segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O Enterro

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 1

É incerto o lugar onde a morte te espera;

espera-a, pois, em todos os lugares.

Séneca

(Filósofo romano do século I)

Ouvia-se o choro soluçante fora da casa redonda erguida com pedras e lama, coberta por um telhado de colmo e com a entrada tapada por uma cortina de cor incerta. Lá dentro, uma mulher de cabelo desgrenhado e rosto sujo, vestindo uma túnica grosseira e comprida de pano cru, pranteava desconsoladamente. Estava sentada no chão de terra e com os pés descalços na cova recentemente escavada no centro da única divisão, mesmo ao lado dos restos queimados e apagados da madeira com que diariamente se aqueciam. Os lamentos dela produziam pequenas nuvens de vapor no ar gelado da tarde de inverno.

Do exterior ouviam-se mais gemidos de mulheres misturados com as vozes iradas de homens e essa algazarra irritava-a e fazia-a querer chorar ainda mais alto.

Dois homens vestidos de enormes cabeleiras e barbas hirsutas, envergando túnicas de pele curtida, afastaram a cortina e entraram, algo a medo e depositaram braçados de três ou quatro seixos do rio, cada um maior que o tamanho de dois punhos, ao lado da fogueira apagada. Assim que saíram, outros dois se lhe seguiram e assim continuou até se formar uma pilha que dava pela altura dos joelhos.

Fez-se um silêncio repentino do lado de fora e só o choro da mulher, agora murmurando uma ladainha incompreensível se fazia ouvir.

Um coro de uma cantilena chorosa começou no exterior, destacando-se as vozes agudas femininas e sons guturais masculinos.

Outros dois homens entraram, os seus cerdosos cabelos e barbas estavam cobertos de cinzas e transportavam, pendurado pelos braços e pernas, o corpo franzino e inanimado de um jovem onde ainda mal despontara a barba. O corpo pálido, magro e ossudo, envergava apenas uns pequenos trapos de pano cru por bragas.

— Cala-te mulher! — Censurou asperamente o recém-chegado mais velho. — Já chega!

— Eu é que sei se chega! — Ripostou de imediato a mulher, o rosto sujo de cinza borratado pelas lágrimas era uma máscara de terror. — Era o meu filho e choro-o como e quanto quiser! — Tirou os pés da cova e sem se levantar, virou as costas aos dois homens.

O corpo foi depositado cuidadosamente em posição fetal no buraco, sem esquecer o cuidado de lhe colocar uma das mãos sob a cabeça, como se estivesse adormecido. Tinha sido cuidadosamente lavado e várias nódoas negras destacavam-se na pele quase transparente. A seu lado, ao alcance da mão, colocaram-se respeitosamente uma lança de madeira e um machado cuja lâmina era composta de uma pedra chata cuidadosamente afiada. Próximo da cabeça, depositaram uma lebre morta, um recipiente de barro com azeitonas e outro com nozes. Junto da cinta pousaram uma cabaça com água.

O homem mais velho empurrou a mulher para o lado com um safanão e um empurrão para se poderem chegar ao monte de godos brancos. Os seixos foram usados primeiro para preencher todos os espaços livres à volta do corpo e depois para o cobrir e, assim que já nada era visível, começaram a cobrir a sepultura deitando a terra com os pés e as mãos.

Lá fora a cantoria transformara-se numa algazarra de machos que gritavam e se instigavam como se numa luta estivessem, enquanto corriam e cabriolavam em volta do casebre enquanto em fundo as fêmeas carpiam alto.

Assim que os dois homens terminaram a cobertura, quase em simultâneo, a cantoria terminou repentinamente. O mais novo saiu da casa passando exatamente por cima da sepultura acabada de tapar e logo um outro entrou e passou pelo mesmo sítio, tornando a sair e assim sucessivamente até todos os elementos masculinos passarem, pelo local e só o homem mais velho e a mulher ali restarem em pé junto da campa.

Agarraram os restos apagados da fogueira e colocaram-nos sobre a sepultura recente, para que mais logo se acendesse o fogo que aqueceria a todos, agora aconchegado pelo elemento da família que partira.

O homem gritou com a mulher que continuava a chorar e deu-lhe uma lambada que a atirou ao chão. Ela ergueu-se de um salto e gritou com ele batendo-lhe por sua vez. Trocaram uma sequência de socos e tabefes entre eles, sendo evidente que que a força masculina iria prevalecer.

A cortina da entrada abriu-se bruscamente e entraram dois homens armados com lanças.

— Que estás a fazer pai? — Perguntou o mais alto deles. — Vais ficar aí a gritar e a carpir como as mulheres?

— Se não vieres, não és mais filho do meu irmão! — Vociferou o outro.

Foi a vez da fêmea empurrar o macho, agarrar com força uma lança que estava encostada à parede e colocar-se sobre as cinzas e lenhos acabados de colocar.

— Se ele não tem coragem de ir vingar o filho, tenho eu! — Exclamou a mulher altivamente. — Tanto posso empunhar a lança para matar um porco bravo, como para matar o assassino do meu filho!

Do lado de fora, obviamente escutaram-se as palavras de desafio e um coro de gritos guerreiros responderam ao apelo.

— Temos de ir atrás daqueles homens-macaco, invadir as grutas e acabar com todos! — Sentenciou o outro homem. — Como são mais fortes que nós, não conseguimos disputar-lhes a caça e roubam-nos aquilo que caçamos. Mas chega! Verão que não temos medo deles e não tornarão a fazer mal a um dos nossos!

 

 
Na Madrugada dos Tempos

Na Madrugada dos Tempos – Introdução

Clã do Leão da Montanha

Parte 2 – O Clã do Leão da Montanha

   
Share:

4 comments:

Delta Ebro disse...

Interessante, a forma pormenorizada como descreveu este enterro. Remetendo-nos a épocas remotas, a outras gentes, mas que afinal são nossos antepassados. A vida humana é tão curta que por vezes esquecemos, que nem sempre fomos o somos hoje, e sim uma espécie em evolução. Gostei bastante. Muito obrigada por partilhar.

Antonio Carlos; ou ACAS disse...

Gostei imenso caro Manoel Amaro. Creio que os descendentes de godos, visigodos e celtas estão orgulhosos de ti.

Anónimo disse...

Olá boa tarde.adorei ler o seu conto.Manuel Amaro Mendonça.muito obrigado.excelente.

Fernando Morgado disse...

Um conto que me remete para a idade da pedra, a idade da escuridão e da ignorância, vistas do lado de cá, do século XXI, mesmo que neste tempo ainda existam comportamentos remanentes de uma outra escuridão.
Destaco a beleza do texto, a dinâmica narrativa do Manuel Amaro, sempre copm textos muito bem organizados.
Por fim, fica a certeza de que sempre foram as mulheres que melhor defenderam os seus parentes e os seus bens. Os homens desse tempo jogavam à caça, celebravam cobardias com "lutas" ébrias, e pouco mais. As mulheres continuam a ser o pilar, a base da sociedade. Sem elas, estaríamos ainda a lascar pedra.
Parabéns, Manuel Amaro.

Fernando Morgado

Receba as últimas novidades

Receba as novas publicações por correio eletrónico:

Número total de visualizações de páginas

Mensagens populares

Publicações aleatórias

Colaborações


Etiquetas

Contos (100) Marketing (57) Samizdat (56) Lançamentos (35) Contos Extensos (32) Contemporaneo (31) Eventos (30) Antologias (24) Autobiográfico (23) Poesia (23) religião (23) TDXisto (22) pobreza (22) roubo (22) Na Madrugada dos Tempos (21) Noticias (21) pre-historia (21) primitivo (21) sobrenatural (19) criminalidade (18) Crónicas (16) Sui Generis (16) homicidio (14) DAMarão (13) biblico (13) A Maldição dos Montenegro (12) Indigente (12) Recordações (12) sem-abrigo (12) separação (12) Pentautores (9) Suporte a criação (9) Século XIX (9) Uma Casa nas Ruas (9) genesis (9) publicações (9) Distinção (8) perda (8) solidão (8) Entrevistas (7) livros (7) terceira idade (7) Na Pele do Lobo (6) Rute (6) Terras de Xisto (6) Trás-os-montes (6) intolerancia (6) lobisomens (6) mosteiro (6) Apresentações (5) Papel D'Arroz (5) Revista (5) guerra (5) medo (5) morte (5) opressão (5) traição (5) Corrécio (4) Divulga Escritor (4) geriatria (4) sofrimento (4) vicio (4) LNRio (3) Portugal (3) Violência doméstica (3) dor (3) Carrazeda de Ansiães (2) Entre o Preto e o Branco (2) Ficção (2) Humor (2) Projetos (2) ambição (2) apocaliptico (2) cemiterio (2) culpa (2) futurista (2) isolamento (2) jogo (2) lendas (2) sonhos (2) Abuso sexual (1) Covid-19 (1) Extraterrestres (1) Minho Digital (1) Pandemia (1) Perversão (1) Viagens do tempo (1) abel e caim (1) bondade (1) desertificação (1) dificuldades (1) emigração (1) escultura (1) hospital (1) materialismo (1) mouras (1) natal (1) sorte (1) suspense (1) transfiguração (1)

Imprimir

Print Friendly and PDF