No passado mês de março deste ano, emiti um apelo para dar vida à antologia “Filhos de Um Deus Menor”, um dos trabalhos inacabados do meu saudoso amigo e editor Isidro Sousa. Acudiram quinze autores.
Não posso dizer que não tenha ficado um pouco surpreendido com tão pequena adesão ao projeto. O Isidro tinha tantos autores que o acompanhavam e, pelo menos nesta antologia, estavam registados mais de vinte. Contactei os nomeados um a um através do Facebook, (como não tenho acesso aos documentos da Sui Generis não possuo os e-mail) e a grande maioria nem respondeu. É possível que não saibam usar a ferramenta nas devidas condições, ou que tenham perdido o acesso, ou mesmo a vontade de usar a mesma, mas o certo é que, dos quinze autores aqui reunidos, nem todos faziam parte da listagem original.
Como alguém disse um dia, “poucos, mas bons” e aqui estão reunidos trabalhos de quinze autores que quiseram contar histórias de filhos de deuses menores. Ao longo de mais de duzentas páginas, vamos conhecer vários tipos de discriminação, algumas baseada em factos reais.
Porque a sociedade é cruel para os que são diferentes, ou para aqueles em quem não vê utilidade, este é um livro sobre as diversas formas de discriminação. Histórias com ciganos, africanos, refugiados do médio oriente ou simples despojados da sorte, estão presentes nesta antologia de contos, que pretende homenagear o Isidro Sousa, também ele com uma vida difícil e que batalhou até as forças se acabarem.
Venha ouvir as palavras dos nossos escritores.
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Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Água e sangue, era o que Estevão tinha na mão naquele momento.
Limpou com um lenço de papel, apressadamente. Sentia-se gelado, com gotas de transpiração fria a perlar-lhe a fronte.
Olhou em volta para os restantes passageiros do avião que o transportava para Nova Iorque, completamente alheios ao seu drama pessoal. Até mesmo o homem gordo sentado na outra fila, para além do lugar vazio a seu lado, dormitava, a cabeça caída sobre o jornal.
Tornou a tossir, mas desta vez para um lenço de papel, que também se manchou de carmim. Engoliu em seco, olhos esbugalhados, fitando incrédulo o conteúdo do papel, que rapidamente amarrotou, enojado e colocou no saco de vómito. Encostou a cabeça para trás tentando controlar a respiração acelerada, enquanto tinha a sensação de que o estômago iria rebentar a qualquer momento.
Que estava a acontecer? — Perguntava-se, prestes a entrar em pânico. — Nunca antes se sentira mal durante uma viagem de avião… o pequeno-almoço no hotel foi normalíssimo. Claro que a tensão em que vivera nos últimos dias… particularmente no último, pode explicar a dor de estômago, a azia e o enfartamento, mas não o sangue na expetoração. Ele sempre fora saudável.
Gradualmente, a respiração voltava ao ritmo normal, enquanto relembrava o objetivo da sua viagem. Finalmente as coisas iam correr bem para ele. Tinha pena de não ter Irene consigo, mas ela estava a tornar-se um peso e os súbitos acessos de consciência estavam a preocupá-lo. Manteve os olhos fechados enquanto lembrava a discussão da noite anterior no quarto do hotel:
***
— É que nem te importaste com o Bernardo, que conheces há tantos anos! — Irene, o longo e fino roupão mal tapando o corpo bem torneado, de que disfrutara pouco tempo antes, apontava-lhe um dedo acusador. — Deixaste-o ficar com as culpas, não eram amigos?
— Amigos, é uma força de expressão, que queres? — Replicou Estevão, voltando-lhe as costas e atirando para o ar um gesto contrariado. — Ele era o segurança, via-o todos os dias e cumprimentava-o… daí a sermos amigos… não lhe fiz mal, nem nada.
— Ele tem mulher e filhos. De certeza perdeu o emprego e pode até ser preso. — Insistiu ela. — Enganaste-o!
— Não sei porque é que estás com esses pruridos todos. — O homem enervou-se e quase lhe gritou aos ouvidos. — Ele também estava disposto a fugir com o dinheiro. Queria lá saber da mulher e dos filhos!
— E por isso, não tiveste problema nenhum em enganá-lo e deixá-lo fechado naquele armário até que chegasse a polícia. — Irene empurrou-o. — Também não tiveste nenhuns escrúpulos em deixar a tua própria mulher e o teu filho "que amavas tanto".
Estevão virou-lhe as costas novamente e dirigiu-se para a janela.
— E o Ferreira que tanto confiava em ti? — Ela não desistia. — Esse sim era teu amigo, por isso deixava-te fazer a contagem do dinheiro sozinho e assinava como se contasse. — Irene pousou os olhos no chão. — Como se sentirá ele agora, sabendo-se enganado, sabendo a forma como te apropriaste do dinheiro e sabendo que vai ter de explicar aos patrões onde estava ele, enquanto tu fugias com o resultado das apostas. Não precisavas de ter escondido aquele dinheiro no carro dele, estava "entalado" que chegasse.
— Nós fugíamos! Nós! — Ele pôs-se ao pé dela de um salto e agarrou-a pelo braço com violência. — Nós, roubamos aquele dinheiro! O Ferreira, o Bernardo, a mulher dele e a minha, foram todos baixas necessárias para atingir o NOSSO objetivo.
— Ainda bem que referes que somos NÓS! — Ela sacudiu-o com violência e tirou um saco de viagem do armário, que atirou para cima da cama. — Vamos pegar nessa mala que levas avidamente para todo o lado e dividir o NOSSO dinheiro! Não vá acontecer alguma coisa…
Estevão abriu a boca para expressar o seu desacordo, mas ela nem olhou para ele, apenas despejou para cima da cama os molhos de notas cuidadosamente cintados.
Dividiram aquela pequena fortuna em silêncio e Irene começou a arrumar a sua parte no compartimento falso da mala de viagem.
— É assim que queres estar comigo? — Rouquejou ele. — Com esta desconfiança?
— E eu posso confiar em ti? — Perguntou Irene. — Traíste tudo e todos… eu serei a próxima, quando te der jeito. Não querias dividir o dinheiro e dormias praticamente com a mala debaixo de ti… queres falar de confiança? — Ela cravou os olhos verdes nos castanhos dele. — Eu não fiz isto por dinheiro, fi-lo por ti, para estar contigo! Estava cega! Estava preparada para passar a vida a fugir, sempre a olhar por cima do ombro, mas de mão dada contigo. Tenho estado a aperceber-me nestes dias que o teu único amor é o que tens aí nesse saco, eu sou apenas a gaja que te ajudou e com quem dás umas quecas.
— Hipocritazinha de m** — Enfureceu-se Estevão. — Tens muita pena dos tansos, mas queres a tua parte! Leva-a e depois desaparece-me da vista. Amanhã de manhã no aeroporto vou trocar o meu bilhete, segue para a Venezuela, eu vou para onde me levar o vento. Espero que sejas feliz. — Torceu a boca com desprezo nestas últimas palavras.
— Por mim, podes ir para o inferno! — Atirou ela, raivosa.
— Irei, descansa. — Confirmou Estevão, a voz quase sumida. — Esperarei lá por ti, se chegar primeiro.
***
Agora, ali sozinho, naquele imenso avião cheio de passageiros, sentia falta dela. A dor lancinante que lhe mordeu o estômago, justificou as lágrimas que verteu. Deixou-se cair de cabeça no assento vazio enquanto relembrava as últimas horas no aeroporto… não precisava ter feito aquilo…
Naquela manhã, assim que chegaram ao terminal, foram tomar café, como dois bons amigos. Sentados na sala de espera, Irene comportava-se como se aguardasse que ele dissesse algo, mas ele estava furioso, não lhe perdoava a desconfiança e… a obrigação de lhe entregar a parte dela. Irene tirou da mala duas pequenas garrafas de água e deu-lhe uma delas com um sorriso triste. "Ficamos assim?" Interrogou. Ele bebeu dois longos golos e atirou a garrafa para o recipiente de reciclagem, ao mesmo tempo que se erguia. "Não tens o que querias?" Acusou, antes de se despedir com um "Fica bem!".
Todo interior do avião parecia estar com as cores alteradas, ardia-lhe a boca e a garganta e sofreu novo ataque violento de tosse.
A última coisa que fizera no aeroporto, após trocar o seu bilhete, foi um telefonema duma cabine. De longe, ficou a apreciar o espetáculo, quando as autoridades rodearam Irene e a manietaram. Não estava perto o suficiente para poder disfrutar do rosto dela quando os agentes abriram a mala e encontraram, não a quantia que ela tinha posto lá, mas apenas a parte que ele deixara; o suficiente para a incriminar.
"Livrara-se dela e dera-lhe uma lição!" Ele sorriu, mas foi incapaz de conter um vômito sanguinolento sobre o tecido da cadeira onde pousava a cabeça.
Tentou erguer-se, mas tudo parecia andar à volta. A hospedeira aproximou-se e olhou-o horrorizada, com a quantidade de sangue ele tinha na camisa e nas mãos. Gotas copiosas, vermelhas, corriam do nariz e dos olhos. Confuso, meteu a mão ao bolso à procura de um lenço e encontrou um envelope. Sem saber como lidar com a sua situação, dedicou a atenção ao achado e viu que tinha o nome dele, com a letra de Irene. Deixando dedadas rubras, abriu-o.
Lá dentro, havia um rótulo de raticida e um post-it onde ela escrevera:
"Só para saberes o que tinha a água que te dei. Sempre vais chegar primeiro ao inferno."
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Exausto, foi com grande alívio, que o octogenário se deixou cair no banco de jardim, na entrada do parque. Aquelas caminhadas custavam-lhe cada vez mais e, pelos vistos, demoravam cada vez mais. Estava a começar a anoitecer. Fez um esforço para recordar a que horas saíra de casa, mas não conseguia.
Deixou-se ficar um pouco a restaurar as energias… noutros tempos, achava ele que não há muito, faria todo aquele percurso a correr e quase sem transpirar, mas agora… como se pusera naquele estado?
Olhou com curiosidade os sapatos de quarto, empoeirados, como se os visse pela primeira vez; os seus pés estavam “gordos” e o calçado parecia querer rebentar. "Não admira que me sinta cansado! Tenho de fazer uma dieta!" Pensou de si para si. "Recuperar a forma, esta fadiga só pode ser banhas, olha-me que patas”.
Recostou-se e esticou preguiçosamente os braços pelas costas do banco, enquanto apreciava o trânsito barulhento e apressado.
O seu olhar fixou-se no enorme edifício na esquina: "Que esquisito, não me recordo de ter sido derrubada a padaria e já ali está um prédio de uns sete andares, pronto e habitado! Não há dúvida que tudo agora é construído a uma velocidade estonteante!"
Uma carrinha branca imobilizou-se ao pé do edifício e descarregou dois fardos de jornais, antes de arrancar em grande velocidade. Estranhou a distribuição do jornal tão tardia, normalmente acontecia de madrugada. "Está tudo tão diferente…" Ainda se recordava do sinaleiro, luvas e capacete brancos a gerir o transito naquela esquina, antes da sua substituição pelo semáforo, que empoleiraram muito alto, mesmo no meio do cruzamento. Não foi assim há muito tempo… mas também o semáforo lá não está, foi substituído por um conjunto de colunas, cada esquina sua, com o seu próprio conjunto de luzes… de certeza que fora feito para a autarquia ajudar a enriquecer um qualquer fabricante amigo. Sorriu com a sua própria maledicência.
— Bom dia! — A voz masculina sobressaltou-o, fazendo-o descobrir a seu lado o jovem polícia que o mirava com curiosidade.
— Boa tarde! — Corrigiu-o.
— O senhor está bem? — Perguntou o agente.
— Eu? Sim, estou! E você? — Ele não estava a perceber a razão da abordagem.
— Eu também estou, obrigado! — O polícia endireitou-se com um sorriso e afastou-se num passo curto para a berma da rua, sem o perder de vista. Pegou no telemóvel e fez uma chamada.
Ao fim de um minuto ou dois, fitou com suspeição o agente que regressava, sempre com um sorriso nos lábios.
— Posso perguntar-lhe o seu nome? — O jovem voltava à carga.
— Posso saber porquê? — Respondeu na defensiva. — E o seu, qual é?
— Peço desculpa pela minha falta de maneiras. — A boa educação do polícia começava a ser irritante. — Meu nome é Meireles!
— E eu sou obrigado a dizer-lhe o meu? — Agora estava a ser deliberadamente insolente.
— Não, claro que não. Não está a fazer nada de mal. — O jovem exibiu um rosto triste. — Era simples curiosidade.
— A minha mãe dizia que a curiosidade matou o gato! — Atirou com um ar de triunfo, voltando o rosto para o lado, como que indicando que acabara ali a conversa. — Tenha uma boa tarde! — Rematou.
— Um bom dia, quer o senhor dizer! — O rapaz era insistente. — Ainda é de madrugada, o sol está a nascer agora. — Apontou para as silhuetas dos prédios onde um clarão avermelhado parecia querer sobrepor-se às trevas.
— Madrugada? — O rosto dele tornou-se uma máscara de espanto, enquanto a sua mente trabalhava em alta velocidade: "A que horas saíra de casa? Quanto tempo caminhara?... De onde viera?"
Um pequeno Opel Corsa parou bruscamente ao lado do passeio onde os dois se encontravam. Outro jovem, este à civil, correu para eles e olhou-o nos olhos, preocupado.
Já eram dois de volta dele, que estava naquele estado de confusão… começava a ficar assustado, quando o recém-chegado disse finalmente, numa voz estrangulada:
— Pai! Graças a Deus! Andamos a noite inteira à tua procura!
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Photo by Tembela Bohle from Pexels
Naquela tarde de agosto, André caminhava apressadamente pelo passeio largo, ao lado da rua movimentada. Já há muito não passava por ali, mas só arranjara estacionamento longe do local onde se dirigia e estava a cortar caminho.
Junto das mesas da esplanada de uma confeitaria, um dos clientes agarrou-lhe o braço. Olhou-o com surpresa e irritação, mas logo o seu rosto se transformou:
— Filipe?!? — Exibiu um sorriso rasgado e abraçou o outro assim que ele se ergueu. —Que andas a fazer por aqui?
— Tive de voltar para tratar da venda da casa. — Fez-lhe um gesto de convite e ambos se sentaram. — Há quase um ano que estava fechada e como não faço tenções de voltar a viver lá… melhor vender do que deixá-la estragar-se.
— De certa forma tens razão. — Concordou André. — Mas não esperava nada ver-te e confesso, já tinha saudades tuas.
— Eu também. Temos de nos encontrar mais vezes, marcar uma data no mês, sei lá. — Ele fez aquele ar de comprometido de quem faz uma promessa que não pensa cumprir. — Afinal, estou a menos de trinta quilómetros daqui, é um instante.
— E escolheste logo esta confeitaria… — André fez um gesto a abarcar o conjunto das mesas e cadeiras.
— Foi de propósito. — Confessou Filipe. — Fez parte da melancolia que me atingiu assim que cheguei.
— Eu nunca mais voltei cá… desde que aquilo aconteceu. Mas fizemos bem em nos mantermo-nos separados. — André baixou os olhos, enquanto o empregado do estabelecimento trazia as bebidas que pediram.
— Não sei porquê. — Cortou Filipe, assim que o empregado se afastou. — Somos irmãos, qual é o problema de sermos vistos juntos? Não é natural? — O outro manteve o olhar no chão, enquanto ele se inclinava para mais proximidade. — Não íamos sempre de férias juntos? Mesmo antes dela?
André brincou com as mãos sobre o tampo da mesa, antes de pegar na caneca de cerveja e beber dois ruidosos tragos. Como que para engolir algo que se lhe prendera na garganta.
— Ela era maravilhosa… — Elogiou ao pousar a caneca, com os olhos perdidos nas marcas da mesa metálica. — Tão linda e meiga, sempre pronta a satisfazer as mais loucas fantasias.
— Sim e manipuladora e intriguista. Que reagia mal, quando não conseguia o que queria. — Cortou Filipe rudemente, antes de dulcificar também o seu tom. — Mas quem conseguia recusar-lhe fosse o que fosse quando ela fazia aquele beicinho e os olhinhos tristes.
— Foste um bocado canalha, ao envolver-te com ela! — Censurou André com secura, antes de meter os lábios de novo à caneca. — A mulher do teu próprio irmão…
— Mas que queres? Tão bonita, tão querida, tão… disponível.
— Porque é que havíamos de ter ido para o Gerês. — Como que se autocensurou André. — Para aquele bangalô no meio de nenhures.
— Exatamente para aquilo que fomos! — Esclareceu Filipe! — Para bebermos, para nos rirmos, divertirmo-nos, em suma! E nós fizemo-lo!
— Meus Deus! — Reconheceu André. — Bebedeiras de caixão à cova até de madrugada, depois dormir e acordar já de tarde para beber mais… bolas, que parvalheira… depois, tu e ela…
— Quando me apercebi, ela já estava agarrada a mim aos beijos e a abrir-me a breguilha. — Confessou Filipe. — Mas tu até te rias, não parecias importar-te e acabamos por fazê-lo ali mesmo no sofá. À tua frente. — Agora era ele quem firmava os olhos no tampo da mesa a recordar toda a história. — Quando acabamos, ela foi para o pé de ti, decidida a continuar contigo o que começara. Eu levantei-me para ir à casa de banho e ouvi-vos discutir…
— … eu estava tão bêbado… — Reconheceu André. — …não me estava a incomodar nada que ela tivesse feito amor contigo. Mas, quando veio para junto de mim, o cheiro de sexo recente, sabê-la suja por alguém que não eu…
— Adormeci no meu quarto, quando tudo ficou em silêncio. — Continuou Filipe. — Quando me levantei de manhã, tu ressonavas no sofá e ela estava no chão, nua, enrolada sobre ela própria.
— Discutimos muito… — Esclareceu André. — Estávamos abraçados, mesmo assim, mas ela tentou soltar-se e eu apertei-a, ela deu-me uma cabeçada e eu esbofeteei-a e empurrei-a… era geniosa, mas pouco musculada, apesar das corridas que fazia.
— És um bruto! — Censurou o outro, com um gesto de desagrado. — Cala-te não fales mais nada.
— A culpa foi dela! Atirou-me com o cinzeiro e eu apanhei-o e atirei-lho de volta. Acertou-lhe na cabeça, ela gritou, insultou-me e depois deitou-se ali a chorar… não achei que fosse muito grave…
— Agora cala-te! — Insistiu Filipe em voz baixa e olhando em volta, preocupado.
— Se não fosses tu… — Continuou o assassino. — … a ideia de lhe vestir o equipamento de corrida, atirá-la da ravina e chamar socorro porque ela saíra para correr e não regressara… o pior foi a polícia a investigar e as custas da recuperação do corpo.
— Que até ficou barato, comparado com a perspetiva de uma boa temporada na cadeia, não achas? — Comparou o irmão, num sussurro.
— Sim, claro, mas ainda penso muito nela… — Duas grossas lágrimas soltaram-se dos olhos de André. — … eu amava-a muito, sabes?
— Agora esquece! — Ordenou Filipe, enquanto erguia a caneca e elevava os olhos ao céu. — Brindemos a Laurinda, um sonho de mulher bela e maravilhosa! — Depois de tilintar a vasilha com a do irmão, bebeu dois largos tragos e concluiu: — Agora, temos de arranjar outra!
Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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Image by Gerd Altmann from Pixabay |
— Sim, ouviu bem. Peço desculpa! — Humberto mostrava-se verdadeiramente contristado a falar com o Inácio, quando se encontraram casualmente ao sair do bloco de apartamentos onde ambos residiam. — Por toda a razão do mundo que
eu pudesse ter, nada me dava o direito de falar consigo da forma como falei.
Ele estava consciente da expressão apatetada de Inácio, de quem
era vizinho vai para dez anos, que não sabia como reagir a esta sua nova atitude
completamente discordante da que sempre lhe conhecera.
Como a maior parte
dos habitantes de prédios, conheciam-se mais ou menos superficialmente, fruto de
contactos esporádicos em reuniões de condomínio, ou na frequência das áreas
comuns do edifício, como as garagens, átrios, escadas ou elevadores. A relação entre
ambos, porém, sempre fora tensa e desagradável, devido ao péssimo feitio de
Humberto, que explodia ao mínimo contratempo e partia para o insulto pessoal e
a ameaça física. Não era, de resto, apenas com Inácio esta atitude, a fama dele
alargava-se a todo o bloco… e à maior parte dos locais frequentados por ele.
— Mas que se passa consigo? — Interrogou o baixo e anafado
vizinho, entre o receoso e o divertido. — Está doente? Alguma doença em fase
terminal?
— Não, Graças a Deus que não… penso eu. — Humberto sorriu,
para maior espanto do interlocutor. — Apenas estou a pôr a mão na consciência e
a perceber que não tenho agido bem consigo estes anos todos e, principalmente ontem,
quando discutimos por causa do seu cão a ladrar no corredor quando você entrava
em casa. O barulho incomoda-me e peço-lhe por favor que evite que o animal o faça
naquele local onde ecoa imenso. Tenha um bom dia.
Com estas palavras, voltou-lhe as costas e caminhou pelo
passeio, deixando o vizinho olhando-o assombrado, segurando a porta da entrada
com uma mão e o saco de papel da padaria na outra.
Humberto tinha consciência do seu péssimo feitio e muitas
das vezes arrependia-se, algumas horas depois, das coisas que dizia ou fazia. Mas
o simples relembrar da situação, trazia de volta o azedume e acabava por rematar
com um sentenciador “Foi-lhe bem feita!”
Não era nenhum “hércules”. Nos seus quarenta e muitos anos,
sempre fora magro, alto e seco de carnes; era a violência latente nas suas
palavras e gestos, aliada à transfiguração instantânea de uma pessoa educada
noutra sem qualquer filtro, que surpreendia e deixava sem reação as “suas
vítimas”. Não poucas vezes, se vira envolvido em trocas de socos com alguns
objetos da sua raiva, menos preparados ou educados, ou que simplesmente não
aceitaram ser desaforados de ânimo leve. A coisa resolvia-se em poucos segundos;
ou ficava-se, ou os presentes envolviam-se e separavam os contendores,
permitindo-lhe manter a face (intacta).
A sua existência decorria num mundo onde as pessoas pareciam
fazer fila para o desfeitear, desprezar, ou simplesmente aborrecer e ele fazia
questão de se manifestar ruidosa e odiosamente, sempre que tal acontecia. Mesmo
no emprego, a maior parte dos colegas de trabalho, temiam-no ou evitavam-no, apesar
de lhe reconhecerem a diligência e eficiência profissionais. A grande exceção
era Lucília, sua mulher, que conhecera nesse mesmo emprego e com quem
casara, rendido aos seus encantos e à surpreendente capacidade de dulcificar o
seu comportamento. Apenas a ela aquiescia quando censurado e só a ela
reconhecia o seu problema. Após a violenta discussão com Inácio na noite
anterior, Lucília, cansada e envergonhada dos problemas com os vizinhos, repreendeu-o
asperamente e apresentou-lhe um ultimato: Ou ele mudava de atitude, ou ela mudava
de casa… sozinha.
Humberto não conseguia conceber a sua existência de regresso
à solidão dos tempos antes dela. Quando discutia no emprego, bastava um
vislumbre da sua presença, para que o possante dragão que cuspia fogo pelas
ventas, se transformasse num dócil cordeiro, ou no mais cordial dos colegas de
trabalho. Quando regressava a casa, era como se saísse de um túnel quente, escuro
e sujo e entrasse num imenso vale ensolarado, fresco e florido. A sua “fada do
lar” recebia-o com o “solvente de mau-humor” que só ela possuía. Por isso, decidiu
que aquele dia seria o primeiro do resto da sua vida mais tolerante e afável.
Envolvido nessas doces vibrações, sonhava acordado com a
admiração e alegria que esperava ver mais logo nos belos olhos da sua doce
Lucília. Ignorou de forma estoica o buzinar insolente do camionista quando se
demorou a atravessar a passadeira, não resmungou, como sempre fazia, pelo ruído
das motos e deu os bons dias a muitos dos conhecidos, alguns dos quais se
imobilizaram no passeio, para confirmar se tinham ouvido bem.
No Pão Quente, não se incomodou pelo facto do funcionário ter
atendido primeiro os que estavam sentados, nem por ter três outros clientes à
sua frente. Quando chegou à sua vez, sorriu e saudou o empregado, deixando-o
ainda mais nervoso e confundido. Quando este pousou o saco de papel com o seu
pedido em cima do balcão, um dos pães rodou para o tampo de granito e ele colocou-o
rapidamente de volta à embalagem. Humberto estremeceu e arregalou os olhos,
corou, mas controlou-se e expeliu ruidosamente o ar do peito.
— Meu caro. — Avisou apaziguadoramente para o jovem
funcionário que parara de respirar, pois percebia ter cometido uma falta, embora
não soubesse ainda qual. — Esse pãozinho, rolou num balcão duvidosamente limpo
e você apanhou-o com a sua mãozinha descuidada, pois a luva ficou ali em cima
da prateleira. Importa-se de o substituir?
Como um foguete e
quase em pânico, o rapaz calçou a luva de plástico, pegou novo pão da caixa e
trocou-o pelo “conspurcado”. O sorriso condescendente de Humberto estremeceu e
desmoronou-se quando, o solícito funcionário, arremessou a unidade recusada para
a caixa onde se encontravam os restantes pães para venda.
“Lembra-te, este é o primeiro dia de uma nova vida!”
Humberto recomendou para si próprio, quando virou as costas ao balcão onde
deixara as moedas para pagamento, sem agradecer nem se despedir. “Pelo menos aquele
pão já não será para mim.”
Regressou a casa, satisfeito consigo mesmo, enquanto
contornava alguns dejetos canídeos abandonados no passeio. Evitou os seus comentários
a meia voz contra os amantes de animais, porcos, ignorantes e menos
inteligentes que o seu animal de estimação. Não insultou a criança que quase o
atropelou com a bicicleta nem se sentiu incomodado com o cão que o veio farejar,
no limite da trela do dono.
Estava realmente um belo dia de primavera, com sol e uma
temperatura amena, os pássaros chilreavam nos fios elétricos e nos beirais dos
telhados. Tudo para ser feliz, não percebia como podia estar sempre zangado.
Em frente à porta de entrada, com o saco do pão debaixo do
braço enquanto procurava a chave no bolso, recebeu sobre o ombro os generosos
dejetos de uma das pombas, “que a estúpida da velha do quinto esquerdo insistia
em alimentar”. Algumas pingas, perante o olhar escandalizado dele, caíram sobre
os alimentos.
Simultaneamente, a porta do prédio abriu-se e de forma
intempestiva, Inácio saiu, arrastado pelo enorme e trapalhão Retriever que
possuía, quase derrubando Humberto. O saco de papel estatelou-se no chão; pães
rolaram pelo passeio em todas as direções.
— Grandessíssima besta! — Explodiu Humberto, descontrolado,
apontando o indicador espetado diretamente aos olhos do outro. — Que tens nessa
cabeça de balofo gorduroso? Não sabes controlar o “cavalo”? Em qual das pontas
da trela está o animal inteligente? Devia de te rebentar essas fuças!