sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Livre

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Imagem: Karate by
Dave & Margie Hill / Kleerup - Fickr

Para Mariana, aquele dia poderia ser igual a tantos outros, mas a tensão que sentia em todo o corpo dizia-lhe que não era assim.
Entrou na área do escritório. Cinco secretárias estavam já ocupadas com funcionárias que, sorriam os bons dias, à medida que se apercebiam da sua chegada.
Atravessou o “open space” no seu passo largo e decidido, levemente sustido pela saia curta e apertada, cumprimentando mecanicamente as suas colegas e subordinadas.
O cabelo negro comprido e sedoso subia e descia ao ritmo do bater dos tacões finos no chão de linóleo.
Fechou a porta do seu gabinete, atirou a pequena pasta e a carteira para cima da secretária e sentou-se, pesadamente, na cadeira.
Ligou o computador e pousou os cotovelos sobre a mesa, tapando os seus olhos verdes com as mãos abertas.
Um bater suave na porta foi precedido pela entrada de uma funcionária transportando uma chávena fumegante de café.
-        Dá-me licença, senhora doutora?
-        Sim, Susana, entra. És a minha salvadora ao repor os meus depauperados níveis de cafeína à normalidade. – A voz dela era suave mas firme.
A chávena foi-lhe entregue em mão:
-        Já telefonaram da Pinto & Pinto, dizem que vão apresentar novo orçamento. O senhor João Marques confirmou a reunião para hoje à tarde, para a qual trará a proposta para o novo contrato. Sim, o café já tem açúcar e já está mexido.
Mariana sorriu:
-        Ai que as coisas estão muito apressadas hoje. Ou serei eu que estou lenta? – Sorveu lentamente a bebida… – De futuro, põe só metade do açúcar habitual. Acho que tenho que fazer uma dietazita.
-        Ainda tenho ali mais uns documentos para assinar. Trago-lhos já, ou prefere ambientar-se mais um pouco? – Os lábios delas contorceram-se de forma divertida.
-        É melhor aguardar mais um pouco… - Pediu - Vou ver esta papelada que tenho para aqui...vou ler as mensagens… Mais daqui a pouco.
-        Sim senhora, até já.
Suave como entrara, assim saiu.
Gostava dela. Gostava daquele seu jeito calmo e meigo, embora eficiente. Só estava ali há dois anos, mas ambientara-se perfeitamente e fizera com que ela esquecesse rapidamente a sua antecessora, mais austera e pouco dada a conversas.
Com o café a começar a fazer efeito, pendurou o casaco e a carteira no cabide e tornou a sentar-se focando a sua atenção no computador.
Passou as várias mensagens novas em revista até o seu olhar se imobilizar sobre uma em particular:
De: André Neves, Assunto: Bom dia.
Passeou o cursor do rato sobre a mensagem, várias vezes ,como que a decidir-se se a abria ou não…
Por fim, executou a ordem para abrir e fez uma careta de desagrado quando o sistema de correio a alertou com o aviso: “Mensagem automática de aviso de receção enviada”.
Agora ele já sabia que ela chegara e já abrira o correio…
O conteúdo da mensagem era lacónico:
Terceiro dia que chegas sem me vir dar os bons dias. A partir de agora vai ser assim?
André era o seu patrão… e seu amante. Ou ex-amante.
Na semana anterior, uma discussão terrível provocou a rotura final naquilo que se estava a tornar saturante.
                                                                  
Ele e os seus ciúmes terríveis e incompreensíveis levaram a uma nova e brutal divergência de opiniões que culminou na decisão que ela lhe comunicou:
-        Está tudo acabado, percebes? – Parecia que estava a reviver cada minuto, naquele quarto do Motel, revendo-se ainda apenas de saia e soutien e com o cabelo desalinhado. – Segunda-feira terás a minha carta de demissão na tua secretária.
Ele riu-se alto, colocando-se de frente para ela apenas com as calças vestidas… Com aquele peito coberto de pelos negros que tanto a perturbava...
-        Achas que termina tudo assim?
-        Eu sabia que isto iria ser um erro. – Lamentou-se ela, voltando-lhe as costas e começando a vestir a blusa.
-        Não me voltes as costas! – Ordenou ele, forçando-a a rodar com um forte puxão no braço.
Ela sacudiu-o com uma rotação ágil e, de punhos cerrados, enfrentou-o com uma ameaça sussurrada:
-        Para com isso! Já sabes que pela força não me levas a lado nenhum…
Não era a primeira vez que se defrontavam e André aprendera, rapidamente, que por trás daquele corpo franzino se escondia uma judoca experiente, capaz de o fazer “morder o pó” num instante.
Sentindo que tinha induzido a hesitação, ela retomou o ato de vestir a blusa.
Aproveitando o momento em que tinha os braços presos, ele apertou-a, imobilizando-a num amplexo brutal que a deixou sem fôlego.
Nariz com nariz, olhos nos olhos, o hálito ainda morno dos seus beijos chegou-lhe acompanhado do rosnar ameaçador:
-        Não vais a lado nenhum, ouviste? Não serás de mais ninguém. Se me trocas por outro hei de matar quantos de ti se aproximarem.
André nem conseguiu perceber quando o calcanhar dela esmagou violentamente os dedos do seu pé, fazendo com que a largasse, para em seguida ser derrubado com um forte pontapé na parte anterior do joelho.
Deitado no chão, acompanhou com o olhar aquelas coxas voluptuosas que entravam pela saia curta desaparecendo na escuridão. Sentiu a excitação regressar e fez desaparecer o sorriso de triunfo do rosto dela ao agarrar-lhe um dos tornozelos, tombando-a desamparada a seu lado.
No momento seguinte, estava de novo por cima lutando desajeitadamente com o soutien dela.
Por momentos, esteve tentada a ceder, mas não queria deixar que a raiva desvanecesse transformando-se numa sessão de sexo enlouquecido doentio e dominador como acontecera tantas vezes.
A sua mão livre procurou em volta até agarrar um dos enormes sapatos que usou para agredir o seu proprietário, várias vezes, na cabeça e nos braços, até que a soltasse.
Ergueu-se furiosa e, num movimento fluído, com a roupa no braço, calçou-se e abandonou o quarto, vestindo-se enquanto percorria o corredor.
A porta estrondeou com força e André quedou-se perplexo, no chão, esfregando as mazelas.
                                                          
Mariana sabia que ia ser difícil. Várias vezes pensou em terminar tudo, normalmente no motel, depois de fazerem amor, mas, na hora em que se preparava para o fazer, rebentava sempre uma discussão.
Discussão essa que acabava em violência, sexo e umas quantas nódoas negras.
Não queria mais aquilo. Inicialmente era bom. Adorava quando o orgasmo chegava em ondas de prazer infinito, acompanhadas pelas dores nos braços, nas pernas, em todo o corpo, fruto do autêntico combate que travavam enquanto se devoravam sofregamente.
Acabavam assim as discussões. Completamente esgotados, transpirados e doridos após um início  com  murros e pontapés e um fim com um orgasmo explosivo e amnésico.
Muitas vezes dissera a si própria que aquilo era um erro.
Saíra da relação terna e mansa com Miguel, para se envolver numa espiral de violência com André. Não imaginava que iria gostar daquilo… Era doentio.
Ela excitava-se com as bofetadas que lhe dava, com as joelhadas e os apertões e ele enlouquecia-a com as sapatadas ou as mordidelas…
As marcas de dentes e as nódoas negras nos lugares mais inesperados contavam toda a história sem palavras.
                                                          
O abrir violento da porta do gabinete trouxe-a de volta à realidade.
Aí estava ele… André. Os ombros largos a ocupar a largura da porta, o seu cabelo encaracolado negro a tocar a parte superior da entrada e emoldurando o rosto redondo, praticamente dominado por aquele sorriso de desafio que a tinha conquistado.
-        Olá! – Disse simplesmente.
-        Que queres? – Atirou, fingindo-se interessada nos papéis em desordem.
-        Vim devolver-te uma coisa. – Sem perder o sorriso, em dois passos largos, aproximou-se e largou uma rodopiante folha no tampo da secretária.
Ela acompanhou o voo com um olhar de soslaio. – As letras PIR, rabiscadas raivosamente a vermelho, sobressaíam no texto curto que conhecia muito bem.
-        Sabes o que é? – Ele continuou, agora sério, de olhos faiscando. – O teu patético pedido de demissão. Classifiquei-o como alguns dos teus projetos: PIR, Projeto Impossível de Realizar.
Mariana ergueu-se e enfrentou-o:
-        Julgas que é o facto de recusares a minha demissão que me impede de ir embora?
-        Se o fizeres, arrastar-te-ei o resto da vida pelos tribunais.
-        Não sejas parvo, que ganhas tu com isso?
André, com a sua  mão enorme, agarrou violentamente o pequeno rosto por baixo do queixo e aproximou-o do seu, enquanto sibilava ameaçadoramente:
-        Não hás de ir embora. És minha e terão que partir as mãos do meu cadáver para te tirar de mim.
O movimento circular e inesperado do braço estalou no pulso dele fazendo-o largar a presa que gritava em tom ameaçador:
-        Eu não sou de ninguém, ouviste? Não mandas em mim, não és meu dono! Foste apenas meu patrão enquanto ambos quisemos. Agora, eu não quero mais! Virei ainda esta semana para terminar alguns trabalhos que estão começados por respeito à empresa, não a ti. Depois não me verás mais!
-        Já te disse que não irás  a lado nenhum sem eu querer. – Retomou o ataque prendendo-lhe os braços com força e puxando-a para si.
-        Deixa-me! – Exigiu tentando soltar-se. – Deixa-me ou…
-        Ou quê? – Desafiou.
A forte joelhada apanhou-o desprevenido, fazendo-o curvar-se sobre ela.
Aproveitando a oportunidade, Mariana atingiu-o com uma cabeçada que lhe apanhou o nariz e a boca.
André largou-a, mas, após uns segundos de surpresa, olhando o sangue que lhe corria profusamente para a mão, atingiu-a com a mesma numa poderosa bofetada que a projetou contra as estantes do gabinete.
Atordoada, deixou-se ficar caída no chão tentando acertar ideias enquanto ouvia a porta bater, explosivamente, e o som de vidros a partir.
-        Não me voltas a pôr a mão em cima, filho da p...!. – Sussurrou raivosamente.
-        Doutora Mariana! – Em apenas uns segundos, o grito aflito de Susana foi acompanhado da ajuda a erguê-la do chão. – Valha-me Deus, tem a cara com sangue, deixe ver onde se magoou.
-        Eu estou bem. – Sossegou-a, aceitando o auxílio enquanto apalpava o rosto à procura de ferimentos. – Acho que o sangue não é meu.
A jovem secretária encaminhou-a para uma cadeira limpando-lhe a face com um lenço de papel.
-        O Doutor André saiu daqui furioso. Bateu a porta com tal força que até rebentou o vidro do gabinete… Ai meu Deus, está tão marcada!…
Lentamente, as ideias começavam a tomar ordem e, após uma olhadela rápida ao gabinete, que mais parecia uma rua do Líbano, pediu:
-        Chame alguém da limpeza para arrumar esta confusão e um vidraceiro para pôr um vidro novo… - O seu olhar parou nas funcionárias boquiabertas que se amontoavam à entrada. - … e voltem todas ao trabalho que o espetáculo já acabou.
-        Sim, senhora. – Com um ar preocupado, Susana afastou-se resolutamente, encaminhando-se para a porta. – Vamos, meninas, não há nada para ver, deixem a senhora doutora que ela está bem. Eu já volto com um cházinho.
Obstinadamente, recusou-se a abandonar o trabalho e o dia arrastou-se muito devagar.
Cancelou as reuniões e almoçou sozinha no gabinete uma sande que Susana lhe tinha trazido; aguentou a visita do vidraceiro e mais ninguém a incomodou, nem ela tentou falar com ninguém.
O rosto ardia e latejava, tal como a fúria dentro da sua cabeça.
A porta do gabinete abriu-se com cuidado e um rosto feminino, moreno e de longos cabelos, assomou timidamente:
-        Posso?
-        Sim. Entra Júlia. - O seu tom de voz não era propriamente de quem estava feliz por receber visitas.
A jovem entrou, fechou a porta e ficou quieta, em posição de sentido, olhando para ela com um sorriso divertido.
Júlia era a responsável pelo Departamento Jurídico e uma amiga incondicional desde o primeiro minuto de Mariana naquela empresa. Os seus trinta e poucos anos não se notavam no seu corpo franzino de adolescente e no seu rosto permanentemente divertido.
-        Que aconteceu aqui, amiga? - Perguntou  a recém chegada, aproximando-se da secretária. - Vi um vidraceiro a trazer um vidro para e... que tens na cara? Valha-te Deus!
A expressão chocada da jovem fez com que levasse a mão ao rosto que continuava a arder:
-        Nada, um pequeno acidente, caí contra uma cadeira...
Ela afastou-lhe a mão, examinando a marca que começava a arroxear:
-        A tua cadeira tinha dedos...
Mariana soltou a mão com um gesto de contrariedade e ripostou:
-        Não interessa. Foi um disparate.
-        Temos de pensar em mudar rapidamente o mobiliário daqui da empresa. Está a tornar-se agressivo. - Enfrentou a amiga com um olhar de soslaio. – Imagina a coincidência... acabei de falar com André ao telefone e ele foi atacado por uma mesa...  levou sete pontos na boca...
A visada sentiu-se corar com a brincadeira:
-        Desta vez, ele passou das marcas.
-        Não passaram vocês os dois? Quantas vezes te disse que isto um dia iria correr mal?
-        Tu também já andaste com ele! - Acusou.
-        Sim, mas nunca enveredei pelo caminho que vocês tomaram. Quando a coisa começou a ter requintes de violência tratei de “sair do comboio”. E olha que não foi fácil!
-        Imagino que não...
-        No início ainda tentou fazer-me a vida num inferno, mas quando viu que tinha mais a perder do que a ganhar, foi-se adaptando e agora posso quase dizer que somos bons amigos.
-        Quase!...
-        Quase. De vez em quando tem umas recaídas, mas como não dá em nada...
-        Grande cabrão! Enquanto andava comigo? E tu não me dizias nada?
-        Lamento, querida. Não iria ser eu a interromper o vosso... idílio... dolorido. - Um piscar de olho e o sorriso maroto sublinharam as suas palavras enquanto se sentava sobre a mesa.
-        De todas as formas não interessa mais. Vou-me embora!
-        Ele disse-me que querias fazer isso e pediu-me para desenterrar qualquer coisa que lhe permita recusar a tua demissão. Toma cuidado com ele. Está desvairado.
-        E tu? Que vais fazer?
-        Pintei-lhe um quadro cheio de dificuldades e disse-lhe que o melhor era vocês entenderem-se... Ele acha que não é possível. É?
-        Se ele acha que me vai manter aqui contra a minha vontade, não.
-        Vê lá! Tenta dar tempo...
-        Não há mais tempo.
-        Olha por ti, amiga, ele vai cansar-se. De outra forma....
-        Tenho de ir embora. - Avisou erguendo-se e encaminhando-se para o cabide que suportava o casaco e a carteira. - Agradeço-te as tuas boas palavras, Júlia. Aprecio-as como sempre  apreciei estes anos todos, mas estou cansada. Não vou ser calcada mais vez nenhuma.
-        Lamento que as coisas estejam assim. - Era uma Júlia triste que pôs as mãos em volta do pescoço de Mariana e lhe beijou a face sã. - Eu tenho de ir embora, vai descansar também tu, amanhã parecerá tudo melhor.
-        Deus te oiça. - Conseguiu esboçar um sorriso triste.
Quando abandonou o escritório já começava a anoitecer. Foi a última a abandonar o posto, como era hábito, e fez o caminho solitário até ao parque de estacionamento junto da estrada.
Os automóveis faziam um ruído ensurdecedor enquanto circulavam a grande velocidade na via rápida, que delimitava a face norte do parque.
À sua espera, junto do seu pequeno “Smart”, estava Xico, um toxicodependente que havia anos “guardava” os automóveis do parque, em troca de umas poucas moedas.
Já se conheciam há tanto tempo que ela chegava ao ponto de lhe confiar as chaves da viatura para que a lavasse.
Xico até podia ser  bem parecido se tivesse um pouco mais de cuidado com o seu aspeto geral, se cortasse mais vezes aquela barba hirsuta ou o cabelo.
O importante é que tinha caído nas boas graças de Mariana que lhe dava boas gorjetas e, de vez em quando, trazia roupas usadas do ex-marido. Criaram, em suma, uma  ótima relação de amizade onde o subserviente tratamento que Xico lhe dedicava  revelava uma admiração que quase poderia ser chamada de amor.
Mariana fingia não perceber a perturbação dele quando lhe falava de igual para igual e se preocupava se já tinha comido alguma coisa ou há quanto tempo não consumia. Servia-se do seu ascendente para o censurar com brandura quando  se apercebia que não tomava banho há algum tempo ou se via nos seus olhos o efeito das drogas que ele negava ter consumido.
Naquele momento, conseguia notar o seu ar de preocupação e os olhos assustados enquanto a chamava:
-        Doutora.! Doutora Mariana. Venha ver, eu não tive culpa. - As lágrimas assomavam-lhe aos olhos, enquanto ela acelerava o passo para junto do carro. - Veja! - Apontava desconsolado para a porta negra do carro. - Veja o que ele fez, foi o Doutor André, eu tive medo de me chegar a ele, Doutora, desculpe.
Na porta do condutor, imaculadamente negra, estavam profundamente riscadas na tinta as iniciais “PIR”.
-        Aquele gajo está completamente louco! - Desabafou ela.
-        Ele estava desvairado, Doutora. Desculpe-me. - Lamentava-se Xico.
-        Deixa lá. A culpa não foi tua. - Mariana olhou-o de frente. - É um desentendimento entre nós. Não te metas no caminho dele que eu cá me entendo...
-        Oh! Que tem na cara? Que lhe fizeram?
-        Nada, não foi nada. Caí e bati numa cadeira, só isso. - Justificou-se.
Ele aproximou o rosto para examinar a mancha roxa e comentou:
-        A sua cadeira tinha dedos.
Mariana olhou-o indignada:
-        Também tu?
-        Foi ele, não foi?
-        Esquece, não tens nada com isso.
Voltou-lhe as costas,  entrou no carro e arrancou violentamente, deixando Xico sozinho no meio do parque vendo-a afastar-se.
Naquela noite o jantar arrastou-se no tempo. Estava sem apetite para comer o resto de comida que, na noite anterior, tinha trazido do restaurante no rés do chão do prédio.
Para o mês que vem fará dois anos que Miguel saiu da sua vida mais ou menos definitivamente. Mais ou menos porque continuavam a falar-se de vez em quando e frequentemente ele vinha buscar coisas que tinham ficado no apartamento. Dois anos que pareciam séculos quando pensava em tudo o que se passara entretanto.
Tão diferente de André... Toda aquela meiguice e doçura. Incapaz de um gesto violento, de um grito que não tivesse sido provocado... Bem provocado.
Em oito anos de casamento só o tinha visto perder a calma duas vezes; uma no próprio dia do casamento, quando viu o que os seus amigos tinham feito ao seu carro, com batom nos vidros e espuma de barbear nos estofos... Não conseguiu impedir uma risada... Ele estava tão furioso e ela não conseguia parar de rir. Ficou séria de repente: A outra foi quando lhe disse que queria o divórcio.
Como foi que tudo acabou? Como foi que se deixou envolver com André para o preferir a Miguel?
Teria sido ela com a sua constante insatisfação? Ter-se-ia cansado da doçura e da calma dele? Dos enormes períodos de tempo a fazer amor sem pressas? Cada orgasmo a valer por mil...
Aquela estúpida conversa, que ela tinha, de querer ser livre...
Como foi que aconteceu?...
O vibrar do telemóvel sobre o balcão sobressaltou-a, afastando-a do mundo dos sonhos.
-        Miguel - Leu no visor enquanto pressionava o botão para atender. – Terias as orelhas quentes? – Perguntou-se.
-        Estou, Mari? - A voz profunda e quente, cheia de recordações, ecoou no seu ouvido. – Como tens andado? Tudo bem contigo?
-        Olá, fofo. Tudo bem, e tu, que tal? - As lágrimas assomaram-lhe aos olhos, mas não deixou que a voz a traísse. - Já trocaste de namorada?
-        Não, claro que não, sabes que eu sou lento nessas coisas. - Notava-se um sorriso nas suas palavras. – Não é num simples ano que esgoto a minha paciência. É mais fácil cansarem-se de mim, dizerem que se sentem presas e isso.
-        Touché. - Reconheceu ela com um sorriso triste. - Mas não foi para trocarmos carinhos que ligaste, pois não?
-        Não, não, claro!
-        Então?...
-        Lembras-te dumas caixas com CDs do meu antigo trabalho que deixei aí? Preciso de alguns deles para um projeto que estou a desenvolver e...
-        Onde queres que tos deixe?
-        Precisava disso, estilo... agora?
-        Ai!
-        Desculpa, querida, mas estou a tratar disso agora e só tenho até depois de amanhã para terminar... Pleeeease?
-        Como queres fazer? – Perguntou.
-        Passo aí num rápido, dou-te um beijo, pego o que quero e saio voando.
-        Está bem. Cá te espero.
Reagindo a um impulso, começou a arrumar a loiça que havia sobre os balcões, deitou o resto da comida fora e correu a arrumar os lençóis da cama que ficaram em desalinho desde manhã.
Depois, numa corrida à casa de banho, deu um jeito no cabelo, pôs desodorizante e um pouco daquele perfume que ele adorava.
A marca gritante em seu rosto não era fácil de disfarçar, mas… havia sempre que tentar.
Quando a campainha tocou, ela achava ter feito um bom trabalho e saltitou para a porta que abriu completamente.
-        Olá! – Aparentou um ar descontraído.
Ele mantinha-se entre o magro e o gordo; a barba fina e aloirada que lhe enfeitava o queixo continuava a emprestar-lhe um ar distinto que ele sublinhava com um aspeto reservado e poucas falas.
Os olhos castanhos, vivos, percorreram-na de alto a baixo, como que apreciando se estava tudo no sítio e pareceram demorar-se no rosto dela.
-        Olá, doçura. – Cumprimentou ele com um beijo na face sã que ela ofereceu. – Como tens andado?
-        Oh, assim, assim. Muito trabalho e tal… O costume. E tu?
-        Eu estou bem, o trabalho também e blá, blá, blá. Continuo a detestar conversa de circunstância. – O sorriso irónico dizia tudo.
-        Eu também, claro. Mas entra e toma qualquer coisa, uma cervejinha?
-        Não, obrigado, não estou mesmo com tempo. Preciso só dos CDs para ir trabalhar. – A atenção dele pareceu fixar-se, novamente, na face magoada dela.– Para outra vez poderá ser.
-        Uma pena. – Lamentou sinceramente. – Eu vou buscar os CDs, senta-te aí na sala, está à vontade.
Não aceitou a oferta e manteve-se em pé, circulando, nervosamente, em volta do pequeno hall.
Não tardou que ela regressasse com uma caixa contendo alguns livros e dezenas de CDs, última das pistas da sua existência naquele apartamento, e a entregasse a Miguel.
-        Aqui está. Pensar que estiveste para deitar tudo fora…
-        É verdade. – Confessou – Achei que não iria mais precisar disto, mas, pelos vistos, enganei-me.
Um silêncio embaraçante desceu sobre os dois, que ficaram alguns segundos, sem ter onde fixar o olhar.
-        Bem... – Começou ele –... já tenho o que quero e… - Olhou-a fixamente. –... vais-me dizer o que te aconteceu na cara?
Ela corou dos pés à cabeça e baixou os olhos.
-        Não é da tua conta…- Disse quase sem se ouvir.
-        É justo. Vou-me meter na minha vida. – E, ofendido, rodou na direção da porta. – Adeus e obrigado.
-        Espera! –Pediu ela,mantendo o olhar no chão. – Desculpa.
Ele manteve-se de costas para ela, com a mão no puxador e aguardou.
-        Foi um acidente…
Ele voltou-se e, com o rosto empedernido, enfrentou-a: 
-        Acidente?
-        Sim, caí e…
-        Bateste numa cadeira…
-        Pois…
-        Hã, hã.
-        Foi isso. – Tentou ela.
-        Sim. A tua cadeira tinha dedos, sabias?
-        Cala-te, não digas isso! – Irritou-se.
-        Porquê? É a verdade. Aquele filho da p... sempre te fez dessas merdas. Mesmo nos últimos tempos em que estivemos juntos te fazia marcas pelo corpo todo. – O seu olhar era furibundo e falava atabalhoadamente para o rosto atónito dela. – Sim, claro que eu notei muitas vezes, ou julgas que sou cego?
-        Nunca disseste nada!… - Ela estava petrificada com os olhos verdes, incrédulos, fixando o rosto vermelho dele.
-        Que querias que te dissesse? Tudo serviria para começar uma discussão que acabaria… - Entristeceu e baixou o olhar onde as lágrimas começavam assomar. - …no que acabou.
-        Miguel… - Também ela transformava o choque em dor e olhava-o cheia de tristeza.
-        Não imaginas o mal que me fazias. Quando via as marcas que trazias, mordia os lábios e as mãos para tentar reprimir o ódio e suportar o que se passava, sempre dizendo a mim próprio que era uma coisa que acabaria por passar…- Suspirou - …afinal quem passou fui eu.
-        Meu querido… - As lágrimas corriam-lhe livremente, enquanto acariciava o rosto dele. - … meu pobre querido… não querias fazer amor, deitavas-te sempre muito mais tarde que eu, para que estivesse a dormir… meu pobre querido…
Estremeceram com o estrondo que a caixa fez ao cair no chão, mas no momento seguinte estavam num abraço apaixonado devorando-se mutuamente.
Horas mais tarde, estavam ambos na cama, que ultimamente ela tinha só para ela e, calados, olhavam o teto da divisão como se este fosse um ecrã que exibia o filme da vida deles.
-        E a tua namorada? – A voz dela quebrou o silêncio.
-        Que tem?
-        Que lhe vais dizer? São quatro da manhã.
-        Tenho de lhe dizer alguma coisa? – Ele voltou o rosto para ela. – Justificar-me, queres dizer?
-        Tipo isso.
-        Eu estava no meu apartamento.
-        Ah!...
De novo silêncio.
-        E o teu trabalho? – Retomou ela.
-        Vai ser lixado de fazer dentro do prazo…
-        Desculpa.
Ele envolveu-a num abraço e encostando o seu rosto ao dela, retorquiu:
-        Não tens que pedir desculpa por nada. Se não quisesse ficar, não ficava, não te parece?
-        Sim, mas…
-        Sem mas. Vamos esclarecer uma coisa?
-        O quê?
-        Que significou isto para ti?
-        Que queres dizer?
-        Significa que vamos voltar, ou quiseste dar uma rapidinha?
Furiosa, ela sentou-se na cama com os seios soltos e mamilos espetados num desafio, enquanto o invetivava:
-        Será que ejaculaste a inteligência, pedaço de asno?
Apesar de estar de olhos fixos naquela visão paradisíaca, não conseguiu conter-se sem soltar uma sonora gargalhada que provocou o riso nela também.
-        Achas que eu iria para a cama contigo por uma rapidinha? – Sorridente, ajoelhou-se na cama, exibindo-se de mãos na cinta. – Por quem me tomas? E desde quando isto que fizemos foi uma rapidinha?
Ele puxou-a para cima de si e ficaram um bocado abraçados, de olhos fechados, como que a pensar o que fazer a seguir.
-        Já não estás com ele? – A voz de Miguel soou rouca e quase apagada.
-        Não. Agora já não.
-        Zangaram-se. E quando te passar?
-        Não há de passar nunca.
-        Comigo passou.
Mariana soergueu-se para o poder olhar nos olhos, enquanto negava:
-        Não, meu amor, não passou. Nunca passou, eu é que era uma parva e, sem saber como, envolvi-me numa loucura.
-        Uma loucura que durou dois anos.
-        Um período mal pensado da minha vida. Um sonho cinzento do qual tive dificuldades em acordar. Quando olho para trás sinto-me como se tivesse saído de um encantamento, um feitiço que não me deixava ver a realidade…
-        Mas que agora acabou.
-        E que agora se dissipou.
-        E o emprego?
-        Estou decidida! Ia aguardar o fim do mês, mas mudei de ideias. Irei hoje, arrumo as minhas coisas e desapareço dali para sempre. Nem me vou despedir de ninguém, depois mando uns mails ou isso.
-        Tu saberás o que é melhor, terás de procurar outro emprego. Eu não estou em condições de ganhar sozinho para a casa, neste momento, pelo menos para fazer a vida a que estávamos habituados.
-        Isso mesmo, chega de falar de mim. E tu? Como vai ser?
-        Terei  de ter uma conversa com a Luísa e…
-        Estiveste sempre com ela? Este tempo todo?
-        Não… - Baixou os olhos. - Isto é, quase, mas entre nós não há nada de muito sério. Nunca vivemos juntos nem nada. Eu tenho o meu T0 e ela o apartamento dela, por vezes passo lá a noite, mas raramente.
-        Então não vais ter problemas?
-        Acho que não.
Acabaram por adormecer abraçados, até serem acordados pelo toque “infernal” do despertador do telemóvel às 7:30.
Mariana ergueu-se com cuidado e o seu rosto iluminou-se num sorriso celestial, entre os cabelos em desalinho e as olheiras que lhe enfeitavam os olhos, ao ver o jovem meio adormecido na sua cama.
Beijou-o, ternamente, no rosto, bem a apanhar o canto da boca e desceu da cama completamente nua, balançando as nádegas sensuais em direção à casa de banho.
Chegou ao seu gabinete muito mais cedo que o normal.
No escritório, só se cruzou com a sua fiel Susana que lhe perguntou como se  sentia e fez questão de avaliar, de perto, a mancha roxa do seu rosto .
-        Amanhã já não terá nada. – Encorajou – Ou quase. Quer que lhe traga um café?
-        Sim, querida, por favor.
Tão depressa ela se afastou como começou a reunir os seus pertences das gavetas para uma pequena caixa. Não arrumou a secretária para não despertar as atenções, mas não resistiu a assinar um ou dois documentos que, possivelmente, no dia seguinte  ou  mesmo naquele dia seriam  rasgados.
Estendeu a mão para ligar o computador, mas arrependeu-se logo de seguida e não o fez.
O telefone tocou e ela teve um grande período de hesitação, atendendo-o só ao terceiro toque:
-        Sim? – Interrogou.
-        Doutora Mariana? – Uma voz de homem – Aqui é o Aníbal, da receção.
-        Sim, Sr. Aníbal, bom dia! Diga se faz favor?
-        Desculpe estar a ligar-lhe, mas... – Ouvia-se, como barulho de fundo, outra voz alterada a barafustar. – ... está aqui aquele… humm… fulano do parque de viaturas… - Espere, homem, estou a falar!
-        O Xico, sim, que se passa?
-        Ele está desvairado, quer  a toda a força subir e falar consigo… Esteja quieto, não se chegue aqui que suja tudo de sangue!
-        Sangue?!? Que aconteceu? Ele está magoado? Vou já para aí.
Atirou com o telefone e saiu a correr para o elevador e daí direto para a receção.
O rececionista discutia com um Xico, de casaco rasgado, sangrando de um corte na sobrancelha direita e com os dentes, habitualmente negros, tingidos de vermelho.
-        Xico! – Assustou-se – Valha-me Deus, que te aconteceu? Que é isso?
-        Senhora doutora! – O rosto dele iluminou-se ao vê-la. – Ele está lá outra vez, mas desta vez fiz-lhe frente.
-        Ele está possesso, senhora doutora. – Sentenciou o rececionista.
-        Quem está lá? Onde? – A cabeça dela andava às voltas.     - O doutor André! – Ele estendeu as mãos como que a suplicar que entendesse o que lhe dizia. – Está outra vez a estragar-lhe o carro. - Grande filho da p...! – Não conseguiu conter.           - Partiu o vidro da porta e cortou os estofos. Eu tentei impedi-lo, mas…
-        Valha-te Deus, não te disse que te mantivesses longe dele? – Voltando-se para o rececionista – Senhor Aníbal, chame uma ambulância para o Xico e também a Polícia, que eu tenho de participar um ato de vandalismo.
E, dito isto, lançou-se numa corrida, conforme a saia curta e apertada lhe permitia, em direção ao parque seguida de perto por Xico.
Reduziu a velocidade ao entrar na área de estacionamento, ainda meio vazia àquela hora.
Não precisou de procurar muito para ver André, de ar triunfante e sorridente, braços cruzados e o corpanzil encostado ao pequeno “Smart”. Os vidros estavam todos partidos e parecia não ter uma chapa que não estivesse amolgada.
Parou a dois metros dele, olhando-o como se o estivesse a ver pela primeira vez. Ainda usava a mesma roupa do dia anterior com manchas de sangue e tinha o rosto deformado por um inchaço arroxeado na zona do lábio inferior.
-        Gostas do novo visual do teu “chaço”? – As palavras da voz tonitruante eram ditas com dificuldade pela boca magoada, enquanto se afastava para o lado a fim de exibir a sua obra.
-        Tu estás completamente louco! – Sentenciou ela, abrindo os braços para o quadro. – Que fizeste? Que te passou pela cabeça?
-        É a minha prenda por este tempo todo contigo enquanto me enganavas.
-        Quê? – As palavras chegaram-lhe como se tivessem sido ditas numa língua estrangeira. Xico, por trás dela, suportava o peso do corpo, nervosamente, ora num pé ora noutro.
-        Sim, já sei de tudo.
-        Não te estou a entender. Não estás em ti. Daqui a pouco vai chegar a polícia e hás de  entender-te com eles.
-        Não interessa. Polícias como-os ao pequeno almoço. Já tu comes gajos nos intervalos entre nós.
-        Não estou a ouvir bem. – Ela recusava-se a acreditar no que ouvia. – Queres explicar-te de uma vez por todas?
-        Eu vi tudo ontem. Como imbecil que sou, tentei ir falar contigo, perdoar-te…
-        Perdoar-me? Desculpa? Tens alguma coisa a perdoar-me?
-        Entrei no prédio e estive um pedaço sentado na escada a ganhar coragem para falar contigo …quando vi o cabrãozito a entrar.
-        Forçaste a entrada no prédio? Andas a espiar-me? Estás pior do que imaginava, precisas de tratamento. Não te conheço, não sei como fui capaz de pensar sequer em assumir um compromisso contigo.
-        Compromisso? Sua cabra! Para ti, o que houve entre nós sempre foi um passatempo, até ires ter com um paneleirozito qualquer. – Ele agitou-se e pareceu crescer em direção a ela. – Eu passei a noite no carro a ver quando ele saía… e ele não saiu.
-        Não vou sequer continuar esta conversa insana. – Voltou-lhe as costas e começou a puxar Xico pelo braço, de regresso ao edifício do escritório. – Vem, vamos tratar de ti.
-        Até esse filho da p... desse drogado te serve! – A voz dele soou assustadoramente perto dela, antes de sentir uma tenaz ferrar-se sobre o ombro esquerdo.
-        Deixa-a! – O grito de Xico soou em simultâneo com o seu próprio grito de dor.
O toxicodependente tinha os braços em volta do pescoço dele, para lhe dificultar os movimentos, mas de nada adiantou. O metro e setenta de corpo franzino com sessenta e poucos quilos não era obstáculo para um brutamontes com um metro e noventa e quase cem quilos. Dois socos no estômago atiraram-no por terra sem ação. André baixou-se, lentamente e agarrou-o pelos cabelos, decidido a continuar o trabalho. Mais dois violentos socos apanharam o rosto de Xico que estava sem reação.
Mariana não teve sequer tempo para refletir. A ponta aguçada do seu sapato direito entrou profundamente nas costelas do seu amante, num movimento desajeitado que lhe rasgou a saia curta e quase a fez cair.
Ele largou a vítima e enfrentou Mariana, protegendo com a mão as costelas magoadas, rugindo e soltando chispas dos olhos, num ódio cego.
Cedendo a um muito mais antigo impulso que o autodomínio, ela soltou um grito e começou a correr desesperada em direção ao fundo do parque.
Os sapatos de salto alto não ajudavam e, num segundo, estava agarrada fortemente, uma vez mais. Os reflexos, repetidos milhares de vezes, funcionaram sem pensar; um punho fechado com força no baixo-ventre, seguido de uma cotovelada em rotação e estava livre outra vez.
Enfrentou-o, puxou a saia para cima, arqueou as pernas e ergueu o braços preparada para se defender.
-        Ai queres festa? – Ele limpou com as costas da mão o sangue que lhe corria livremente da boca; os pontos do corte de ontem deviam ter rebentado. O seu rosto revelava uma calma perigosamente homicida.
-        É melhor parares e ir embora. Já te disse que mandei chamar a polícia.
-        Quando eles chegarem não há de sobrar muito de ti. – Andava em volta dela, procurando o momento para atacar.
-        Não te atrevas, já sabes que ficas a perder… - Ofegante, rodando sempre de frente para ele, chutou os incómodos sapatos para longe.
Com um grito, André simulou um pontapé, que ela conseguiu evitar com um pequeno pulo. André desferiu ainda um forte soco que a apanhou a meio do rosto.
Foi como se todo o seu cérebro explodisse num mar de cores e estrelas. Rodou desamparada e caiu pesadamente quase sem sentidos.
Os seus ouvidos zumbiam e os olhos pareciam não conseguir focar a imagem demoníaca de André que, curvado, a agarrava dolorosamente pelo cabelo, enquanto gritava algo incompreensível através de uma boca que babava sangue e saliva para cima dela.
Sacudiu os braços de forma descoordenada, tentando afastá-lo num misto de nojo e medo. O zumbido transformou-se, através de uma explosão, numa confusão de ruídos demasiado altos onde a voz dele se sobrepunha gritando:
-        Morres! Percebes, minha p...? Morres antes de ir para outro cabrão que te monte. Dou cabo de ti e dele.
De novo, o instinto de sobrevivência reativou junto com o recuperar dos seus sentidos. Os seus punhos fechados acertaram com toda a força, simultaneamente, em ambos os ouvidos de André, deixando-o atordoado. Enquanto isso , atirava-lhe um pontapé no baixo ventre.
Ele largou-lhe o cabelo, deixando-lhe cair a cabeça com força no asfalto E ajoelhou-se com as mãos entre as pernas, gritando de raiva e dor.
Mariana arrastou-se dolorosamente para longe dele e começou a erguer-se, mas logo caiu pesadamente com um dos pés preso pelo seu perseguidor.
Rolou no chão e acertou-lhe duas vezes com o calcanhar esquerdo na boca, obrigando-o a largá-la uma vez mais.
Rolou mais duas vezes e ergueu-se cambaleante. A cabeça doía e latejava horrivelmente; os dentes abanavam e doíam igualmente. Teve de fazer um esforço sobre-humano para não cair. Ela sabia que aquela luta estava transformada num combate que só acabaria com a sua morte . Obrigou-se a pensar, lágrimas nos olhos, o medo a dominá-la:
-        “Acalma-te, pensa e enche o peito de ar, pois tens de  lhe acertar para o imobilizar, pensa Mariana” – Ele, de joelhos, erguia o rosto transformado numa máscara monstruosa de animal selvagem coberta de sangue que pingava copiosamente. Conseguiu um esgar homicida que parecia um sorriso.
Insegura, pontapeou-o nas costelas sem grande efeito que não fosse uma dor imensa no seu pé descalço. Ele rosnou e esboçou o gesto de lhe agarrar a perna, mas  o instinto dela falou mais alto fazendo-a correr para longe, apavorada.
Os pés descalços batiam, dolorosamente, no asfalto estimulados pelos urros de raiva que a seguiam de perto. Estava junto do separador da via rápida.
Do outro lado, os automóveis circulavam a grande velocidade nos dois sentidos. Saltou o separador e olhou para trás; ele estava quase a apanhá-la, de braços esticados, meio curvado pelas dores, mas, ainda assim, fatalmente perigoso.
Com as lágrimas a correr pelo rosto, deixou que o pânico a dominasse, fechou os olhos e, gritando, correu para o separador central.
Um coro de buzinas a protestar junto com o chiar desesperado de pneus e o estrondo de choques, acompanharam-na até à proteção central da via rápida.
Parou e olhou para vários veículos acidentados fumegando na faixa de rodagem que acabara de atravessar, antes de se fixar novamente no outro lado. Estava com uma sensação de que aquilo não era real. O seu perseguidor, após uns segundos de incredulidade, aproveitou a faixa parada pelo acidente para reatar a caçada.
Repetindo a proeza, com o som de gritos de socorro e de novos choques como fundo, Mariana saltou para a outra faixa e correu.
Perigosamente perto, novas travagens, buzinas, o estrondo das batidas o gemer dos metais… estava tão cansada… quase a chegar ao outro separador, quase mesmo a chegar, quase…
A pancada atingiu-a na cabeça com toda a força. A perseguição acabava-se numa queda desamparada, seguida de um peso imenso sobre o tronco que a esmagava brutalmente.
O mundo apagou-se numa onda negra de vermelho rodopiante.
                                              
Sentiu dor; foi a primeira coisa que lhe disse que ainda estava viva. Havia um silêncio sepulcral e ela não se atrevia a abrir os olhos.
Doíam-lhe os braços, as pernas, a cabeça e também as costelas. Tinha dificuldade a respirar e tentou inspirar profundamente resultando num gemido.
Estava deitada numa cama e abriu os olhos, a medo, para um teto imaculadamente branco. Olhou para a esquerda onde um frasco de soro, suspenso, velava. Na direita, um sorridente Miguel atirou-se de joelhos ao lado da cama, pegando-lhe na mão:
-        Despertaste finalmente, meu amor! – Beijou-lhe profusamente a mão.
Ainda incrédula, olhou em volta para o quarto do hospital:
-        Que se passou?
-        Não te lembras?
-        Sim, tudo muito confuso, mas recordo-me de fugir dele… dos carros... dos acidentes…
-        Pois, isso foi obra. – Reconheceu ele. – Temos aí um bom sarilho para as companhias de seguros… Vinte e três carros, além dos feridos. Felizmente não houve mortos.
-        Valha-me Deus! – Lamentou-se ela,  levando a mão esquerda à cabeça com um gemido de dor.
-        Espera, tem calma! Estavas a ser perseguida com risco de vida e os seguros terão de  deslindar isto. Não há de ser nada, além de duas costelas partidas e alguns hematomas.
-        E o Xico? E… o André? – Falou a medo.
-        O Xico está bem. Uns pontos a mais, uns dentes a menos. Uns analgésicos darão conta do recado. Agora o André…
-        Foi preso?
-        Não, não o prenderam…
-        Não sei como não me matou quando me agarrou a última vez.
-        Quando te agarrou?
-        Sim. Quando se atirou para cima de mim, acho que desmaiei mais de medo do que de dor. Achei que já estava morta.
-        Ele não te agarrou, querida.
-        Agarrou! E atirou-se para cima de mim.
-        Não, amor, não foi assim.
-        Como não foi?
-        Ele caiu em cima de ti, depois de ser atropelado por uma moto.
Mariana quedou-se, sem fala, de olhar perdido no vazio:
-        Está muito ferido?
-        Nunca mais te fará mal.
-        Ferido ou…
-        Morreu há poucas horas.
Ela apertou a mão dele com força  não conseguindo reprimir um soluço e uma lágrima:
-        Apesar de tudo não lhe desejava a morte.
-        Eu sei, minha querida, mas ao mesmo tempo foi melhor assim.
-        Foi? Melhor seria que ele não reagisse daquela maneira e que eu nunca me envolvesse com ele… melhor… - Fechou os olhos e deixou que as lágrimas corressem livremente pela cara; os soluços torturavam-lhe as costelas.
-        Foi melhor, querida, agora estás livre.
Ela abriu os olhos marejados de lágrimas, olhou-o docemente e, com um carinho que há muito não aquecia o seu coração, corrigiu:
-        Não, meu amor, não é agora que eu sou livre. Quando conheci aquele homem e estava casada contigo, achava que estava presa a ti, mas estava enganada. O nosso casamento não era uma prisão. Sei agora que sempre fui livre, só que nunca me tinha apercebido.


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