Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
** Este conto foi o 3º Classificado no 6º Concurso literário da Papel D'Arroz Editora em 2015
Naquele fim de
tarde, a pequena e escura taberna estava enevoada de fumo de tabaco e as vozes
tonitroantes de homens enchiam o espaço.
Por entre as mesas
toscas de madeira, ladeadas de bancos corridos, o chão de lajes grosseiras
estava manchado e sujo de anos de vinho entornado. Os candeeiros a petróleo,
nas paredes de madeira enegrecida, travavam uma luta desigual com as trevas e o
fumo que dominavam o estabelecimento. Uma enorme lareira crepitava e emprestava
mais um pouco de luz bruxuleante a todo o ambiente.
Estavam os clientes
todos amontoados, ao fundo, em volta da mesa onde estavam a ser decididos
destinos.
Sentados, cercados pela
pequena multidão, estavam quatro homens. Dois deles, eram sem dúvida
camponeses, vestes modestas e rostos tisnados do sol com barbas crescidas,
cortadas há muitas horas. Outro, envergava um blaser preto, discreto e rosto
barbeado mas também queimado de muitas horas ao ar livre. O último deles
aparentava ser o mais abastado de todos. Casaca preta comprida, cabelo impecavelmente
cortado, rosto pálido e barba curta, devidamente aparada, sobreposta por um
respeitável bigode de pontas retorcidas.
Os três primeiros,
habitavam aquela aldeia e eram jogadores assíduos de dados na tasca do António
“Bisarma”, um gigante com um metro e noventa e mais de cento e vinte quilos de
peso. O ultimo deles era um recém chegado que se apresentou como um negociante
de propriedades chamado Fernando Sarmento.
Os dois camponeses, o
Manel “Esbarrola” e o “Xico da Horta”, jogavam habitualmente com o João Morais,
lavrador proprietário conhecido pelo “Fanhoso”, em apostas mais ou menos
elevadas. Muitas vezes as partidas levaram os magros rendimentos dos
camponeses, mas outras tantas, o lavrador deixou gordas maquias nos
necessitados bolsos dos companheiros.
Naquela tarde, o
forasteiro entrou na taberna para beber e, após algum tempo a assistir ao jogo,
mandou servir mais uma rodada de tinto a todos os presentes, apresentou-se e
perguntou se podia juntar-se ao trio.
Após um olhar rápido
entre todos, assentiram e Sarmento sentou-se ao lado do Fanhoso.
Em cima da mesa, além
dos quatro dados e uma caneca de barro
com vinho, três copos de madeira
e pequenos montes de moedas ficavam à direita de cada jogador.
Jogavam ao vinte e um.
Cada jogador lançava os quatro dados e, se o valor fosse inferior a vinte e um,
escolhia um ou mais dados e podia jogar duas vezes até atingir o valor máximo
menor ou igual que vinte e um. Se o valor fosse ultrapassado, perdia
imediatamente, senão, finda a ronda de todos os jogadores, ganhava o que
conseguisse o valor mais elevado.
As moedas corriam em
cima da mesa ora para um lado ora para outro e, após algumas jogadas
equilibradas, o forasteiro rapidamente começou a arrebanhar todo o dinheiro da
mesa.
Mais duas canecas do
tinto adamado se beberam antes do Xico da Horta, nervoso, gaguejar um “Já não
tenho tusto” e levantar-se, juntando-se aos assistentes.
O Manel Esbarrola,
assim conhecido pelo temperamento irascível e pelas gabarolices que lhe eram
característica, começou a “ferver” assim que as últimas moedas se lhe escaparam
da mão:
-
Demónios dos
infernos. Excomungado jogo que não me dá sorte nenhuma. - Ferrou um soco na
mesa que fez saltar dados, moedas, copos e canecas. - Não consegui fazer as
sortes virarem.
Sarmento olhou surpreendido
para o Fanhoso que acenou negativamente, de olhos no chão, desaprovando a já
esperada conduta.
-
Eh, lá, ó
Manel! - Trovoou o Bisarma de trás do balcão. - Já sabes que não quero cá
coices! Se escoicinhas na mobília ponho-te na rua.
O Esbarrola voltou-lhe
as costas e atirou um braço ao ar enquanto resmungava um “Deixa-me cá”.
Os outros dois
jogadores olharam-se e o Fanhoso negou com a cabeça, informando que também para
ele o jogo estava terminado.
O forasteiro ficou-se
sentado à mesa a brincar com os dados enquanto os restantes clientes retomavam
os lugares que ocupavam antes do jogo se tornar interessante.
-
Deixe-me
jogar mais uma. - Pediu o Esbarrola de repente.
Sarmento olhou-o nos
olhos antes de responder:
-
Não disseste
que não tinhas mais dinheiro?
-
Sim, mas
posso jogar outras coisas. - Voltou-se para o companheiro que se mantinha ao
seu lado. - Xico, arranja-me cá um cigarro.
-
Arre porra,
homem, os últimos dois que fumaste fui eu quem tos deu. Achas que a mim não
custam dinheiro? - O da Horta atirou. - Hoje não larpas mais nenhum que eu te
dê.
Manel deitou um olhar
azedo ao amigo antes de tornar ao forasteiro.
-
Então? -
Inquiriu. - Que me diz vossemecê?
-
Que tens que
me possa interessar? - O indivíduo tornou o olhar para a mesa enquanto brincava
com os dados numa atitude descontraída. - Tens terras?
-
Terras não
tem. Esse lôrpa perdeu, as que o pai lhe deixou, há dois anos nessa mesa. -
Interveio o taberneiro de braços pousados no balcão e atento à conversa.
-
Não tenho
terras, mas tenho um cavalo. - Afirmou o Esbarrola ignorando o Bisarma.
-
E queres
jogar o teu cavalo? O teu ganha pão? - Perguntou o estranho fitando-o nos
olhos.
-
Não faças
isso, Manel. - Avisou o Xico da Horta. - Se o perdes ficas sem emprego ou vais
para carrejão.
-
Sim quero! -
Ele ignora completamente os restantes.
-
Sente-se por
favor. Eu aposto todo o dinheiro que aqui ganhei esta noite contra o teu
cavalo. - Convidou Sarmento. - Senhor António, traga mais uma caneca.
Assim que o adversário
se sentou, o homem tirou do bolso do casaco um pequeno molho de papeis. Soltou
um deles, que se revelou uma folha amarelada dobrada em quatro e perguntou:
-
O teu nome é
Manuel...
-
Esbarrola! -
O grito, coroado de gargalhadas, veio de uma das outras mesas. Todos estavam
atentos à conversa.
-
...Bugio. -
Esclareceu Manuel, ignorando-os.
Continuando o seu
ritual, o forasteiro retirou de outro bolso uma caneta que destapou e começou a
escrevinhar enquanto lia alto:
-
Eu, Manuel
Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade do meu cavalo e será
entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados.
Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
O tasqueiro pousa a
caneca sobre a mesa e olha espantado para a caneta de tinta permanente que o
homem empunhava. Nunca tinha visto nenhuma, embora já tivesse ouvido falar, até
o senhor abade escrevia com aparos que molhava na tinta.
-
Senhor
António. - Interpelou Sarmento. - Quer ser nossa testemunha, ler e assinar este
contrato?
O Bisarma repetiu, de
forma errática, as mesmas palavras que escutaram e garatujou o seu nome, numa
letra infantil.
-
Agora você,
Manuel. - Pediu o forasteiro.
-
Eu... não sei
ler nem escrever. - Lamentou.
-
Não há
problemas. Pegue na sua faca e faça um corte num dedo. Ponha uma pinga no fundo
do papel e calque com um dedo..
Lentamente, os
restantes clientes da taberna levantavam-se e refaziam o círculo à volta da
mesa com os dois contendores e observaram o estranho ritual.
Tiraram as sortes
e Manuel começou... era prometedor,
encheu o copo e esvaziou-o. Ganhou a primeira mão e passaram à segunda, também
iniciada por ele, mas foi Sarmento quem arrebatou maior pontuação. Estavam
empatados e a próxima decidiria tudo. Manuel encheu o seu copo e despejou-o
quase de um trago.
O forasteiro lançou os
dados e na sua jogada não conseguiu mais que um dezoito. Animado, Manuel
iniciou o seu jogo; o lançamento só lhe deu quinze pontos; uma quadra, duas
quinas e um ás. Pegou no dado com apenas uma pinta e lançou-o. Saiu um duque;
fez um gesto de contrariedade, dezasseis ainda não chegava, só tinha mais uma
hipótese. Relançou o dado novamente para obter, de novo, o um. Perdeu.
Sarmento, calmamente,
dobrou o papel que comprovava a propriedade do cavalo e meteu-o no bolso.
Manuel, ainda debruçado
sobre a mesa, estava em transe mas, de repente, levantou-se com brusquidão
atirando o banco onde estivera sentado para o chão. Deu dois murros com os
punhos fechados na mesa. Sarmento recuou instintivamente mas não se levantou. O
taberneiro agarrou no braço de Manuel e preparava-se para o “acompanhar” à
porta quando ele mudou de atitude:
-
Senhor
Sarmento, por favor. Não me faça isto... - Implorou.
-
Isto o quê,
meu amigo? Jogamos ambos, de boa fé, de acordo com o que nos propusemos. Eu
ganhei, você perdeu.
-
Por favor. Eu
prometo que lhe pago o valor do cavalo. Só preciso de mais algum tempo.
-
Não posso.
Tenho que ir embora daqui a pouco.
-
Por favor.
Não me deixe assim. Dê-me mais uma oportunidade...
Havia um silencio
pesado na taberna, ninguém respirava a aguardar a resposta.
-
Está bem. - O
forasteiro anuiu ao mesmo tempo que se ouvia um suspiro aliviado de toda a
audiência. Mas ele logo continuou. - Que mais tens para jogar?
-
Vai-te embora
rapaz. - Aconselhou o Bisarma.
-
Manel, não
insistas, hoje o mar não tá para peixe. - Pediu o Quim da Horta. - Deixa ficar
assim. Alguma coisa se há-de arranjar.
Outras vozes faziam
coro, condoídos com a situação do homem, que apesar de tudo era responsável
pela sua própria desgraça.
-
A minha casa.
- Manuel sentenciou de forma quase inaudível. - Quero jogar a minha casa.
-
Espera Manel!
- Interveio o Fanhoso – Não faças isso! Eu ajudo-te alguma coisa, adianto-te
algum dinheiro. Não jogues a casa que te desgraças, homem.
-
Ouve, Manel.
- Agora era o taberneiro que insistia. - Não faças isso, esse homem não quer
saber de ninguém, está a causar a tua desgraça! Mataste a tua mãe de desgosto
quando perdeste as terras, deixas a família passar fome, porque gastas tudo no
jogo. Agora vais deixa-los sem teto? Valha-te Deus, lembra-te que a tua mulher
está grávida e que tendes já um filho. Que queres fazer da vida, celerado?
Manuel sacudiu a
manápula pesada do Bisarma e insistiu com Sarmento:
-
Que me diz? -
Tudo o que ganhou hoje, cavalo incluído, contra a minha casa. Não disse que
está interessado em propriedades?
-
Sente-se
Manel. - Sarmento permitiu-se um sorriso de escárnio enquanto tirava novamente
o pequeno maço de folhas amareladas de onde tirou uma cuidadosamente dobrada. -
Vamos escrever isto, sim? Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a
propriedade da minha casa e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar
a uma partida de de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António
Pereira, taberneiro.
-
Eu não assino
isso! - Recusou-se o Bisarma. - Não vou ajudar a desgraçar esse infeliz.
-
Porque não? -
Perguntou Sarmento. - E o senhor Xico da Horta? Quer assinar? Devolvo-lhe o
dobro do dinheiro que perdeu esta noite.
O homem corou e
notou-se que travava uma terrível luta interior. No entanto, a necessidade de
dinheiro era mais forte, aproximou-se e gemeu um quase inaudível “Desculpa
Manel”.
-
Testemunha
deste acordo foi o senhor Francisco... - Continuou o forasteiro após riscar o
nome do taberneiro.
-
…Terroso. -
Concluiu o Xico. - Eu também não sei escrever.
-
Não tem mal.
- Descansou-o Sarmento. - Só preciso de uma cruz. A promessa dele é que exige
sangue.
Depois de todo o ritual
terminado, a mancha de sangue apensada em mais um contrato, o forasteiro define
mais uma regra:
-
Apenas uma
jogada cada um. Estou a ficar sem tempo. Começa o Manel.
A tremer, Manuel
apertou os dados com toda a força antes de os lançar para o meio da mesa. Olhou
incrédulo para o resultado. Contou por duas vezes as pintas, todos festejaram,
vinte de uma mão só! Era um milagre, todos gritavam, ia recuperar tudo e ficava
com lucro.
Sem perder a calma,
Sarmento atirou os seus quatro dados que pareceram demorar uma eternidade a
imobilizar-se e... não era possível! Dois seis, um cinco e um quatro! Vinte e
um! Ele conseguiu suplantar de uma mão só uma jogada quase única, só podia ser
obra do Diabo!
-
Por todos os
demónios!!! - Berrou Manuel fora de si enquanto atirava com os dados contra a
parede e escacava a caneca no chão.
-
Chega! -
Gritou o taberneiro arrastando Manuel pelo braço. - Eu avisei-te, todos te
avisamos, não vais agora fazer baderna aqui e partir-me a tasca toda. Põe-te lá
fora. O frio vai arrefecer-te essa cabeçorra e pensar na grande merda que
fizeste esta noite.
-
Senhor
Sarmento, por favor! - Implorou Manuel enquanto era arrastado pelo gigante. -
Não se vá embora! Espere um bocadinho, eu vou arranjar algum dinheiro e falamos
outra vez, espere....
-
Só vou beber
mais um copo e depois vou embora. - Gritou o forasteiro antes do taberneiro
bater a porta na cara ao destroçado Manuel.
Cá fora já estava escuro. Pequenos fiapos de
neve esvoaçavam empurrados por um vento ainda suave mas gelado. Ele estremeceu
com a mudança de temperatura mas isso não impediu que se sentasse na pedra
friíssima que servia de banco.
Chorou. Chorou ali, que
ninguém o via. Sozinho, no escuro, porque os homens não choram e ele não podia
passar por mais essa vergonha.
Os efeitos do vinho e
dos nervos produziam um zumbido irritante dentro da cabeça que tinha
dificuldades em manter erguida.
Decidido, levantou-se,
limpou as lágrimas com as costas da mão e caminhou em passos largos em direção
a casa. À Casa que já não era sua.
Entrou porta dentro
como um furacão, abrindo a porta com força, fazendo-a bater na parede.
-
Credo! Homem
de Deus que me matas de susto! - Alarmou-se Maria das Virtudes, sua mulher, que
se afadigava na cozinha. A barriga proeminente anunciava mais uma boca para
alimentar.
Não lhe respondeu e
passou por ela, como se não a visse, com um olhar alucinado e o rosto sujo das
lágrimas que escorreram.
Entrou no quarto onde
dormiam e começou a remexer as gavetas da mesa de cabeceira e depois nas
gavetas da cómoda.
Maria aproximou-se
lentamente, apavorada, sem se atrever a dizer palavra enquanto observava a
revista descontrolada que estava a ser feita.
-
Que está a
fazer o pai, mãe? - Uma voz fina de criança fez-se ouvir quando um menino se
juntou à mulher e agarrou a borda da saia.
-
Shhh, filho,
não digas nada. Vai para a tua cama, vais? - A voz tremente de Maria pediu.
Entretanto Manuel tinha
atingido o seu objetivo e exibia, triunfante um cordão em ouro que retirara de
um dos gavetões.
-
Que vais
fazer com isso? - Ela esforçou-se por mostrar firmeza.
-
Cala-te,
mulher! Isto é a nossa salvação! - Retorquiu ele.
-
A nossa
salvação? Ou o resto da nossa desgraça? Há quanto tempo não entra dinheiro
nesta casa, que o gastas todo na taberna e no maldito jogo? Esse é o ultimo
valor que temos, tirando a casa e o cavalo. Foram os meus pais que mo deram.
Não vou deixar que o leves.
-
Não vais
deixar? - Ele torceu o rosto numa careta de desprezo e desafio enquanto parecia
crescer em frente a ela. - Já não temos casa nem cavalo. Com este cordão vou
tentar que ao menos fique a casa.
-
Ah,
excomungado, maldito! - Ela começou a agredi-lo com sapatadas pouco eficazes. -
Amaldiçoada seja a hora em que o diabo te pôs no meu caminho!
-
Está quieta,
cabra estúpida! - Ele começou a soca-la com o cordão envolto na mão. - Está
quieta ou dou cabo de ti.
Ele continuou a
bater-lhe enquanto ela caía e gritava e continuou a bater-lhe depois que ela se
calou. A criança chorava alto, agarrada à mãe até que ele lhe deu um estalo que
a atirou ao chão, atordoada. Deu mais dois pontapés na mulher e preparava-se
para sair quando irrompem pela casa o pai e a mãe de Maria que acudiam aos
gritos da filha.
Depois de uns segundos
de espanto, o homem atirou-se a Manuel e envolveram-se numa sequencia de murros
e pontapés que se arrastaram até à
cozinha enquanto a mulher acudia à filha que jazia no chão, balbuciante. Agora
era outra a mulher que gritava e chorava agarrada à filha e ao neto.
Na cozinha, Manuel
tentava, sem sucesso, soltar-se do furioso homem que o agredia. Devolvia os
socos e tentava defender-se como podia até que chocou contra uma banqueta de
madeira que quase o fez cair.
Evitando um ultimo
soco, pegou na banqueta e começou a
agredir o sogro com toda a fúria até que este se imobilizou no chão.
Largou “a arma” e saiu
a correr.
Dirigiu-se para a saída
da aldeia, e, quando chegava à encruzilhada, avistou Sarmento que se afastava,
montado num cavalo e levando outro pela arreata.
-
Senhor
Sarmento, senhor Sarmento! - Chamou.
O homem imobilizou-se e
voltou-se para ver quem o chamava.
Assim que Manuel se
aproximou o suficiente, com o rosto marcado e com sangue, as roupas rasgadas, o
interpelado comentou do alto da montada:
-
Você não
desiste, homem? Não deveria estar a procurar um lugar onde ficar? Para a semana
estarei cá de novo e quero a minha casa vazia.
-
Por favor. -
Implorou Manuel. - Não me faça isso. Veja, tenho aqui este cordão de ouro, pelo
menos dê-me o papel da casa.
O homem desceu, pegou o
cordão, examinou-o e devolveu-o ao proprietário:
-
Acha que isso
é suficiente para comprar a casa?
-
Não. Eu sei
que não. Mas se o aceitasse como boa-fé, para a semana terei mais dinheiro e
vou pagando até ao valor que achar bem. Juro!
-
Quer jogar
uma mão? - Sarmento exibiu um riso de escarninho. - Ganha e fica com a casa e o
cavalo...
-
E se perder,
perco o cordão também... - Concluiu o desgraçado camponês.
-
Não. Vamos
apostar outra propriedade que tens.
-
Outra? -
Admirou-se. - Não tenho mais nenhuma!
-
Tens sim.
Tens os teus serviços... a tua vida.
Manuel olhou-o,
incrédulo. O vento continuava a atirar flocos de neve que esvoaçavam entre os
dois homens enquanto eles tentavam ler os pensamentos um do outro através dos
olhos.
-
Os meus
serviços? Que eu seja teu criado?
-
Não
própriamente meu, também eu tenho um patrão. Seriamos como colegas.
-
Mesmo que eu
perca... - Sentenciou Manuel – Rasgas o papel da casa?
-
Sim, pode
ser. - O outro anuiu, tirando do bolso mais uma folha amarelada que começou a
rabiscar na sela do cavalo enquanto dizia em voz alta: - Eu, Manuel Bugio,
declaro com este documento que me entrego de corpo e alma ao serviço do Grande
Comandante que será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida
de de dados.
Sarmento passou-lhe o
papel que ele olhou, com olhos vazios, tentando perceber a enormidade do que
fazia com aquele papel que não sabia ler.
-
Quem é o
Grande Comandante? - Questionou.
-
Apenas uma
pessoa muito importante que tem grandes exércitos de homens às suas ordens. Não
gosta que usem o seu nome em vão, pelo que nunca o escrevemos e chamamo-lo
sempre de Grande Comandante. Já sabes o que fazer, não é? Uma pequena gota de
sangue?
-
Não há
testemunhas... - Observou Manuel, ausente.
-
Não são
necessárias. Este contrato não pode ser quebrado. - Rematou Sarmento pousando
os dados sobre a pedra talhada que servia para as pessoas descansarem das
jornadas.
-
Deixas mesmo
a casa? - Perguntou uma vez mais enquanto marcava a impressão digital com
sangue.
-
Está aqui o
papel. Joguemos em cima dele. Se perderes podes fazer com ele o que quiseres...
e se ganhares também, claro. Está aqui o do cavalo. Jogamos só uma vez cada um!
-
Joga tu
primeiro. - Manuel convidou.
Sarmento atirou os
dados e saíram nove pontos, Uma quadra, dois duques e um ás. Ele jogou todos
menos a quadra. Obteve uma sena, um terno e outra quadra; dezassete pontos.
Jogou o terno e saiu um duque... ficou-se pelos dezasseis.
Animado, Manuel jogou.
Estava ali a oportunidade de recuperar tudo... finalmente a sorte iria
sorrir-lhe! Só precisava de mais um ponto que ele.
Os dados rolaram,
preguiçosamente, até se imobilizarem, obscenamente, em quatro horríveis senas!
Vinte e quatro pontos de uma só mão! Ultrapassou os vinte e um. Perdeu uma vez
mais!
Em choque, deixou-se
ficar, digerindo lentamente tudo o que tinha jogado e perdido...
-
A casa fica
para minha mulher? - Gemeu a pergunta de forma quase inaudível.
-
A tua mulher
não passa desta noite... perdeu o vosso filho e não está nada bem... o teu
sogro nunca mais vai ser o mesmo, mas viverá. A tua sogra cuidará do outro
menino e ficarão bem! - Explicou Sarmento enquanto montava.
-
Como sabes
tudo isso?
-
Há muita
coisa que eu sei... em breve, também tu saberás. De qualquer modo essa família
já não é tua, agora, pertences a outra maior. Anda, irmão, monta no teu cavalo
e vamos levar a desgraça a outro lado.
Os dois cavaleiros
afastaram-se na estrada batida pela neve que o vento atirava com uivos fortes.
Com ela voavam também dois papeis amarelos que atestavam a condenação do vício
de um homem.
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