Debaixodosceus.pt e Amazon.com: Uma parceria de sucesso
2017 Publicação "Daquele Além Marão"
2020 Foi criada a nova imagem
2017 Apresentação na Casa dos Transmontanos do Porto
2022, Pela primeira vez, publicação em capa dura além de capa mole
2017 Apresentação na Confeitaria Luso-brasileira
2020 Publicação "Entre o Preto e o Branco"
2017 Apresentação no CITICA de Daqueles Além Marão
2016 Apresentação no CITICA de "Lágrimas no Rio"
2016 Publicação de Lágrimas no Rio
2016 Apresentação no ISLA de "Lágrimas no Rio"
2015 "Terras de Xisto" - A primeira publicação
2022 Publicação de "A Caixa do Mal"
2022 Devido ao seu sucesso, "Lágrimas no Rio" tem 2ª edição
2022 Publicação "Na Sombra da Mentira"
2022 Publicação "Depois das Velas se Apagarem"

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sabotagem no Paraíso – Décima e última parte - Deus Irae

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.

E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.

Génesis 3 Versículos 14 e 15

 

O inesperado discurso do lobo, que logo desapareceu em corrida, gerou mal-estar no grupo. Os pequenos orbes luminosos, percebendo que se perdia o ambiente propício, começaram a rodopiar com mais intensidade em volta deles.

De novo, humanos e anjo deixaram-se envolver pela volúpia e pelo desejo. Samael acariciou a cabeça de Adam e a de Lilian e aproximou-as para que eles se beijassem. Assim que o fizeram, ele próprio beijou Adam nos lábios. Rrava, sentindo-se posta de parte, infiltrou-se no meio dos três e roubou um beijo ao anjo, com os seus lábios carnudos cheios de sumo de maçã. Lilian envolveu Adam com os braços e as pernas. O belo rosto da mulher parecia alternar entre a pele e escamas verdes, como que se o seu aspeto de humana fosse uma capa para o réptil.

Envolvidos neles próprios, animados pela inspiração divina dos orbes, os dois casais perdiam-se em ósculos molhados, mãos que acariciavam, apertavam ou puxavam. Nenhum deles se apercebeu como o sol, sempre brilhante, começava a esconder-se entre as nuvens que tinham uma tonalidade rosada.

O céu foi-se cobrindo de vermelho e após negro, as nuvens formando um manto espesso e ameaçador. Vários raios atravessaram o éter antes de um portentoso trovão explodir fazendo vibrar o ar e tremer o chão.

Os amantes, surpreendidos, olharam para o centro da clareira onde se formara uma enorme e revolta bola de fogo. Logo atrás dela aguardavam dois querubins empunhando espadas flamejantes, as suas armaduras douradas refletiam o fogo da descomunal orbe.

No centro da bola inflamada manifestou-se o rosto e o corpo do Criador, em fogo vivo, que gritou incompreensíveis palavras iradas, tão alto, que todos tiveram de tapar os ouvidos.

Seguidamente, a própria orbe transformou-se num gigantesco anjo, todo ele composto de violentas chamas.

— Que fazem vocês, infelizes? — Gritou a impressionante aparição, a sua voz causando pequenos sismos.

Samael, estarrecido, arrastou-se para junto das árvores e ergueu-se, resistindo à tentação de fugir apavorado. Lillian tentou ocultar-se na vegetação, enquanto se convertia em serpente. Não conseguiu, porém, concluir a metamorfose e acabou com o tronco de uma mulher coberta de escamas e as pernas convertidas numa cauda verde que se debatia. Os orbes luminosos que os rodeavam caíram imediatamente, ficando a reluzir fracamente no local onde tombaram. Restaram apenas Adam e Rrava, abraçados, para enfrentar a fúria divina.

— Que fazem vocês, criaturas ingratas, depois de tudo o que vos dou? — A voz trovão voltou a interrogar ambos os frágeis humanos que tremiam descontroladamente.

— Perdoa-me, Senhor… — a voz fraca e trémula de Adam fez-se ouvir —… não sabia o que fazia… a mulher que me deste…

— A mulher que EU te dei. — O descomunal anjo ergueu-se em toda a altura, enquanto a sua voz amaciava. — Pois serei eu então o culpado da vossa corrupção…?

— Meu senhor, — tornou Adam, um pouco mais confiante —, ela chamou-me e…

— A serpente contou-nos coisas, senhor… — Rrava prostrou-se aos pés da aparição.

— Pois… a serpente… — o ser de fogo postou os seus olhos sobre Lillian, que estava apavorada a tentar rastejar para a vegetação — … não contente por desprezar tudo o que lhe dei e fiz por ela, atreve-se a corromper aqueles que seguiam as Minhas Palavras. Maldita serás para todo o sempre, que, por tua culpa, amaldiçoadas serão estas infelizes criaturas!

— Perdão, senhor… — também Adam se prostrou ante o Criador.

— Aqui tinham tudo, — a portentosa voz parecia pensativa enquanto enumerava —, bastava estender a mão para comer, não há frio, nem calor, não há perigo, não há dor… a tudo isto renunciastes, em troca de roupas para cobrir a nudez e de maçãs que vos disse não comessem. Não atentaram nas minhas palavras, mas sim nos enganos trazidos por quem não vos quer bem. Não vos chegavam os vossos corpos, tinham de ansiar outros… prazeres diferentes…

— Perdoa-nos pai! — Imploravam em uníssono Adam e Rrava, os rostos no chão, enlameados pelas lágrimas misturadas com a terra.

O anjo de fogo transformou a fúria no seu rosto numa máscara de tristeza e gotas de diamante correram dos seus olhos, evaporando-se ao percorrer o rosto ígneo.

Mais anjos desceram dos céus juntando-se aos querubins, observando o julgamento que se processava. Havia-os de todas as cores, de enorme estatura. Alguns praticamente humanos, uns mascarados pela divindade do seu estatuto, outros ocultos pelo demónio que os habitava, formavam uma silenciosa multidão, tão incrível quanto heterogénea.

— Adam! — A voz trovão retornou enquanto o fantástico ser apontava o dedo indicador ao apavorado humano. — Não mais terás vida fácil. As árvores negar-te-ão os seus frutos com espinhos e ramos, a terra será madrasta e terás de suar para arrancar o sustento. Conhecerás a dor. Os animais deixarão de te reconhecer, uns verão em ti um inimigo enquanto outros verão um alimento. Terás de lutar para salvar a vida e construir abrigo com as tuas próprias mãos. O céu não terá clemência e trará sobre ti chuvas intensas, neves geladas e sol escaldante.

Os orbes luminosos brilhavam fracamente no chão, formando um círculo à volta dos infelizes humanos, quando o Criador voltou o seu olhar feroz para a mulher.

— Tu, Rrava, serás eternamente escrava do teu amor pelo teu homem, trabalharás para ele e por ele serás maltratada. — O dedo acusador apontou-a para que não restassem dúvidas a quem se dirigia. — O homem te subjugará e descarregará em ti as suas frustrações, por te saber mais inteligente que ele e, fará aquilo que mandas… apenas para depois te flagelar novamente. Conhecerás a dor de trazer os filhos ao mundo. Olharás a tua irmã com suspeição e erguerás a mão contra ela por ciúmes e invejas mesquinhas. Não terás amigas, apenas rivais.

O casal humano chorava e gemia enquanto implorava o perdão divino.

— Tu, réptil maldito! — Apontava o dedo agora à serpente/Lillian. — Serás maldita para sempre. Todos os seres vivos te temerão e tentarão tirar-te a vida. A mulher será tua inimiga jurada, morderás o seu calcanhar e ela esmagar-te-á a cabeça. Pobre criatura que já não sabes bem se és humana ou demónio. O teu nome não será mais Lillian, pois nada tens de pureza ou inocência, agora chamar-te-ás Lilith, pois trazes contigo nos ventos da luxúria a escuridão e a maldade.

O ser divino suspirou profundamente ao olhar para o aterrorizado Samael, que optara por manter o seu aspeto frágil de humano, em vez do seu alter-ego divino, com mais estatura e dignidade. Grossas lágrimas corriam-lhe no rosto.

A um gesto do criador, todas as pequenas orbes no chão materializaram-se nas formas humanas de várias dezenas de anjos, uns ajoelhados, outros sentados. Havia uma grande variedade de expressões nos seus rostos, envergonhados, tristes, alguns zangados…

— Perdoa-me Pai! — Samael não aguentou mais e atirou-se ao chão em contrição. Percebera finalmente que estivera a ser usado por Armaros e Samyaza. — Perdoa-me ter abandonado a Tua Luz, ampara-me de novo no Teu Seio. Deixa-me provar o meu arrependimento!

Novas lágrimas de diamante correram no divino rosto antes de fazer um gesto e Samael ascender como um raio, numa coluna de vapor, em direção ao céu.

Lillian tentou seguir a trajetória vertiginosa do seu amante, antes de deitar um olhar ressentido ao Criador. Ela estivera sempre ao lado daquele anjo mal-agradecido e sofrera as consequências dos atos que ambos cometeram, para agora ele ser perdoado e ela duplamente amaldiçoada. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer alguma coisa, enunciou as palavras para o teletransporte e evaporou-se com um estouro do ar subitamente vazio.

Contristado, o gigantesco anjo flamejante acenou negativamente a cabeça, antes de se voltar para os restantes membros da conspiração.

— Os meus filhos traidores… — o Criador chorava enquanto fitava um a um os anjos caídos, desorganizados no chão —… conspiradores, falsos… — nenhum deles se atrevia a enfrentar o olhar do pai —… perjuros. Samyaza, — chamou com voz triste, embora o visado não se atrevesse a olhá-lo —, confiei-te os destinos humanos. Armaros, — este levantou os olhos, mas logo os baixou novamente, envergonhado —, prometeste cuidar deles e não se envolver com eles. Criaste monstros, ensinaste-lhes monstruosidades! Que fizestes?! Anátema!!!!

Os anjos que assistiam ao julgamento entoaram, a uma só voz, as bênçãos ao Criador:

“Bendito és Tu, Adonai, que libertas os aprisionados!

Bendito és Tu, Adonai, que levantas os subjugados!

Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu perdão é doce como o mel!

Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu desprezo é amargo como fel!

Bendito és Tu, Adonai, a Tua ira é divina e fatal!

Bendito és Tu, Adonai, o Teu castigo é justo e brutal!”

— Azazel, meu filho, até tu. — Continuou o Criador. — Tomaste esposa entre eles, ensinaste-os a fazer armas!?

— Meu Pai! — Também o referido, apesar de se atrever a contestar, não enfrentava a visão de magnificência e divindade do Criador. — Foste Tu quem subverteu a criação! Por que destruíste as vidas anteriores da Terra? Não poderiam todos coexistir? Quanto às esposas, também Tu tinhas uma, não Te recordas? Ou não queres recordar? — Aqui olhou-O em desafio. — Que fizeste de Asherah[1], a rainha dos céus?

— Pois atreves-te a confrontar-me? — O Criador pareceu crescer ainda mais, à medida que as suas lágrimas se enxugavam. A sua pele dourada parecia ferver. — Comparas Asherah aos reles humanos?!? Ousas invocar o nome que proibi que fosse mencionado[2]?

O portentoso anjo dourado retornou lentamente à sua forma de bola de fogo, onde o terrível rosto se distinguia, retorcendo-se em máscaras de fúria, como que se debatendo com as Suas diversas personalidades.

Os anjos que assistiam ao drama tentaram suavizar a fúria do criador com o coro celestial: — Bendito és Tu, Adonai, que libertas os aprisionados!

Bendito és Tu, Adonai, que levantas os subjugados!

Bendito és Tu, Rei do Universo, o Teu perdão é doce como o mel!

— Malditos sois!!!! — O grito fez tremer o chão, em simultâneo com um possante trovão que atroou os céus. — Caídos do meu coração, agora e para sempre!

Para consternação dos anjos transgressores, as suas asas soltaram-se das costas, e caíram ao chão como fruta madura, onde se dissolveram rapidamente. Os seguidores do Criador choraram o infortúnio dos seus irmãos.

— Vagueareis pela Terra desolada, que conspurcastes com os vossos desmandos. Tereis desprezo dos irmãos dos Céus e chacota dos que se converteram em demónios no passado. — A maldição do Criador recomeçou, cada palavra fazendo vibrar as próprias árvores. — Na vossa miséria acompanhareis os humanos, que desprezais e adorais e com eles compartilharão destinos, até que algo façais que desperte a minha compaixão! Assim se faça conforme a Minha vontade!

— Amém!!!!! — Cantou o coro angelical, também ele ecoando nos céus e na terra.

Quase de imediato começou a levantar-se um turbilhão de poeiras e folhas que rapidamente se transformou num terrível furacão. Humanos e anjos foram arrastados pela fúria do vento e espalhados por toda a terra.

O furor da tempestade de areia dissipara-se e a vegetação luxuriante do Jardim não passava agora de uma vaga memória. Adam e Rrava deram por si, sozinhos, numa encosta arenosa, pontilhada com algumas poucas palmeiras, que descia em direção a um largo rio.

Numa duna mais afastada, um dos anjos despojados das suas asas ergueu-se, curvado pela vergonha. Deitou um olhar desolado ao casal humano e começou a caminhar em sentido contrário, desaparecendo na curva do terreno.

O vento quente atirava areia pelo ar abafado. O sol inclemente, instou-os a procurar a sombra de uma das palmeiras. Os dois frágeis seres estavam pela primeira vez verdadeiramente sozinhos; ausência de Deus era um pesado vazio que não conseguiam explicar.

Com os pés a queimar na areia, chegaram finalmente à sombra protetora. Uma pequena víbora agitou-se à chegada deles e Rrava, instintivamente, chutou-lhe uma porção de areia que a fez fugir. O divórcio entre os humanos e os animais estava consumado.

Sem saber o que fazer, em choque, sentaram-se no chão quente e hostil. Algo na barriga de Rrava movimentou-se e ela colocou a mão sobre a perturbação. Uma palavra acudiu-lhe imediatamente aos lábios: — Caim.

 



[1] Asherah ou Aserá é identificada como rainha consorte do deus sumério Anu e do deus ugarítico El, as mais antigas divindades dos seus respetivos panteões, bem como era consorte de Javé, Deus de Israel e Judá. In Wikipedia

[2] Apesar de ter sido adorada no panteão judaico, enquanto rainha dos céus, durante o período politeísta, a conversão em monoteísta fez com que fosse esquecida e os seus seguidores acusados de idolatraria.

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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso – Nona parte - Sedução e Engano

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
 

As carícias, os beijos sabedores e o feitiço de atração de Samael, deixaram Rrava sem ação e ela deixou que ele a sentasse no chão, sentando-se ele próprio a seu lado.

O anjo acariciou-lhe o rosto e o cabelo enquanto ela reclinava a cabeça para trás e perguntava sonhadoramente: — Que tenho de fazer para ver como são as coisas fora do jardim? Como posso conhecer esses homens que constroem as suas próprias grutas onde querem?

— Se o Pai te deixasse sair, era fácil… — Atirou Samael.

— Mas Ele nunca nos proibiu de nada, — ela abriu os olhos, intrigada — pensas que vai impedir de sair? Nem ao menos um bocadinho?

— Sim, tenho a certeza que não vai querer que saias, mas tens a certeza que nunca vos proibiu nada? — O anjo esboçou um sorriso conhecedor.

— Bem, — corrigiu-se ela —, disse-nos que não comêssemos nada de uma destas árvores. — Apontou uma modesta macieira carregada de maçãs vermelhas e reluzentes.

— Mas por quê? — Insistiu Samael.

— Não sei. — A jovem exibiu uma expressão de criança, enquanto encolhia os ombros. — Nunca pensei nisso, se calhar vai fazer-nos mal.

— Não faz mal nenhum, é mentira. — Lillian recuperou lentamente a forma humana ante o olhar espantado de Rrava, enquanto exibia as suas formas por baixo da túnica curta cor-de-ferrugem que a cobria. — Podes comer de tudo o que existe no jardim e nada te fará mal.

— Esta é Lillian. — Apresentou Samael, sem se levantar. — Também já viveu neste jardim, como tu. Ela tem razão, nada neste jardim te fará mal, a proibição é uma prova da vossa obediência.

Como que para o provar, Lillian apanhou uma das maçãs mais baixas nos ramos, trincou-a e mastigou-a sonoramente, após o que. passou lentamente a língua pelos lábios exuberantes.

O anjo, aproveitando a voluptuosa cena, puxou novamente o rosto de Rrava para o seu e beijou-a longamente, emitindo uma vez mais as ondas de desejo que Lillian sentiu.

Os pequenos orbes[1] luminosos e quase translúcidos, que se escondiam entre a folhagem, libertaram-se em rodopios em volta dos amantes, como que a festejar o amor.

Sem que ninguém se percebesse, Adam surgiu na entrada da clareira, logo ao lado de Lillian, que estremeceu ao vê-lo.

O homem ficou estático, tentando perceber o que via; a sua Rrava estava deitada no chão abraçada e aos beijos a outro homem e ali, a seu lado, estava a mulher revoltada que fugira de junto dele.

— Lillian? — A voz dele, quase inaudível, dir-se-ia não querer perturbar os amantes. — Não te foste embora?

Os orbes, percebendo a presença do intruso, compreenderam que o plano podia de Samael podia ruir de um segundo para o outro. Voaram rapidamente em volta de Lillian e Adam, envolvendo-os em rodopios e atraindo sobre eles um deleitante raio de sol.

Novamente as inexplicáveis ondas de desejo envolveram, desta vez o antigo casal. O homem olhou-a de alto a baixo e ela ofereceu-lhe a maçã, com a parte trincada voltada para ele.

Após alguma hesitação, ele deu uma sonora trincadela no fruto, deixando algum do sumo escorrer do canto da boca. Aproveitando a deixa, Lilian beijou-o no local, para que não se perdesse.

Adam apertou-a contra si e, embalados pelo desejo sobrenatural que os consumia, envolveram-se numa união carnal em que cada um tentava a supremacia sobre o outro.

Saciados, os dois casais, estavam sentados no chão em círculo.

Adam ainda estava incrédulo com o regresso de Lillian e a presença de outro humano no jardim. Sempre acreditara que, para além deles e do Pai, não existia mais ninguém parecido no mundo. Bombardeou-os com perguntas, apoiado por Rrava que sempre se calava quando ele a interrompia.

O interesse de Rrava voltou-se por fim para as “finas peles” com que se cobriam os estranhos. Queria saber do que eram feitas e para que serviam. Samael, porém, estava mais interessado em convencer Adam de que a vida fora do jardim era livre e que podiam fazer e andar por onde quisessem, ao contrário do que acontecia ali.

Lilian ensinou Rrava a juntar várias folhas grandes e costurá-las com fibras de uma trepadeira para formar uma saia grosseira. Ela aprendeu tão rapidamente, que fez outra para Adam que ficou um pouco confundido quando lha pôs à cintura.

Rrava estava felicíssima com a nova habilidade e fez um pequeno corpete com que ocultou os fartos seios. Como agradecimento, abraçou e beijou Lillian nos lábios, encostando o seu corpo quente ao dela. A mulher renegada sentiu-se estranhamente excitada, surpreendida porque pensava que tal só acontecia com homens e principalmente com o “seu” Samael. A outra, porém, não se imobilizara e correu a apanhar mais uma maçã que partilhou com ela após dar a primeira mordida.

— Sabias que estamos fechados num jardim e muitas pessoas iguais a nós, vivem para além dele? — Adam interrompeu o potencial idílio entre as duas. — O Pai alguma vez te falou deles?

— Não. Nunca. — Confirmou Rrava. — A primeira vez que ouvi isso foi contado por ele. — Apontou Samael com o queixo.

— Claro que Ele não quer que saibam. — Interveio Lillian intempestivamente. — Quer vos manter aqui presos na ignorância. Também eu não sabia e tive de ir lá fora para ver com os meus olhos. A minha desobediência foi castigada, transformando-me numa serpente! — Samael arregalou os olhos, horrorizado com a mentira, mas ela não se refreou. — Queria submeter-me ou matar-me, mas não conseguiu, porque os anjos protegem-me.

— Transformou-te em serpente? — Adam estava espantado. — O Pai fez isso?

— Sim! — Ela insistiu na mentira, para horror de Samael. — Assim poderia matar-me com mais facilidade, mas os anjos esconderam-me e ensinaram-me a sair da forma a que fui condenada. — Sorriu ao ver os olhares de admiração deles. — Se vierem connosco, eles também vos protegerão.

— Depois Ele não virá atrás de nós também? — Rrava mostrou-se atemorizada. — Certamente nos quererá matar por fugirmos.

— Levar-vos-emos para a Terra dos Homens, onde vivem em grande número. — Corroborou Samael. — Eu e os meus irmãos velaremos para que o Pai não vos encontre. Lá podereis viver como quiserdes.

— Podereis ter roupas como as nossas. — Incentivou Lillian antes de se aperceber que o lobo os observava à distância, desconfiado. — Voltou… — sorriu —… lobo….

— Não é estranho que, tirando o lobo, não haja mais nenhum animal à vista? — Observou Adam.

— Sim, já tinha reparado. — Confirmou Rrava. — Apenas Samael como melro e ela como serpente…

— Lobo! — Chamou Lillian. — Vem cá, não tenhas medo, sou eu, Lillian! — Deu alguns passos na direção dele, que começou a recuar e a rosnar.

— Vão-se embora! — Latiu ameaçadoramente o lobo. — Vão-se embora daqui! — Eriçou os pelos do cachaço enquanto puxava as orelhas para trás ameaçadoramente. — O teu lugar não é aqui, Lillian, criança desobediente, vai-te para a terra enferma de onde vieste, vai-te embora em nome do Criador!



[1] Corpo esférico ou circular. = BOLA, ESFERA, GLOBO
"orbe", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

 

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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Natal 2024

 


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domingo, 22 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Oitava parte - Perfídia

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Lilian começava já a pensar se não poderiam ter uma vida melhor ali naquele jardim, em vez de voltar para a aridez do mundo. Samael sentiu-se preocupado quando ela lhe deu a entender que se sentia como que voltando a casa.

— Esta já não é a tua casa. — Avisou-a o anjo, com os olhos postos no chão. — Eventualmente, o Criador poderá até te perdoar, mas creio que nunca te permitirá que regresses aqui. Se suspeitasse que nos infiltramos, enviaria um exército de anjos que nos encontrariam e aprisionariam.

— A ti também? — Ela abriu muito os olhos verdes.

— A mim também. — Ele acenou gravemente. — A ti poderia matar-te ou simplesmente expulsar-te para muito longe, de onde não conseguisses voltar, a mim expulsar-me-ia do Céu e porventura tirar-me-ia as asas… pior que isso, só ser lançado nas chamas eternas no centro da terra.

Caminhavam despreocupadamente pela vereda, apesar da gravidade do tema, como se não tivessem nada a esconder. Lilian meditava nas palavras do anjo e na gravidade do castigo que ambos se sujeitavam, quando depararam com o lobo.

O animal, surpreendido com os intrusos, ficou parado no meio do caminho com as patas perfeitamente apoiadas numa atitude de expectativa. As orelhas puxadas para trás e a cauda inerte mostravam a sua dúvida entre fugir ou atacar.

A mulher reconheceu imediatamente o canídeo que sempre os acompanhava quando ela habitava o jardim e estranhou de imediato a postura agressiva.

— Lobo. — Chamou ela suavemente. — Lobo, não te lembras de mim?

Um rosnar de advertência foi a resposta, antes de soltar o que pareceu um sopro de desprezo e voltar-lhes as costas. Ignorando-os, trotou pela vereda, em sentido contrário ao que trazia.

— Não acredito que já não se lembra de mim em tão pouco tempo! — Lilian bufou de frustração e fez o gesto de atirar um pequeno objeto que tinha na mão.

O braço dela passou perto de Samael o suficiente para lhe despertar a atenção e ficar a olhá-la e à mão fortemente fechada que escondia algo.

— Que tens aí? — Interrogou o anjo, perante o ar culpado que a denunciava.

— Nada. — Ela cerrou ainda mais a mão. — É só uma coisa minha… para me sentir mais confiante.

Ele estendeu a mão insistentemente e aguardou até que ela, relutantemente, pousasse uma pequena pirâmide talhada em madeira.

Assim que o objeto caiu na palma da mão dele, começou a escutar milhares de vozes que sussurravam continuamente uma oração ou um encantamento.

— Foi Armaros quem te deu isso, não foi? — Ela confirmou com um aceno da cabeça, mantendo os olhos baixos. Ele abriu-lhe a mão e devolveu o amuleto. — É um feitiço. A esta hora, ele e todos os que o ajudaram a urdi-lo sabem onde estamos e como chegar aqui. — O seu desapontamento era óbvio. — O segredo da localização está perdido.

— Desculpa. — Lilian mostrava-se verdadeiramente desolada. — Não percebi. Ele disse-me que to não mostrasse, pois irias ter ciúmes por dar a mim e não a ti.

Samael esboçou um sorriso triste. Também os anjos começavam a mentir despudoradamente. Aprendiam com os humanos. Afinal a evolução (?) acontecia nos dois sentidos, ou será que era a evolução dos humanos e a regressão dos anjos?

— Temos de ir. — Instou Samael iniciando uma caminhada decidida na direção que o lobo tomara. Obediente e constrangida, ela seguiu-o.

Não tardou que vissem Adam, que seguia o voo de uma borboleta, tentando escutar o que a sua quase inaudível vozinha dizia. Os dois intrusos regressaram rapidamente aos seus disfarces e mantiveram-se a observar ocultos pelas folhas dos arbustos. A abertura de uma caverna podia observar-se ao fundo por trás de Adam; o seu novo lar.

— Ah, que pássaro tão bonito! — A voz feminina surpreendeu o melro/Samael. — Que penugem tão lustrosa e um bico amarelo tão lindo.

 

e olhos amendoados. O seu luxuriante cabelo escuro, quase lhe cobria o corpo, de onde sobressaíam os seios de bicos rosados.

Olá! — O melro reagiu rapidamente, no vocabulário limitado, típico dos animais do paraíso. — Também muito bonita, tu. Irmãos falarem de ti e eu querer ver. — O plano insidioso iria começar de imediato.

— Oh, a sério? — O sorriso dela fê-la ainda mais bela. — Também estranhava nunca te ter visto aqui.

— Venho de longe. — Continuou ele, observando pelo canto do olho como Adam se afastava da clareira perseguindo a borboleta. — De fora do jardim, onde vivem os outros homens.

— Outros homens? — Espantou-se ela. — Quais? Há mais alguém além de Adam e do Pai? — A semente estava lançada.

O melro saltitou de arbusto em arbusto, na direção contrária à que seguira Adam. Rrava seguiu-o, curiosa: — Diz-me, há mais pessoas por aí?

— Sim, mais perto do que imaginas. — O pássaro fez um pequeno voo para mais longe da caverna, logo seguido pela mulher. A serpente castanha acompanhava-os silenciosamente, oculta da vista, rastejando entre a folhagem que cobria o chão.

— Mas… — a curiosidade tinha sido despertada e estava imparável —… Onde estão? Porque nunca os vi? Porque os outros pássaros não falam deles? — Aqui imobilizou-se e olhou para as copas das árvores. — Onde andam os pássaros?

 — O pai não quer os homens por perto e eles vivem por aí em casas de lama e pedra. — Samael falou de ainda mais longe, atraindo novamente a atenção dela.

— Que são casas? — Rrava correu para junto do melro.

— São lugares como a caverna onde vives, mas são os homens que as constroem onde querem. — Explicou pássaro negro.

— Eu gostava que a caverna ficasse mais próxima do rio. — Disse ela pensativamente. — Como posso construí-la lá?

— Não podes. — O melro esvoaçou para outra folha mais distante. — Aí está, não sabes fazê-lo. Mas, se estivesses fora do jardim, com os outros homens, eles ajudavam-te a fazê-la.

— Então, como encontro esses homens? — Ela ergueu os ombros numa interrogativa.

Samael assumiu a forma humana frente a ela enquanto respondia maviosamente: — Terás de sair do jardim, eu ensino-te como o fazer, quiseres.

A serpente/Lilian circulou pelos arbustos perto deles, apreciando o insidioso círculo de sedução que o anjo construía em volta da inocente Rrava. Devido ao seu estado, agora quase divino, conseguia sentir as ondas de emoções que Samael emitia e que o tornavam irresistível… Era o mesmo “truque” que com certeza utilizara com ela e fazia-a sentir raiva, repulsa e… admiração.

Rrava e o anjo beijaram-se longamente. A volúpia provocada pelo ente divino enlouquecia-a ela entregou-se completamente às suas mãos experientes.

Lilian sentia-se inquieta, ciumenta, talvez, mas algo mais. Olhou em volta e notou a oscilação de luz que acontecia em alguns locais. Percebeu de imediato que eram observados por alguém invisível e rastejou sub-repticiamente para junto da anomalia. O tremeluzir afastou-se ligeiramente, mostrando que a via e, possivelmente, tinha consciência dela para além da sua forma de serpente.

Quase de imediato, a forma translúcida de um sorridente Armaros, com o dedo pousado sobre os lábios, pedia que não dissesse nada. Tornou a desaparecer no momento seguinte. Procurando com mais atenção, detetou várias pequenas orbes luminosas saltitando pela clareira; o segredo da localização do Jardim do Éden fora revelado.

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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sétima parte - A Criação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Quando o Criador proclamou o advento de um novo ser — o Homem — e designou Seu Filho como o mediador divino, Lúcifer viu nisso um insulto à sua própria magnificência. “Por que devemos curvar-nos diante de outro?”, ele pensou, “se somos livres e dotados de poder?” Sua voz, persuasiva e doce como o mel, espalhou-se entre os corações angélicos que começavam a questionar: seria a submissão nosso único destino?

 

In “O Paraíso Perdido” de John Milton

 

De longe, Samael e Lilian apreciaram os dois portentosos Querubins que guardavam a entrada do jardim do Éden. As espadas flamejantes faziam com que tudo em volta parecesse escuro.

A mulher estremeceu com a espantosa visão, mas o anjo acalmou-a: — Sossega. Apesar do seu aspeto, não te fariam mal. Apesar de guerreiros temíveis, são um pouco limitados nas suas ações e seguem as ordens do Senhor cegamente. Se lhes ordenaram que não deixassem ninguém entrar ou sair, assim farão. Desviarão ou impedirão a entrada, ou saída, de quem quer que seja, se não tentarem pela violência, não terão problemas.

— Mas… — Lilian achava estar a ver mal —… não são mulheres?

— Masculinos ou femininos, que interessa? — Samael sorriu-lhe divertido. — São anjos e são Querubins. São os guardiões do conhecimento divino e nada os detém para o proteger. — Murmurou algumas palavras e transformou-se num melro que pousou numa pedra fitando insistentemente a mulher.

Lilian, após alguma hesitação, murmurou o encantamento e o seu corpo principiou a torcer-se e a mirrar, até restar a espantosa serpente castanha e vermelha de olhos verdes.

Guiada pelo melro, a serpente rastejou através da clareira que precedia a entrada no jardim. Dirigiram-se ambos para um ponto afastado do local onde estavam os guardas. Se lhes despertassem a atenção, eles perceberiam a atividade da energia angelical e conseguiriam ver para além dos disfarces; seriam logo desmascarados.

Durante dias, na sua forma humana, vaguearam no incomensurável jardim. Não viam Adam nem Rrava na gruta onde Lilian vivera. Os inúmeros animais que povoavam o jardim olhavam-nos estranhamente: “Sabem que não pertencemos aqui.” Avisou Samael.

Durante praticamente todo o dia andavam juntos e comiam os abundantes e deliciosos frutos que pendiam das árvores e arbustos. Não havia ali nada que lhes fizesse mal, tal como os animais que, mesmo os perigosos, como os tigres, ou os lobos, limitavam-se a olhá-los e a seguir a sua vida. Lilian já tinha esquecido como o jardim era belo e colorido, em contraste com o poeirento e árido mundo lá fora.

— Por que é tão diferente o exterior? — Ela questionou subitamente, quando estavam sentados numa pedra a comer laranjas. — Aqui é tudo tão verde, luxuriante e lá fora seco e tudo é terra castanha, quase sem árvores nem água.

— O mundo não é todo assim. — O anjo deixou cair os olhos para o chão, melancólica e pensativamente, após o que respondeu. — Antes da Guerra no Céu, o Criador e todos os anjos trabalhavam afincadamente a transformar uma bola de pedra e terra seca, que era este planeta, num imenso jardim povoado de árvores e vida animal. Olhou-a como se a não visse, mas sim algo que acontecera há milénios:

O Criador fez várias experiências com múltiplas espécies. Não se conseguia decidir e rapidamente, num frenesi descontrolado, toda a Terra estava habitada por répteis. Os mais variados tipos de gigantescos répteis, desde o fundo dos oceanos até aos próprios ares! Ele sentia, no entanto, uma enorme frustração porque não era aquilo que pretendia, embora não soubesse ainda o que era.

Um dia, furioso, enviou uma enorme pedra sobre a Terra que provocou uma devastação enorme e destruiu praticamente tudo o que fora construído. Todos os anjos ficaram revoltados com tão grande destruição e alguns mostraram essa revolta abertamente ao Criador.

O planeta ficou coberto de poeiras do impacto. Ondas gigantescas lamberam as zonas costeiras, enquanto grandes fogos irrompiam pelas florestas. Perturbados, os vulcões cuspiam furiosamente o seu conteúdo flamejante. Nuvens de fumo e poeira estenderam-se à escala planetária. Toda a vida extinguiu-se e o trabalho efetuado desaparecera. Restou um mal-estar no Céu, enquanto a Terra, privada do calor do sol, arrefecia e ficava gradualmente coberta de gelo.

Então alguns de nós percebemos que nem tudo desaparecera; havia uma pequena faixa do planeta de onde as nuvens se dissiparam. Havia árvores, rio e… muitas espécies de novos animais a povoavam.

Felizes, os anjos voltaram ao trabalho, à medida que o calor do sol, agora liberto das nuvens, fazia derreter lentamente as grandes camadas de gelo. A área povoada de fauna e flora crescia.

As Potestades e as Virtudes[1] são as classes que mais trabalham nessas criações. Alguns deles, apaixonam-se de tal forma pelo fruto do seu trabalho que se fundem com ele, tornando-se como que a alma dessas entidades. Há Potestades nas águas dos rios e dos mares, no vento que envolve a Terra, nas montanhas e nos próprios vulcões, enquanto outros vagueiam livremente ao sabor do vento velando pela fauna, acarinhando tanto rebanhos de cabras, como manadas de elefantes. Era um mundo novo para um novo reino onde os mamíferos se sobrepunham ao reduzido número dos répteis que sobreviveram à grande extinção.

Só quase no final o Criador mostrou-nos quem estava na base do Seu novo plano; eram umas criaturas desengraçadas, curvadas e peludas que viviam em grupos miseráveis. Pesados demais para serem macacos, pois não conseguiam subir às árvores com a graciosidade deles, eram também demasiado fracos e pequenos para serem ursos. Estavam condenados ao extermínio.     

Alguns de nós apaixonaram-se imediatamente por eles, ou não fosse essa a vontade do Criador, mas, outros, discordaram completamente da escolha e fizeram questão de o dizer.

O Senhor, porém, não estava com paciência para escutar vozes dissonantes. Afirmou ser essa a Sua decisão irrevogável, acrescentando ainda; toda a classe angelical serviria estes seres mirrados e auxiliaria a guiá-los na sua sobrevivência, corrigindo os seus erros e apoiando-os nos seus planos.

Alguns dos mais poderosos do Céu fizeram ouvir a sua revolta abertamente. Lúcifer, mais do que qualquer um, o Querubim a quem chamavam “o Portador da Luz”, desafiou o próprio Criador, afirmando que Ele enlouquecera e não podiam mais obedecer-Lhe.

Ao arcanjo rebelde, juntaram-se-lhe outras poderosas entidades, como Belial, Moloque, Abaddon, Beelzebub, Mammon, …  representavam uma força temível, envolvendo várias classes angelicais, que pretendia aprisionar o Criador, tomar o poder e as rédeas da Criação.

Muitos de nós temiam-nos e não se atreveram a contestá-los. Moloque, era como que a fúria de Deus, revoltado e adepto da violência extrema, chamam-lhe agora “Deus dos Sacrifícios”, por incentivar os sacrifícios humanos pelo fogo, para sua honra. Beelzebub, “O Senhor das Moscas”, era divinamente perigoso. Na hierarquia celeste, estava ao nível de Lúcifer e nunca olhou a meios, por mais tortuosos que fossem, para atingir os fins e desafiá-lo era correr graves riscos. Mammon era engenhoso, além de ganancioso e revoltado. Algumas das armas mais cruéis e terríveis usadas na guerra foram desenvolvidas por ele.

Apenas Miguel lhes fez frente; “Aquele que é como Deus” chefiou as hostes fiéis ao Criador, encabeçou os melhores guerreiros e expulsou os rebeldes para a Terra, fechando-lhe os portões do Céu.

Desde então, Lúcifer e os seus sequazes espalham a miséria e a desolação por todo o lado, escondendo-se onde os nossos trabalhos não chegaram, ou onde eles os destruíram.

Se já o faziam antes, após a derrota no Céu, dedicaram-se com mais afinco a corromper a Criação e a iludir os povos dispersos. Na verdade, o facto de nascerem tantos “deuses” nestas terras áridas é apenas a prova da ausência da “Shekinah”.[2] Quase todas as povoações adoram o seu próprio deus que, na maior parte dos casos, é apenas um dos companheiros de Lúcifer, mais ou menos disfarçado. No fundo, são pequenos focos de poder, que não se entendem entre si.

Fala-se nos Céus que os expulsos estão a construir um grande palácio a que chamam Pandemónio[3], nas profundezas da Terra e onde pretendem organizar uma contraofensiva para tomar o poder.

— E tu colaboras com eles… — interveio finalmente Lilian.

— Não quero realmente Lúcifer como governante… — confessou Samael olhando para o chão —… mas muitas vezes questiono-me acerca da lucidez do Criador… e como eu, há outros. Samyaza, Azazel e Armaros são apenas os mais proeminentes deles.

— Achas que haverá outra guerra no Céu? — Ela sorriu com a ideia.

— Não sei, não consigo prevê-lo. — Ele encolheu os ombros. — Este novo grupo não parece interessado no poder. Perturba-os o livre arbítrio concedido aos humanos e a submissão imposta aos anjos. Samyaza e o seu grupo fazem parte daqueles escolhidos pelo Criador como Vigilantes[4] dos humanos e estão fortemente envolvidos com o objeto da sua vigilância. Grande parte tomou mulheres entre os humanos e muitos têm até filhos com elas… — aqui olhou conspicuamente para Lilian — por isso invoquei a ajuda deles.

— Então há mais como o meu filho?  — Alegrou-se a mulher. — Não estaria mais seguro entre eles?

— Antes pelo contrário. — O rosto do arcanjo contraiu-se numa expressão de dor. — Alguns têm uma altura incomum, para um humano, outros, detêm poderes especiais, mas aquilo que todos sem exceção revelam é uma crueldade e uma revolta sem limites. O lado demoníaco dos anjos sobressai na hibridação com os humanos… chamam-lhe os Nefilim 



[1] Classes de anjos da segunda tríade, vocacionada para a execução da vontade divina

[2] Palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”

[3] O nome Pandemónio deriva do grego, combinando pan (todos) e daimónion (demónios ou espíritos), significando literalmente "o lugar de todos os demónios" e é referido na obra de John Milton, “O Paraíso Perdido”

[4] Os Vigilantes, Grigori, em grego, fazem parte do livro de Enoch onde se conta em pormenor a história deste grupo angelical, que ficará conhecido como os Anjos Caídos.

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sexta parte - O Perigo por Perto

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Samael e Armaros estavam preocupados com a presença de Jahi. Faltava ter a certeza se ela tentava aliciar Lilian por sua própria iniciativa, ou se cumpria ordens de Belial… que por sua vez as cumpriria do próprio Lúcifer. Estaria ali um plano para descobrir a localização do Jardim do Éden e do projeto do Criador?

Por várias ações, que acabaram por culminar na primeira guerra do Céu, Lúcifer já provara não ser um anjo como os outros e por isso tentou sobrepor-se ao próprio Criador. Só pela força física acabou sendo subjugado. Se ele estivesse envolvido nesta tentativa de levar Lilian para o seu lado, todos corriam perigo; Lúcifer só reconhecia duas posições; ou a favor, ou contra ele.

Os planos de Armaros, Samyaza e dos restantes vigilantes iam apenas no sentido de interromper o projeto do Criador, embora a eventual morte das criaturas humanas chegasse a estar prevista. Não queriam, porém, a destruição do jardim e isso era o que aconteceria se envolvessem Lúcifer e o seu bando de anjos demoníacos; toda a área ficaria transformada num deserto, à semelhança de outras intervencionadas por eles.

Os anjos que continuavam nos céus, apesar de se saberem superiores aos humanos, amavam-nos como à restante Criação, não podiam era aceitar a humilhação de serem-lhes subservientes. A ideia do assassinato como necessidade foi posta de parte, ainda mais porque achavam que o projeto do Criador incluiria um número elevado de humanos e não apenas um casal.

Samael, já reunido com Samyaza e Armaros, pediu-lhes que não perguntassem a localização, pois não conseguiria mentir, mas garantiu que, em conjunto com Lilian, faria abortar o projeto; Adam e Rrava abandonariam o jardim e viveriam como os restantes humanos.

— E se o Senhor descobrir o que estamos a fazer? — Samyaza perguntou com os olhos fixos no chão.

— Vai ficar furioso, claro! — Afirmou Armaros. — Seremos castigados de alguma maneira. Espero que não nos faça como a Lúcifer e aos outros.

— O que eles fizeram foi muito mais grave! — Samael afirmou, hesitante. — Não foi?

— É inútil estar a tentar prever o futuro e saber como o Senhor encarará mais esta traição. — Samyaza encerrou a discussão. — Irmão: Se estás determinado a atingir os nossos objetivos com a ajuda de Lilian, fá-lo quanto antes. De outra forma, diz-nos onde fica e nós o faremos, Azazel e Baraqiel[1] há muito que querem que reveles o segredo… se calhar já estaria tudo resolvido.

— Não o conseguiríamos fazer pela força, irmãos. — Samael deixou cair os braços com desânimo. — Um grupo agressivo provocaria outra guerra; o Senhor invocaria Miguel e os seus guerreiros. Deixem-nos fazer isto de forma mais subtil, deverá ser o próprio Criador a terminar o projeto, para isso teremos de convencer Adam e Rrava a fazer o contrário do que o Criador pretende.

Os dois Vigilantes abraçaram o irmão, encorajando-o. Lilian, que se mantivera em silêncio, a brincar com o filho, olhou conspicuamente para o seu protetor.

O anjo devolveu-lhe o olhar pensativamente antes de concluir: — Temos de começar a trabalhar.

Nos dias que se seguiram, Armaros dedicou-se a tentar ensinar Lilian a controlar a faculdade do teletransporte. As palavras que a deveriam projetar funcionavam sempre de forma caótica e atiravam-na para os locais mais inesperados. O que para os anjos ocorria com natural suavidade, para ela era como uma explosão. Temiam que, o libertar desenfreado de tanta energia angelical no jardim, alertasse os querubins guardiões, ou mesmo o próprio Criador, que devia estar mais vigilante.

Fora assim, de resto, que ela caíra na terra de Nod, quando fugira do jardim, sem que Samael soubesse para onde havia ido. O pobre sistema vocal dos humanos não conseguia reproduzir algumas subtilezas do idioma divino. As palavras, que soavam como música quando proferidas por um anjo, saíam-lhe pouco melodiosas e grosseiras, trazendo resultados diferentes do que se esperava.

Asmodai ria divertido com o desespero dos anjos e batia as palmas quando eles regressavam trazendo a sua mãe de mais um “jogo de escondidas”.

Cansados de “perseguir” a jovem pelos mais diversos locais para onde ela se projetava, optaram por tentar a invisibilidade, o que se revelou uma completa impossibilidade. A mulher não conseguiu de forma nenhuma articular o feitiço e nada acontecia, aquelas palavras estavam vedadas aos humanos.

A solução teria de estar na metamorfose; se ela se transformasse num qualquer animal, passaria facilmente desapercebida e conseguiria entrar no jardim.

Foram vários os animais que tentaram, mas também aqui os resultados não eram nada animadores; uns incompletos e outros nem por isso. Uma vez mais, a incapacidade linguística era determinante nos péssimos resultados que obtinham.

Também aqui a criança se divertia, assustando-se poucas vezes, por mais espantoso dragão com cabeça humana ou terrível tigre com pernas humanas que se formasse ante os seus olhos.

Foi com a serpente que conseguiram o resultado melhor. Lilian transmutou-se numa enorme serpente castanho-dourada, decorada com manchas vermelhas, onde sobressaíam os seus olhos verdes. Não fossem as inesperadas barbatanas laterais em forma de mãos, poderia enganar qualquer um. Ocasionalmente a transformação tremeluzia, como se fosse regredir a qualquer momento, mas teriam de arriscar, não podiam perder mais tempo, urgia partir para a ação.



[1] Mais dois anjos que faziam parte do grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes” (Grigori em grego)

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