Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
A passagem de ano é como um salto para passar uma porta, através de uma cortina fechada. Sentimos o medo do desconhecido que está para lá dela, que se acoita no escuro.Assim estava a minha vida naquele momento, num salto para o desconhecido. E se estava tudo claro, ainda há pouco tempo atrás, agora tudo parecia nublado e cinzento.Soaram as últimas badaladas e aquelas pessoas desconhecidas, na enorme praça no centro do Porto, gritaram, riram, comeram passas e beberam espumante barato.Riram, porque acreditavam que, entrando naquela nova e desconhecida etapa a rir, assim seria o resto do período, até que este novo ano se consumasse.Mas eu, foi com lágrimas nos olhos que te abracei e beijei, a ti, que tantas vezes amei e desejei e por quem dei este salto no escuro que estava a viver naquele momento.A minha mente traidora, agora que tinha aquilo que tantas vezes desejara, torturava-me com imagens que eu não queria ver; ali, no meio daquelas pessoas que festejavam com alegria fingida, que espantavam os medos com uma coragem que não sentiam, a ideia de Noémia e Sílvia sozinhas em casa, na passagem de ano mais triste das suas vidas, não me saía da cabeça.E tu beijaste-me e riste-te, como todos os outros e bebeste um e dois copos de espumante, feliz, ou fingindo que sim... ou achando que sim...E eu, dono de uma angustia do tamanho do mundo, sentia o enorme nó na garganta que me impedia de beber e não deixava responder ao “Amo-te” gritado/sussurrado, ao ouvido, que me ofereceste. Antes fechei os olhos e virei o rosto ao céu, tentando aliviar a garganta e sossegar a respiração cada vez mais opressiva.Fitei-te e passei-te a mão pelo cabelo com carinho, num gesto velho de anos, dos tempos em que não eras minha e eu não era teu... e tu limpaste a lágrima traidora que corria dos meus olhos congestionados, que miraste através da luz bruxuleante do fogo de artifício.Articulaste um “Estás bem? Enquanto me seguravas ambas as faces para que os nossos olhos estivessem no mesmo comprimento de onda.Não, não estou bem, pensei enquanto a tua irmã me abraçava e beijava, não, não estou bem, quando o teu cunhado me apertava a mão. Não, não estou bem, neste desconhecido, no outro lado da cortina escura. Não, não estou bem, aqui, nesta vida que tanto desejei e sem a qual pensei que não poder viver.Agora sou eu que tomo o teu adorado rosto entre as mãos e beijo-te com um beijo forte e quente, deixando finalmente correr livremente as lágrimas.É um novo ano que nasce com o coração cheio de amor, mas sem alegria e afogado em remorso.Ofereci-te um sorriso triste, tentando dar uma coragem que não sentia, ao teu olhar preocupado. A esses teus olhos fascinantes e luzidios, gravados a fogo na minha alma.Fechei os meus e inspirei fundo enquanto sentia o teu abraço e o fogo de artifício troava incessantemente. Tornei a abri-los para aquele mundo novo, que não reconhecia, ali, do outro lado da cortina e beijei-te docemente a testa, enquanto me soltava suavemente do teu amplexo.Olhaste-me com uma pergunta, mas com medo da minha resposta e eu, com o meu patético sorriso triste, quase abafado pelas explosões, disse-te:- Desculpa-me, meu amor, mas não consigo!Sem mais, voltei-me e caminhei em passos largos, por entre a multidão, enquanto o fogo de artifício se silenciava e era substituído pela ovação das pessoas agradecidas.E eu deixei-te ali, no meio do desconhecido, por trás da cortina, que eu achava que ambos queríamos, mas que eu não conseguia suportar.Corri, corri como um louco, de volta para os braços da minha mulher e da minha filha. Corri, sufocando a angústia que sentia, porque elas estavam sozinhas, sem mim, do lado de cá da cortina, onde eu disse que estaria sempre. Corri, sufocando o medo, que não me conseguissem perdoar.
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