, enquanto o empregado do estabelecimento trazia as bebidas que pediram.
— Não sei porquê. — Cortou Filipe, assim que o empregado se afastou. — Somos irmãos, qual é o problema de sermos vistos juntos? Não é natural? — O outro manteve o olhar no chão, enquanto ele se inclinava para mais proximidade. — Não íamos sempre de férias juntos? Mesmo antes dela?
André brincou com as mãos sobre o tampo da mesa, antes de pegar na caneca de cerveja e beber dois ruidosos tragos. Como que para engolir algo que se lhe prendera na garganta.
— Ela era maravilhosa… — Elogiou ao pousar a caneca, com os olhos perdidos nas marcas da mesa metálica. — Tão linda e meiga, sempre pronta a satisfazer as mais loucas fantasias.
— Sim e manipuladora e intriguista. Que reagia mal, quando não conseguia o que queria. — Cortou Filipe rudemente, antes de dulcificar também o seu tom. — Mas quem conseguia recusar-lhe fosse o que fosse quando ela fazia aquele beicinho e os olhinhos tristes.
— Foste um bocado canalha, ao envolver-te com ela! — Censurou André com secura, antes de meter os lábios de novo à caneca. — A mulher do teu próprio irmão…
— Mas que queres? Tão bonita, tão querida, tão… disponível.
— Porque é que havíamos de ter ido para o Gerês. — Como que se autocensurou André. — Para aquele bangalô no meio de nenhures.
— Exatamente para aquilo que fomos! — Esclareceu Filipe! — Para bebermos, para nos rirmos, divertirmo-nos, em suma! E nós fizemo-lo!
— Meus Deus! — Reconheceu André. — Bebedeiras de caixão à cova até de madrugada, depois dormir e acordar já de tarde para beber mais… bolas, que parvalheira… depois, tu e ela…
— Quando me apercebi, ela já estava agarrada a mim aos beijos e a abrir-me a breguilha. — Confessou Filipe. — Mas tu até te rias, não parecias importar-te e acabamos por fazê-lo ali mesmo no sofá. À tua frente. — Agora era ele quem firmava os olhos no tampo da mesa a recordar toda a história. — Quando acabamos, ela foi para o pé de ti, decidida a continuar contigo o que começara. Eu levantei-me para ir à casa de banho e ouvi-vos discutir…
— … eu estava tão bêbado… — Reconheceu André. — …não me estava a incomodar nada que ela tivesse feito amor contigo. Mas, quando veio para junto de mim, o cheiro de sexo recente, sabê-la suja por alguém que não eu…
— Adormeci no meu quarto, quando tudo ficou em silêncio. — Continuou Filipe. — Quando me levantei de manhã, tu ressonavas no sofá e ela estava no chão, nua, enrolada sobre ela própria.
— Discutimos muito… — Esclareceu André. — Estávamos abraçados, mesmo assim, mas ela tentou soltar-se e eu apertei-a, ela deu-me uma cabeçada e eu esbofeteei-a e empurrei-a… era geniosa, mas pouco musculada, apesar das corridas que fazia.
— És um bruto! — Censurou o outro, com um gesto de desagrado. — Cala-te não fales mais nada.
— A culpa foi dela! Atirou-me com o cinzeiro e eu apanhei-o e atirei-lho de volta. Acertou-lhe na cabeça, ela gritou, insultou-me e depois deitou-se ali a chorar… não achei que fosse muito grave…
— Agora cala-te! — Insistiu Filipe em voz baixa e olhando em volta, preocupado.
— Se não fosses tu… — Continuou o assassino. — … a ideia de lhe vestir o equipamento de corrida, atirá-la da ravina e chamar socorro porque ela saíra para correr e não regressara… o pior foi a polícia a investigar e as custas da recuperação do corpo.
— Que até ficou barato, comparado com a perspetiva de uma boa temporada na cadeia, não achas? — Comparou o irmão, num sussurro.
— Sim, claro, mas ainda penso muito nela… — Duas grossas lágrimas soltaram-se dos olhos de André. — … eu amava-a muito, sabes?
— Agora esquece! — Ordenou Filipe, enquanto erguia a caneca e elevava os olhos ao céu. — Brindemos a Laurinda, um sonho de mulher bela e maravilhosa! — Depois de tilintar a vasilha com a do irmão, bebeu dois largos tragos e concluiu: — Agora, temos de arranjar outra!
sexta-feira, 2 de julho de 2021
Um Grande Orgulho
terça-feira, 29 de junho de 2021
Idiossincrasia
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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Image by Gerd Altmann from Pixabay |
— Sim, ouviu bem. Peço desculpa! — Humberto mostrava-se verdadeiramente contristado a falar com o Inácio, quando se encontraram casualmente ao sair do bloco de apartamentos onde ambos residiam. — Por toda a razão do mundo que
eu pudesse ter, nada me dava o direito de falar consigo da forma como falei.
Ele estava consciente da expressão apatetada de Inácio, de quem
era vizinho vai para dez anos, que não sabia como reagir a esta sua nova atitude
completamente discordante da que sempre lhe conhecera.
Como a maior parte
dos habitantes de prédios, conheciam-se mais ou menos superficialmente, fruto de
contactos esporádicos em reuniões de condomínio, ou na frequência das áreas
comuns do edifício, como as garagens, átrios, escadas ou elevadores. A relação entre
ambos, porém, sempre fora tensa e desagradável, devido ao péssimo feitio de
Humberto, que explodia ao mínimo contratempo e partia para o insulto pessoal e
a ameaça física. Não era, de resto, apenas com Inácio esta atitude, a fama dele
alargava-se a todo o bloco… e à maior parte dos locais frequentados por ele.
— Mas que se passa consigo? — Interrogou o baixo e anafado
vizinho, entre o receoso e o divertido. — Está doente? Alguma doença em fase
terminal?
— Não, Graças a Deus que não… penso eu. — Humberto sorriu,
para maior espanto do interlocutor. — Apenas estou a pôr a mão na consciência e
a perceber que não tenho agido bem consigo estes anos todos e, principalmente ontem,
quando discutimos por causa do seu cão a ladrar no corredor quando você entrava
em casa. O barulho incomoda-me e peço-lhe por favor que evite que o animal o faça
naquele local onde ecoa imenso. Tenha um bom dia.
Com estas palavras, voltou-lhe as costas e caminhou pelo
passeio, deixando o vizinho olhando-o assombrado, segurando a porta da entrada
com uma mão e o saco de papel da padaria na outra.
Humberto tinha consciência do seu péssimo feitio e muitas
das vezes arrependia-se, algumas horas depois, das coisas que dizia ou fazia. Mas
o simples relembrar da situação, trazia de volta o azedume e acabava por rematar
com um sentenciador “Foi-lhe bem feita!”
Não era nenhum “hércules”. Nos seus quarenta e muitos anos,
sempre fora magro, alto e seco de carnes; era a violência latente nas suas
palavras e gestos, aliada à transfiguração instantânea de uma pessoa educada
noutra sem qualquer filtro, que surpreendia e deixava sem reação as “suas
vítimas”. Não poucas vezes, se vira envolvido em trocas de socos com alguns
objetos da sua raiva, menos preparados ou educados, ou que simplesmente não
aceitaram ser desaforados de ânimo leve. A coisa resolvia-se em poucos segundos;
ou ficava-se, ou os presentes envolviam-se e separavam os contendores,
permitindo-lhe manter a face (intacta).
A sua existência decorria num mundo onde as pessoas pareciam
fazer fila para o desfeitear, desprezar, ou simplesmente aborrecer e ele fazia
questão de se manifestar ruidosa e odiosamente, sempre que tal acontecia. Mesmo
no emprego, a maior parte dos colegas de trabalho, temiam-no ou evitavam-no, apesar
de lhe reconhecerem a diligência e eficiência profissionais. A grande exceção
era Lucília, sua mulher, que conhecera nesse mesmo emprego e com quem
casara, rendido aos seus encantos e à surpreendente capacidade de dulcificar o
seu comportamento. Apenas a ela aquiescia quando censurado e só a ela
reconhecia o seu problema. Após a violenta discussão com Inácio na noite
anterior, Lucília, cansada e envergonhada dos problemas com os vizinhos, repreendeu-o
asperamente e apresentou-lhe um ultimato: Ou ele mudava de atitude, ou ela mudava
de casa… sozinha.
Humberto não conseguia conceber a sua existência de regresso
à solidão dos tempos antes dela. Quando discutia no emprego, bastava um
vislumbre da sua presença, para que o possante dragão que cuspia fogo pelas
ventas, se transformasse num dócil cordeiro, ou no mais cordial dos colegas de
trabalho. Quando regressava a casa, era como se saísse de um túnel quente, escuro
e sujo e entrasse num imenso vale ensolarado, fresco e florido. A sua “fada do
lar” recebia-o com o “solvente de mau-humor” que só ela possuía. Por isso, decidiu
que aquele dia seria o primeiro do resto da sua vida mais tolerante e afável.
Envolvido nessas doces vibrações, sonhava acordado com a
admiração e alegria que esperava ver mais logo nos belos olhos da sua doce
Lucília. Ignorou de forma estoica o buzinar insolente do camionista quando se
demorou a atravessar a passadeira, não resmungou, como sempre fazia, pelo ruído
das motos e deu os bons dias a muitos dos conhecidos, alguns dos quais se
imobilizaram no passeio, para confirmar se tinham ouvido bem.
No Pão Quente, não se incomodou pelo facto do funcionário ter
atendido primeiro os que estavam sentados, nem por ter três outros clientes à
sua frente. Quando chegou à sua vez, sorriu e saudou o empregado, deixando-o
ainda mais nervoso e confundido. Quando este pousou o saco de papel com o seu
pedido em cima do balcão, um dos pães rodou para o tampo de granito e ele colocou-o
rapidamente de volta à embalagem. Humberto estremeceu e arregalou os olhos,
corou, mas controlou-se e expeliu ruidosamente o ar do peito.
— Meu caro. — Avisou apaziguadoramente para o jovem
funcionário que parara de respirar, pois percebia ter cometido uma falta, embora
não soubesse ainda qual. — Esse pãozinho, rolou num balcão duvidosamente limpo
e você apanhou-o com a sua mãozinha descuidada, pois a luva ficou ali em cima
da prateleira. Importa-se de o substituir?
Como um foguete e
quase em pânico, o rapaz calçou a luva de plástico, pegou novo pão da caixa e
trocou-o pelo “conspurcado”. O sorriso condescendente de Humberto estremeceu e
desmoronou-se quando, o solícito funcionário, arremessou a unidade recusada para
a caixa onde se encontravam os restantes pães para venda.
“Lembra-te, este é o primeiro dia de uma nova vida!”
Humberto recomendou para si próprio, quando virou as costas ao balcão onde
deixara as moedas para pagamento, sem agradecer nem se despedir. “Pelo menos aquele
pão já não será para mim.”
Regressou a casa, satisfeito consigo mesmo, enquanto
contornava alguns dejetos canídeos abandonados no passeio. Evitou os seus comentários
a meia voz contra os amantes de animais, porcos, ignorantes e menos
inteligentes que o seu animal de estimação. Não insultou a criança que quase o
atropelou com a bicicleta nem se sentiu incomodado com o cão que o veio farejar,
no limite da trela do dono.
Estava realmente um belo dia de primavera, com sol e uma
temperatura amena, os pássaros chilreavam nos fios elétricos e nos beirais dos
telhados. Tudo para ser feliz, não percebia como podia estar sempre zangado.
Em frente à porta de entrada, com o saco do pão debaixo do
braço enquanto procurava a chave no bolso, recebeu sobre o ombro os generosos
dejetos de uma das pombas, “que a estúpida da velha do quinto esquerdo insistia
em alimentar”. Algumas pingas, perante o olhar escandalizado dele, caíram sobre
os alimentos.
Simultaneamente, a porta do prédio abriu-se e de forma
intempestiva, Inácio saiu, arrastado pelo enorme e trapalhão Retriever que
possuía, quase derrubando Humberto. O saco de papel estatelou-se no chão; pães
rolaram pelo passeio em todas as direções.
— Grandessíssima besta! — Explodiu Humberto, descontrolado,
apontando o indicador espetado diretamente aos olhos do outro. — Que tens nessa
cabeça de balofo gorduroso? Não sabes controlar o “cavalo”? Em qual das pontas
da trela está o animal inteligente? Devia de te rebentar essas fuças!
sábado, 29 de maio de 2021
Suspenso
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
— Vai-te depressa, é o meu marido!
A frase chegou-me
ao cérebro em uníssono com o som característico de uma chave a ser introduzida
numa fechadura.
Saltei na cama,
atordoado e fiquei sentado a olhá-la, um pouco incrédulo.
Ela fitou-me com
os seus olhos azuis. Duas pérolas refulgentes na obra de arte que era o rosto
emoldurado pelo cabelo encaracolado escuro.
Por uns instantes,
uns segundos apenas, gelamos, um frente ao outro, soerguidos na cama onde há
tão pouco tempo havíamos dado largas à paixão. Os seus peitos alvos e fartos,
de mamilos quase invisíveis de tão rosados, subiam e desciam nervosamente, acompanhando
o respirar entrecortado.
— Depressa! — O
tom sussurrado e suplicante, trouxe-me de volta à realidade em simultâneo com o
ruído de passos pesados no corredor.
— Disseste-me que ele
não vinha hoje! — Protestei, recolhendo as roupas de cima da poltrona que havia
aos pés da cama. Dei graças pelos meus hábitos de, mesmo enlouquecido pelo
desejo, amontoar a roupa toda no mesmo sítio.
— Deve ter trocado
o serviço, que queres que te faça? — O sussurro irritado insistia na urgência.
— Não seria melhor
acabar com isto de uma vez? — Engoli em seco.
— Estás cansado de
viver? — A retórica foi suficientemente elucidativa.
Os passos chegaram
junto à porta do quarto e o manípulo rodou devagar. Escondi-me na casa de banho, onde sabia que existia uma saída para o corredor e vesti-me rapidamente, no
escuro, enquanto espreitava pela frincha da porta. Na penumbra do quarto,
consegui divisar o marido; cerca de um metro e noventa de homem, cabelo cortado
à escovinha, envergando o uniforme da PSP e ainda com a arma e o cassetete
suspensos da cintura.
— Que porra de
situação. — Lamentei-me calçando o segundo sapato e observando-o a espreitar a
jovem esposa, que se fingia adormecida.
Esgueirei-me para
o corredor às escuras e em passos largos e silenciosos, encaminhei-me para a
porta de saída do apartamento. Uma manada de cavalos enlouquecidos corria
desenfreadamente no meu peito, enquanto tentava, sem sucesso, abrir a porta que
fora fechada com a chave.
Conseguia escutar
murmúrios do quarto. Devia estar a tentar “acordá-la” para fazer aquilo que
tinha feito comigo nas últimas horas… Porque diabos haveria de voltar tão cedo?
Em vão, apalpei no
topo da credencia pelas chaves que me permitiriam sair daquela situação…
Os murmúrios terminaram
de repente e o corredor iluminou-se com a luz proveniente da casa de banho que
eu acabara de abandonar.
Corri para sala e
olhei em volta; aquela divisão que conhecia tão bem, onde cada maple e cadeira
tinha uma recordação agradável, em busca de um sítio para me esconder. A única
coisa que me pareceu mais adequada foi o sofá; com um salto acrobático, consegui
literalmente mergulhar para a parte traseira, comprimindo-me o mais que pude
entre a parede e as costas.
O som de passos a
entrar na sala… a televisão começou a funcionar… o ruído do cinturão a ser
pousado na mesa de apoio e um peso brutal caiu sobre o sofá, esmagando-me ainda
mais. Quase não consegui suster um gemido.
Deixei-me ficar,
naquela posição tremendamente incómoda, enquanto ouvia a sessão de zapping a
decorrer. Ao fim do que me pareceu uma eternidade, levantou-se novamente, dando
descanso às minhas dilaceradas costelas e ouvi os passos que se dirigiam à
cozinha.
Aproveitei a
oportunidade e corri para a varanda, cuja porta abri muito devagar e passei
para o exterior… não consegui tornar a encostar a corrediça, que me pareceu
ficar presa em qualquer coisa.
Corria uma aragem
fria do fim do verão… o céu sem estrelas era providencial e espreitei para a
rua… quatro andares abaixo. Lembrei-me naquela altura que, de futuro, deveria incluir,
como requisitos na minha lista de escolhas femininas, aquelas que vivessem no
rés-do-chão, vá lá, no máximo primeiro andar… e que os maridos não fossem
polícias, ou qualquer tipo de agente que incluísse armas.
Eu estava a ficar
gelado rapidamente. Na sala, o homem retomara o zapping e de repente, olhou na
minha direção, para a porta mal fechada, de onde devia estar a sentir corrente
de ar. Ergueu-se e começou a experimentar a corrediça para verificar porque
encravava, vi a sua perna sair para a varanda e era óbvio que teria de passar à
próxima e ainda mais assustadora tática de esconderijo: debrucei-me sobre a
balaustrada e fiquei suspenso no vazio, agarrado aos ferros.
O coração parecia
querer saltar-me pela boca. Sentia o corpo todo tremer descontroladamente,
sabendo que não aguentaria muito tempo assim. Abaixo de mim, ligeiramente
desalinhada de uma eventual trajetória descendente, via a varanda do terceiro
piso… conseguira saltar para ali? E depois para a seguinte? Dei graças por não
haver ninguém na rua.
Escutei o ruído do
isqueiro e a longa baforada que se seguiu… as mãos começavam a doer… se eu o
enfrentasse, ele contentar-se-ia com uns socos ou… o mais certo era atirar-me
da varanda ou dar-me um tiro… choraminguei silenciosamente a minha estupidez por
me ter arrastado para aquela situação.
Estava a achar que
não aguentava muito mais, quando vi o morrão do cigarro a voar para a rua, numa
trajetória que me pareceu eterna, até ressaltar em pequenas faúlhas no asfalto.
A porta da varanda fechou-se.
Tentei regressar à
placa salvadora, mas os meus braços não tinham força para erguer o peso do
corpo. Com os pés, tateei freneticamente em busca de algo que me apoiasse um
pouco e facilitasse a tarefa. Os dedos estavam a fraquejar e iriam falhar a
todo o momento. Olhei de novo a varanda abaixo de mim. Tinha de ser! Baloucei-me
e larguei os ferros, lançando-me no vazio. Falhei a balaustrada abaixo de mim por uns milímetros e com os braços agitando freneticamente numa vã tentativa de me agarrar, entrei numa
queda silenciosa e interminável.
Saltei na cama,
sufocado e encharcado em suor.
quinta-feira, 29 de abril de 2021
O Teu Brilho Esta Noite
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Estava uma noite serena e morna. Pequenos diamantes
refulgiam sobre o puro veludo negro da noite, guardando a descomunal lua de
prata, que pairava sobre a paisagem. O ambiente ideal para meditar ou sonhar,
naquele terraço do hotel, com vista sobre a cidade de luzes douradas na margem
contrária do rio. A perturbar tão idílico ambiente, estava o som de fundo de
vozes, risos e copos a tilintar. O homem de estatura média, cabelo escuro e
barba aparada, segurando o copo com o líquido dourado e reluzente, preferia o
silêncio da noite estival, à animação que decorria nas suas costas.
André, assim se chamava, ponderara muito, antes de aceitar
comparecer àquela festa, especialmente aquela. Perdera o hábito de frequentar
tais convívios e transformara-se num autêntico eremita. Desperdiçara mais de três
anos, numa embriaguez permanente, enquanto escrevia crónicas com língua
viperina, para as revistas “cor-de-rosa”. Meses de recuperação alcoólica,
disseram-lhe que não poderia viver daquela maneira e afastou-se do gin e da
sociedade. Em vão recebia convites de conhecidos, para que fosse a este ou
aquele convívio, na esperança de serem contemplados, para o bem ou para o mal, num
dos artigos que repentinamente deixaram de jorrar da sua caneta. Desaparecera
do mundo, refugiara-se no seu apartamento e num contrato com uma revista, a
escrever o que lhe pediam. Na verdade, fora mais do que um problema alcoólico a
afastá-lo da sociedade; havia aquela mulher, que não via há uns anos e que lhe
deixara um vazio imenso, a mesma cuja eventual presença o fizera aceitar este
convite. Sofia, era a mulher que nunca conseguiu esquecer, talvez por ser a
única que não se deixou prender na sua teia depressiva e resolveu seguir em
frente, antes que ele a deixasse.
Apreciou o copo quase vazio, sabendo perfeitamente que não
deveria ter aceitado aquela bebida e ponderou deitar o resto no canteiro ali ao
lado. Decidiu-se por não desperdiçar aquela fuga à sua disciplina e esgotou o
conteúdo do copo, inclinando despudoradamente a cabeça para trás, para não
perder nem uma gota. Tendo consciência dos efeitos do álcool no seu já
destreinado organismo, olhou em volta em busca de um local onde pousar o
recipiente esgotado e foi quando a viu.
Atravessando uma das enormes portas que davam acesso ao
terraço e olhando em volta, como se procurasse alguém, ali estava Sofia; trazia
um vestido preto sem alças que contornava os peitos e acentuava a sua cintura
fina, continuando numa saia que abria num gracioso leque terminada por um
rendilhado preto sobre o joelho. Nos pés, calçava sapatos também negros, onde
reluziam alguns brilhantes em volta do tornozelo. Mas era o seu cabelo
acobreado escuro, natural, solto e luxuriante, envolvendo o rosto de linhas
firmes e nariz aquilino, que faziam com que não se conseguisse tirar os olhos
dela. O seu sorriso, enquanto cumprimentava os conhecidos, continuava
deslumbrante e toda ela irradiava luz, ofuscando a própria iluminação
artificial.
Quando ela o viu, foi como se uma nuvem tapasse o sol e o
resplandecente sorriso transformou o belo rosto com um ar preocupado e triste.
Ele apercebeu-se que estava sem respirar e soltou um suspiro involuntário,
enquanto o copo tremeu ligeiramente na sua mão.
— Olá, André. — A voz quente envolveu-o, assim que ela se
aproximou em passos calculados para que a sua passagem fosse notada. — Há muito
que não te via… estás mais magro. Fica-te bem!
— Em compensação, tu estás cada vez mais bonita. Parabéns.
Continuas a atrair os olhos de toda a gente… — ele aproximou o rosto do dela
para um cândido beijo, enquanto sussurrava — … homens e mulheres.
— Vejo que continuas a ser um comentador acutilante. — Ela
sorriu, sem corresponder ao beijo, mas sem se afastar. — Fico feliz por
aceitares o meu convite. Vai ser agora que me vais brindar com umas linhas num
dos teus artigos de gosto duvidoso, naquela revista execrável?
— A revista execrável paga-me o ordenado, sem ter de
arriscar a vida nas guerras deste mundo, como fazia antes… fazíamos. — André
encostou-se à balaustrada da varanda e cruzou os braços sobre o peito, sem
soltar o copo vazio. — De resto, não fui o único a procurar uma “atividade”
mais segura e rentável, deves recordar-te porque me tornei um “vampiro dos
costumes”.
— “Touché.” — Reconheceu Sofia com um sorriso maroto. —
Penso que estás a definir o meu casamento com um rico industrial da hotelaria
como uma “atividade segura e rentável”. Já sei que ninguém consegue esgrimir
palavras contigo sem sofrer uma estocada mortal.
— Ambos trocamos um jornalismo de ação… por atividades
diferentes. — Ele retribuiu o sorriso e a ironia. — Por mim, teve de ser mesmo
assim; os industriais da hotelaria nunca quiseram nada comigo, apenas os
editores de revistas execráveis… pelo menos também não tenho de dormir com
nenhum. Mas descansa — continuou — nunca escreveria nada sobre ti… pelo menos
de mal e o tipo de matéria que eventualmente sairia, não interessa aos meus
patrões.
— Fico feliz que assim seja. — Ela pousou suavemente uma mão
sobre a dele, num gesto de uma cumplicidade antiga, que o fez estremecer. —
Espero que essa trégua abranja o meu futuro marido.
— Não há aqui nenhuma trégua, para isso teria de haver uma
guerra, não te parece? — André endireitou-se enquanto tentava, sem sucesso,
agarrar a mão dela que recuava.
— Oh, mas há, meu querido. — Ela cruzou candidamente as mãos
sobre o ventre. — Uma guerra fria! Há quase dez anos que tens os misseis
apontados na minha direção, à espera de uma “causam belli”.
— Não é verdade. Nunca estive zangado contigo… — defendeu-se
ele. — … apenas desiludido. Aproveitares a minha reportagem para surgires de
repente com o fim da tua carreira ao lado desse… palhaço.
— Eu?!? Aproveitei a tua reportagem? — Ela soltou uma
gargalhada nervosa e cínica. — Depois de te pedir encarecidamente que não
fosses… estiveste fora um ano!
— Foi complicado… — Ele acalmou-se perturbado pelas
recordações. — Fui sequestrado e…
— Bem sei! — Sofia atirou com irritação. — Segui cada
notícia, contactei todos os que conhecia, chateei, persegui um secretário de
estado, para que se interessassem pelo teu problema. — Perante o olhar de
espanto dele, ela fez uma careta cínica. — Achas que te libertaram pelos teus
lindos olhos? Ou pelo teu talento jornalístico?
— Não sabia…
— Bem sei que não! Pedi que não dissessem. — Ela volveu o
olhar ao chão. — Também não deves saber que abortei três meses após a tua
partida…
— Meu Deus! — O espanto de André dizia tudo. — Que
aconteceu? O nosso filho, estavas grávida?
— Quando te foste também ainda não sabia. Não sei o que foi,
alguma incompatibilidade, deficiência, stress, sei lá. Agora também não
interessa, não quero falar disso. — Sofia falou rapidamente enquanto atirava
tudo para trás, com um gesto e uma expressão triste. — Isto não está a correr
nada como eu esperava. Queria que ficássemos amigos, tenho saudades das nossas
conversas…
— Só das conversas? — Ele baixou a cabeça para lhe poder ver
os olhos verdes que lhe devolveram o olhar nervosamente. — Nunca deixei de te
amar…
— Meu querido. — Sofia ergueu a cabeça, endireitou os ombros
e deu um passo atrás. — O que foi não volta a ser! Estou casada e feliz há dez
anos. Gosto muito de ti e gostava muito que fossemos amigos, mas só isso.
— Que esperavas? Que festejasse contigo? — André
enfureceu-se. — Regresso de uma das piores experiências da minha vida para
encontrar a mulher com que amava casada com o playboy dos hotéis!
— E que esperavas tu? — Por uns instantes os olhos dela faiscaram
de raiva. — Foste embora na altura em que mais precisava de ti, porque a tua
carreira, ou o teu desejo de morte, era mais forte! Preferias a adrenalina de arriscar
a vida nas reportagens dos conflitos, do que a alternativa de uma existência
medíocre de classe média… ao meu lado. — O rosto suavizou-se e acariciou-lhe ternamente
a face. — Acabaste por deixar tudo na mesma, para te tornares ainda mais amargo,
do que já eras em tempos de paz.
— Vem comigo! — Pediu André tentando segurar a mão gelada que
lhe acariciava a face. — Deixa tudo isto, as luzes, a riqueza desse homem que
não vale nada. Sabes que o negócio dos hotéis é a capa para a venda de armas
nos conflitos, por isso nos encontrávamos os três, muitas vezes, durante o
nosso trabalho.
— Também nós e tu mais do que eu, vivemos desses mesmos
conflitos. — Ela puxou a mão suavemente. — Por mim já tinha demasiado tempo,
suja de terra nos campos de batalha, ou nos hotéis bombardeados, sempre à
espera que o meu quarto fosso próximo atingido e pedia que, quando o fosse,
atingisse em cheio e não me deixasse estropiada ou a sofrer. — Sofia pousou os
olhos no chão. — Chama-me fútil, mas estou numa vida cómoda rodeada pelo luxo e
tudo o mais que quiser. Não vou retroceder.
André fitou a mulher com estranheza, como se a visse pela
primeira vez. Aquela não era a sua antiga companheira, aquela que partilhou o
perigo com ele, em mais de uma dezena de conflitos por esse mundo fora. Que tivera
nos seus braços, escondidos entre os escombros, durante os bombardeamentos. Não
era a mulher que tirara fotos fantásticas que ilustraram os seus relatórios
apaixonantes e que fizeram as páginas principais de revistas e jornais. Afinal,
também ele já não era o repórter de guerra, mas sim um frívolo cronista, mais ocupado
com quem dorme com quem na sociedade. Já não contava histórias de morte e paixão
pela liberdade, mas sim os podres da existência humana em tempos de paz, vivida
às custas de outras guerras.
— Este senhor está a incomodar-te, querida? — Ao lado dela
apareceu um homem, ligeiramente mais baixo, praticamente careca, mas
impecavelmente vestido com um fato de corte moderno. — Queres que chame os
seguranças? — Exibiu um sorriso de superioridade, enquanto abraçava a mulher
pela cintura. — Como estás, André? Quem é a “vítima” do teu desprezo pela
sociedade esta noite? Espero que não a minha doce Sofia.
— Já a descansei a ela e descanso-te a ti também, meu caro
Ricardo. — Respondeu o visado erguendo o copo vazio à guisa de um brinde. —
Façamos desta noite, uma noite de paz e… tréguas.
— Ah, a guerra fria! — O outro fingiu um olhar sonhador e
divertido. — Em tempos de paz, prepara-te para a guerra! Há que armazenar mais
e mais armas!
— Graças a isso, há
quem enriqueça mais e mais, sobre armazéns de armas, ou pilhas de cadáveres! —
Atirou André amargamente, fazendo com que Sofia arregalasse os olhos num aviso.
— Acutilância! — Divertido, Ricardo piscou um olho e apontou
o indicador ao outro, numa expressão marota. — Em todos os conflitos, ganha quem
tiver mais recursos! É uma lei da vida! — Apertou mais e agitou significativamente
a cinta de Sofia. — Julguei que tivesses aprendido alguma coisa nos anos de
guerra que ambos vivemos. — O sorriso desapareceu rapidamente enquanto olhava para
a mulher. — Temos de ir, querida, o presidente da câmara está ansioso por te
conhecer. — Depois tornou para André. — Aprecia o melhor que puderes desta
festa. Sei que o tema não te agrada, mas enfim, quando não podemos caçar,
comemos do que nos dão!
Sofia deixou que Ricardo a puxasse suavemente, deitando
apenas um último olhar contristado ao antigo companheiro.
André ficou ali, encostado na balaustrada, vendo os dois
afastarem-se, dividido entre o olhar triste de Sofia e o sorriso triunfante de
Ricardo. Com ela, ia-se o sol embora de vez e repousava sobre os seus ombros
uma noite eterna e fria, que teria de passar sem a mulher que amava.
— Aproveitemos o que nos dão, enquanto se dissipa o brilho de Sofia! — Concluiu para si próprio, afastando-se da parede e caminhando lentamente para o salão. — Preciso de uma boa bebida, para tirar este sabor amargo da garganta.