Debaixodosceus.pt e Amazon.com: Uma parceria de sucesso
2017 Publicação "Daquele Além Marão"
2020 Foi criada a nova imagem
2017 Apresentação na Casa dos Transmontanos do Porto
2022, Pela primeira vez, publicação em capa dura além de capa mole
2017 Apresentação na Confeitaria Luso-brasileira
2020 Publicação "Entre o Preto e o Branco"
2017 Apresentação no CITICA de Daqueles Além Marão
2016 Apresentação no CITICA de "Lágrimas no Rio"
2016 Publicação de Lágrimas no Rio
2016 Apresentação no ISLA de "Lágrimas no Rio"
2015 "Terras de Xisto" - A primeira publicação
2022 Publicação de "A Caixa do Mal"
2022 Devido ao seu sucesso, "Lágrimas no Rio" tem 2ª edição
2022 Publicação "Na Sombra da Mentira"
2022 Publicação "Depois das Velas se Apagarem"

domingo, 24 de novembro de 2013

Desolação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

De olhos fechados, trincou com força a maçã vermelha sentindo-a explodir na boca numa volúpia de açúcar.
Mastigou calmamente saboreando cada gota do fruto e, desejando manter uns segundos mais aquela sensação, engoliu, quase contrariado.
Entre dentadas, espreitou de olhos semicerrados as nesgas de sol que logravam romper por entre as nuvens escuras, trazendo uma vaga lembrança do calor de outras eras.
Deixou-se ficar sentado nas enormes pedras da ruina onde descansava fazendo durar a maçã enquanto escutava as vozes algo longínquas dos companheiros no exterior.
Pouco restava do descomunal edifício que escolhera para descansar. Apenas as paredes erguidas para o céu onde já não existia telhado, numa caricatura de mãos que imploravam aos céus.
O chão, pejado de escombros negros, era a evidência de um longínquo crime do qual este edifício fora testemunha e vitima.
Ergueu-se finalmente, com o uniforme camuflado já a ficar puído e enfrentou os restos do altar que ocupavam completamente uma das paredes. Com a maçã quase comida numa mão e a espingarda automática na outra, acenou um adeus respeitoso à cruz queimada que teimosamente resistia no meio da desolação.
Caminhou em passos indolentes e atravessou o pórtico, de onde a enorme porta desaparecera, para o exterior onde várias dezenas de homens e mulheres de uniforme igual se afadigavam com braçados de armas, munições e outras cargas.
O cenário deixara de ser o de um edifício em ruinas para se converter num mundo de destruição a perder de vista. Prédios com janelas sem vidros, como olhos sem vida, inclinavam-se em ângulos improváveis sobre outros reduzidos a escombros.
Aqui e ali, na praça que se estendia à sua frente, misturados com pedras e detritos, repousavam restos calcinados de automóveis arrumados para os lados para rasgar uma passagem para os veículos militares.
Um dos soldados aproximou-se e com uma continência desleixada anunciou “Meu sargento, o nosso comandante deu a ordem de reunir no ponto de encontro para partida imediata.”. Com a velocidade com que aparecera assim se afastou.
O sargento deu a ultima mordida na maçã e começou a caminhar na mesma direção que o soldado tomara, contornando a ruina da igreja.
Parou uns segundos a olhar a gigantesca cratera que engolira metade da cidade. A pouca água que ainda corria do rio caía desamparada numa suja cascata para qualquer lado prometendo que a enorme depressão se tornaria um lago em breve.
“Este primeiro ano é apenas o princípio de muitos outros de morte e destruição antes de podermos recomeçar a pôr ordem no mundo. Mas um dia havemos de conseguir. – Pensou – Havemos de trazer a ordem e a paz e taparemos estes buracos hediondos.”
Como que para começar o que prometia, arremessou o caroço roído da última maçã do mundo para a cratera que levara parte de Paris.
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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Frustração

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




Furioso e atordoado, José abandonou o átrio do edifício forçando a porta a bater com estrondo.

Em passo largo caminhou pela rua cheia de transeuntes. Dentes cerrados, sobrolho franzido, caminhou fazendo as pessoas desviarem-se frente à decisão que se notava no rosto crispado de olhos escondidos atrás dos óculos escuros.

Era o fim de mais uma tarde de calor e o cimento do passeio ainda expelia indolentemente o efeito do sol tornando todo o ar abrasador e difícil de respirar.

Chegou ao automóvel, abriu a porta, precipitou-se violentamente para dentro e fechou-a com estrondo. Deu três murros no volante:

— Merda, merda, merda!

Deixou cair a cabeça sobre o volante e quedou-se um pouco com a respiração entrecortada.

Em seguida, num gesto brusco, deu à ignição e fez o veículo arrancar com violência sem sequer verificar se havia outro veículo na faixa para onde se precipitou.

Conduziu agressivamente pelas ruas, desviando-se e fazendo com que se desviassem durante todo o caminho até entrar no estreito caminho de terra que atravessava o canavial em frente do elegante café junto à praia.

Chegara à praia. Ao seu mar. Aquele que está sempre pronto a recebê-lo, a ouvir os seus pensamentos e que lhe fala mansamente, calmamente, trazendo-lhe a paz que tantas vezes ali vem buscar para acalmar os seus demónios interiores.

De novo os passos largos até sentar à mesa da esplanada mais distante do edifício mas mais perto do areal.

Estava longe do guarda-sol mas não fez nenhum movimento para se tapar do astro rei que ainda dominava o céu sem concorrência.

Recostou a cabeça e fechou os olhos… o som cavo das ondas, hipnótico, distraiu-lhe os maus pensamentos… por alguns segundos…

— Boa tarde. Posso ter o seu pedido?

Espreitou apenas com um dos olhos sobre as lentes escuras e mirou o empregado a toda a altura, irritado com a interrupção. Era um jovem alto de rosto tisnado do sol e ar de gozo. Respondeu-lhe:

— Croft.

— Fresco?

— Céus, não!

O empregado afastou-se com um aceno segundos antes dele acrescentar mais alto:

— E café!

De novo se recostou de olhos fechados… O corpo nu de Mariana estava perante ele em todo o seu esplendor… Os seios de mamilos eretos e desafiadores, ventre liso e suave, quase púbere. Os olhos semicerrados, felinos e felizes sob efeitos das caricias que a excitavam e dos beijos que a enlouqueciam…

O som do seu pedido a ser depositado na mesa trouxe-o de volta à realidade. Soergueu-se, pegou no copo, sorveu-o de um gole e com um arrepio devolveu-o ao empregado que o observava atónito:

— Outro.

Logo que ele se afastou, começou a tomar o café. Estava amargo e o seu aroma forte parecia queimar ainda mais a garganta ofendida pelo brandy.

Poisou os cotovelos na mesa e esfregou os cabelos curtos com ambas as mãos deixando-se estar naquela posição uns segundos até o ruido de novo copo a pousar sobre a mesa o despertar.

Tornou a deitar um olhar ameaçador ao empregado que se perfilava frente a ele, esperando.

Levou a mão ao bolso das calças e atirou uma nota para cima da mesa de onde foi prontamente recolhida e substituída pelo troco.

Imediatamente desligou a sua atenção dele, sorveu um gole da nova bebida enquanto se recostava novamente com a cabeça para trás. Os músculos das costas protestaram sob a forma de dores em diversos pontos… as costas, as pernas, os braços… tinha corpo um pouco maçado. Já não era um jovem, embora não fosse um velho. Tinha quase cinquenta anos e não lhe pesavam normalmente, senão em alturas como aquele fim de tarde.

De novo Mariana na sua mente… não era fácil esquecer aquele corpo maravilhoso que ainda há poucos minutos estivera nos seus braços, esquecer aquela boca ávida que o devorava enquanto beijava, aquele ventre que sofregamente o exigia… e que ele não fora capaz de satisfazer… outra vez.

O som do mar embalava-o e uma lágrima obstinada correu ao longo da haste dos óculos perdendo-se atrás da orelha. O som do mar e o efeito que o brandy começava a fazer sobre as cervejas que bebera em casa dela.

Pela segunda vez conseguira convencê-la a ter algo com ele… conseguira ir até sua casa para fazer aquilo que ambos desejavam… pela segunda vez a sua ereção lhe faltou quando mais dela precisava.

Uma onda de raiva, vergonha e frustração correu o seu corpo enquanto recordava a sensação de pânico enquanto sentia a flacidez tomar conta de si quando a tentou penetrar depois de alguns minutos de excitadas brincadeiras.

A sua respiração tornou-se mais rápida enquanto revivia aquele pesadelo que lhe sucedera pela segunda vez… que se passava? Que estava a acontecer com ele? Era a idade? Ainda nessa mesma semana tinha estado com outra mulher sem dificuldades. Cansado, sim, dorido, com certeza mas não flácido.

Era o seu pior pesadelo a tornar-se realidade pela segunda vez com ela, agora que achava que iria eliminar a vergonha que sentira da primeira vez, que a iria fazer sentir feliz e desejar outra e outra vez…

Não podia suportar a humilhação…

Abriu os olhos e acenou o copo vazio ao empregado que passava perto.

De novo recostado deixou-se envolver pelo som do mar e das gaivotas que gritavam ofendidas umas com as outras.

De novo o copo a pousar sobre a mesa… sem abrir os olhos, colocou algumas moedas no tampo e tateou em busca da bebida que pareceu ter sido empurrada para a sua mão.

Sorveu uns goles… o sol parecia já não aquecer tanto mas o seu rosto ardia ainda de fúria…

Aquele corpo maravilhoso… sentiu que algo crescia dentro das suas calças… agora que é tarde.

Mariana era sempre uma querida… riu, brincou, tentou todos os encantos femininos e todos os truques que em qualquer outra altura (ou pessoa) teria resultado… sem resultado.

Acabou a bebida e respirou fundo tentando acalmar o coração que insistia em bater com força.

Ergueu-se de um salto e sentiu-se cambalear.

Olhou em volta… a esplanada estava agora vazia e o sol havia desaparecido atrás do mar deixando uma luz irreal de um vermelho carregado que o envolvia como nevoeiro.

Agora como seria? Estava arrumado? Estava… velho? Não!

Com a afirmação mental a martelar no cérebro em ondas de raiva afastou-se a passos largos da esplanada em direção ao veículo.

Estava um “arrumador” junto do automóvel apenas um vulto escuro de roupas sujas. Como ele odiava essa espécie.

Passou por ele ignorando-o e abriu a porta preparando-se para entrar quando a figura falou:

— Dá-me uma moedinha?

— Vai trabalhar, pá. — Rosnou-lhe.

— Vai tu, cabrão! — A resposta foi pronta.

Ato contínuo, José saltou do automóvel com as mãos crispadas para o pescoço do provocador e apertou-o com toda a força. A cara do homem fazia um barulho estranho ao bater por várias vezes contra a longarina de suporte do vidro traseiro onde deixava espirros de cor incerta que escorriam na chapa.

Largou-o e ele caiu quase sem sentidos a seus pés onde levou mais dois pontapés no estômago.

Quando se voltou para entrar de novo no veículo, encarou um novo facínora que, sem uma palavra, o socou no estomago duas vezes com toda a força. Uma onda de fogo começou a revolver-lhe as entranhas enquanto era empurrado para o chão e despojado da carteira, que tinha no bolso traseiro das calças, sem qualquer cerimónia.

Uma lâmina ensanguentada foi limpa na manga do seu casaco.

Enrolado sobre si próprio, olhou com pavor para a sua mão empapada num líquido escuro que parecia correr da sua barriga.

O recém-chegado ajudou a levantar o companheiro, entraram ambos no carro que começou a trabalhar e se afastou rapidamente…

José gemeu e deixou as lágrimas correram no rosto enquanto sentia a vida a escoar-se entre as suas mãos…

Na sua mente começaram a desfilar, uma a uma, aquelas que com ele viveram bons momentos e partilharam um pouco de felicidade…

Belas mulheres que umas após outra passavam na sua memória e sorriam-lhe felizes. Ele recordava cada uma delas, cada recôndito do seu corpo, cada sorriso, cada beijo. O calor da paixão que os movia a felicidade da partilha do prazer… E Mariana… que o olhava com um rosto triste e cheio de pena enquanto ele murmurava, já no fim:

— Não sei o que tenho… não é culpa minha…

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Historia Interminavel


Num turbilhão de luz
Dei por mim sem saber como tinha chegado ali.
E tive consciência de quem era.
Criança inocente brincando com o presente acabado de receber.
Sem ter noção das palavras, os dias eram de Verão, aquecidos pelo amor dos pais e dos avós.
Os dias passam-se e cresci.
As palavras fazem parte do dia-a-dia
E centenas de estranhos fazem parte dos meus dias de Primavera
Temperados e doces com os avós longe e os pais a distanciar-se.
Em plena estação conheci o meu amor e deu-se inevitável casamento
Aproximava-se o fim da Primavera quando conheci o meu filho.
Era o fim de uma época quando ele crescia e meus pais se distanciavam
Dias mornos de Outono salteados com chuva.
O mundo muda-se.
Os professores do meu filho são cada vez mais novos e os amigos estão distantes e cada vez menos.
Meu filho cresce e torna-se um homem e a estação está no auge.
Os meus pais são uma memória distante.
O Outono aproxima-se do fim e os dias frios tornam-se uma constante.
As chuvas de Inverno apanham-me em cheio.
Está frio e dói-me o corpo.
Meu filho casou e está longe.
Trouxe-me um neto para que o conhecesse.
Minha esposa, cabelos de neve, cuida de mim e atura pacientemente as minhas casmurrices.
As dores são muitas e os dias intermináveis…
Este Inverno não tem mais fim e eu estou tão cansado.
Não durmo muito com as dores e o ócio embrutece-me e deixa-me sonolento.
Os olhos pesam-me finalmente e ajeito-me para dormir.
Acalmo a cabeça na travesseira perante o olhar cansado mas preocupado do meu amor.
Sorrio para a sossegar e fecho os olhos com um suspiro.
E é um turbilhão de luz numa paz imensa e celestial.
Dei por mim sem saber como tinha chegado ali.
E tive consciência de quem era.
Criança inocente brincando com o presente acabado de receber.
Sem ter noção das palavras, os dias eram de Verão, aquecidos pelo amor dos pais e dos avós.
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

As folhas




A vida é uma sucessão de encontros e desencontros.

Como folhas soltas caídas num ribeiro, corremos velozes, num frenesim que não é nosso, na corrente eterna.
Estas folhas, depois de um curto voo, livres, são presas da correria desenfreada da torrente que corre para um e outro rio até chegar ao mar.
Algumas folhas, perdem velocidade e rumo e ficam-se pelas margens, encostadas, abandonadas, vendo as outras passar em grande velocidade até se perderem na distância. Ficam-se até a natureza fazer o seu papel e não restar memória do simples organismo que ali ficou.
Há folhas que correm rápido, pelo lado mais forte da corrente, fazendo curvas apertadas e saltando sobre os seixos, preocupadas em chegar ao fim… mas sem saberem o QUE é o fim. Correm ignorantes do destino mas conscientes que têm de lá chegar... Acabarão por chegar mas sem saber que existiram.
Folhas que, sem se desviar, navegam pelo lado mais lento da corrente, apreciando cada curva, dobrando cada tronco caído, beijando até cada seixo do leito. Têm trajectos longos, contactam muitas folhas e a sua marca em cada uma durará até que a ultima delas desapareça.
Outras, sem rumo, não percebem a corrente nem os seus meandros e deixam-se vaguear em cada remoinho, prender em cada ramo, perdidas do norte e do Objectivo… Estarão lá para sempre, são aquelas que todos vemos mas não reconhecemos.
Durante o seu percurso, algumas folhas encontram-se, tocam-se, para se soltarem no segundo seguinte e seguirem o seu caminho separadas. Em corridas paralelas mas distantes.
Folhas há que colam-se não se soltando mais todo o percurso, vivendo num eterno rodopiar uma em volta da outra numa valsa silenciosa.
Mas há folhas, que estando muitas vezes sozinhas, flutuam em pequenos grupos que se vão tocando e revezando entre si sem ficarem presas… Nem completamente livres.
E a corrente plena de folhas continuará a chilrear por entre os seixos da planície até que a árvore, velha de anos, caia sob o seu próprio peso e novos ramos de outras árvores soltem novas torrentes de folhas.
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domingo, 19 de dezembro de 2010

Vagueando

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




A dor de cabeça surgiu de repente, do nada.
Ao mesmo tempo um zumbido intenso que pouco a pouco se foi tornando no murmurar contínuo e surdo das pessoas em volta de alguma coisa.
Estava na rua, com a bicicleta pela mão. Por um momento sentiu-se desorientado sem saber como chegou ali.
Um grande grupo de transeuntes acotovelava-se em volta de algo no meio da estrada. Um automóvel parado mesmo ao lado do ajuntamento, com os quatro sinalizadores piscando, ostentava marcas de um choque recente.
Caminhou, puxando o velocípede ao lado, até ao grupo de pessoas.
Tentou, sem sucesso, espreitar o objeto de tanta curiosidade e escutava uma voz longínqua que gritava: - Deem espaço, deixem respirar!
Os seus pés tropeçaram em algo… Uma roda de bicicleta retorcida que os curiosos calcavam, ignorando-a.
-        Mais um pobre ciclista atropelado. – Comentou, de si para si, afastando-se.
Os sons de tumulto soavam longínquos e confusos, as vozes retorcidas e irreais.
Caminhou, ignorando o acidente e abandonou a estrada entrando na mata que a flanqueava. Não se recordava daquelas árvores tão perto daquele local.
O ar ruidoso e carregado de luz foi substituído por uma atmosfera cinzenta e silenciosa.
Uma sensação de irrealidade impunha-se, oprimindo-o e atordoando-o.
Esparsos raios de sol rompiam, filtrados pela copa das árvores, acendendo pequenos círculos de luz a seus pés.
Distraidamente, encostou a bicicleta ao tronco mais próximo e continuou a vaguear, calcando o suave tapete de folhas que forrava o chão.
Murmúrios, em tons de urgência, chegavam até si de muito longe e ele ignorava-os usufruindo daquela sensação de leveza e liberdade que parecia provir não sabia bem de onde.
Olhou para o alto, abriu os braços e começou um lento rodopiar, embriagando-se daquela luz que provinha dos céus e lhe atingia o rosto como pequenas pedras preciosas, ofuscando-o e maravilhando-o.
Deixou-se cair de costas, saboreando a vertigem causada pela rotação e assim ficou, de rosto para o ar, soltando uma gargalhada de desafio aos céus e ao mundo, sentindo uma euforia imensa tão inexplicável como irresistível. 
Conseguia divisar as nuvens brancas por entre as árvores. Formavam rostos, uns belos outros não, uns novos, outros velhos…
-        Cristina! – Um dos rostos das nuvens foi suficientemente perfeito para que uma sensação de urgência o fizesse levantar.
Olhou em volta. A bicicleta não estava à vista.
Não sabia onde estava. Ao longe um bip bip contínuo fazia-se ouvir, cadenciado, parecendo transmitir calma, mas ao mesmo tempo preocupação.
Novamente o murmurar longínquo e quase reconhecível… - Onde estás, Tina? Não te vejo. – Lamentou-se, como que respondendo a alguém.
Soltou um suspiro, enquanto uma inexorável onda de resignação o envolvia. Não conseguia compreender o que se passava consigo,  tal era o  afluxo de sensações descontroladas que sentia, saídas não se sabe de onde.
Decidido, recomeçou a caminhar em frente, como se tivesse optado finalmente por um caminho.
Novamente a lembrança de Cristina lhe afluiu à ideia. Parecia escutar as ondas por entre o bip bip omnipresente, ao recordar o passeio que fizeram juntos no dia anterior.
O seu longo cabelo escuro, despenteado pelo vento suave que acariciava as ondas, os pés de ambos descalços, na areia gelada daquela manhã de fevereiro… Parece que foi há tanto tempo que ela lhe deu aquela notícia maravilhosa:
-        Pedro, a partir de agora vais ter de me tratar ainda com mais cuidado do que o costume.
Ele enfrentou-a com um olhar sério, os seus olhos castanhos nos preciosos verdes dela, enquanto inquiria:
-        Que se passa? Estás doente?
-        Não tolinho! Vais ser pai!
Numa explosão de alegria pegou-a ao colo e rodopiaram abraçados até caírem na areia, exaustos e a rirem.
Parece que não foi apenas ontem, mas há uma eternidade… Terá sido ontem? Terá sido apenas esta manhã que, como todas as manhãs de domingo, saiu de casa deixando a cama onde ela dormia ainda quente, e lançou-se nas ruas frias cavalgando a sua bicicleta?
Afinal que é que isso interessa? Olhou para as mãos com as luvas de competição e sorriu: - Ia jurar que não as tinha há uns minutos atrás…
Por uns segundos, os murmúrios tornaram-se na voz suave de Cristina: 
-        Volta para mim, meu amor, não me deixes.
Aquelas sensações de urgência e dor pareciam voltar… Ela precisava dele, onde estava ela…? …Onde estava ele?
Parou.
Estava em frente a um muro enorme, de aspeto antigo e sombrio que se estendia em ambas as direções a perder de vista.
Todas as preocupações varreram-se-lhe da memória.
Conseguia escutar os acordes da sua música preferida, “Sitting” de Cat Stevens. Alguém deveria ter um rádio… Caminhou numa das direções do muro, cantarolando os versos do poema:
“Oh I'm on my way I know I am, somewhere not so far from here
All I know is what I feel right now, I feel the power growing in my hair
Sitting on my own now by myself, everybody's here with me
I don't need to touch your face to know, I don't need to use my eyes to see”
Sempre se identificara imenso com esta música; sempre se sentira caminhando nalgum sentido, alheio a tudo o que se passava à sua volta.
Nunca sentira a solidão porque pressentia o mundo à sua volta. No seu egoísmo não tinha nada para dar ao mundo, mas ele estava ali para si.
O muro estava abruptamente interrompido por uma enorme arcada sem porta, antes de continuar novamente a perder de vista.
Para lá da arcada era um negrume imenso; impossível divisar fosse o que fosse.
Sentou-se no chão, frente àquela enigmática entrada, como que esperando alguma coisa enquanto a música continuava a ressoar na sua mente:
“I keep on wondering if I sleep too long, will I always wake up the same (or so)?
And keep on wondering if I sleep too much, will I even wake up again or something”
Até agora tudo isto lhe parecia um sonho no qual ele vagueava, eternamente. E, como na canção, podia mesmo perguntar se não estaria a dormir de mais, e se acordasse, ainda seria a mesma pessoa.
No gigantesco umbral pareceu materializar-se uma pessoa; uma jovem morena, pequena e de cabelo curto que o olhou com ar de quem já sabia que ele se encontrava ali.
Sem saber como, percebeu que a sua espera terminara e ergueu-se enquanto ela se aproximava em passos pequenos e suaves.
-        Está na hora. – A sua voz soou, como uma doce melodia, acompanhada de um sorriso compreensivo para o seu ar de confusão. – Segue-me,  podes deixar aí a bicicleta. - Voltou-lhe as costas e começou a caminhar na direção do portal.
Ele olhou para o chão, a seu lado, onde jazia a sua bicicleta retorcida e sem a roda da frente.
Largou o capacete quebrado, que não sabia como tinha ido parar às suas mãos e só então foi atingido por uma onda de compreensão.
Avançou atrás da jovem e penetrando na fria escuridão. Antes, porém, deitou um último olhar para as nuvens, onde o rosto entristecido de Cristina ainda se divisava, e murmurou: - Adeus, meu amor…
Ao longe, o bip bip transformou-se num silvo contínuo durante alguns segundos substituído depois por um bem-vindo silêncio.
Como se mergulhasse nas águas escuras do oceano, a confusão de escuridão e luz que se seguiu apagou todos os restos de medos, dores, solidão…


Cristina ficou ainda mais uns minutos sentada ao lado da cama onde jazia o seu marido. Perdera a noção do tempo.
O pequeno ipod, com os auriculares direcionados para o ouvido de cada um, continuava a tocar Cat Stevens que ele tanto gostava. Esperava que, por milagre, as músicas o trouxessem de volta para algo que ele gostava... Que o trouxessem de volta para ela.
Depois de tanto tempo embalada pelo hipnótico bip bip, ficara em choque quando ele, após várias horas em coma, lhe sussurrou um “Adeus, meu amor”.
Continuava apática quando a pequena enfermeira, morena de olhar triste, desligou o equipamento, cujo apito contínuo anunciava o fim de mais uma vida.
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Magia



Eram tardes mágicas.
Os dias passavam-se numa lenta agonia,
Na expectativa da hora em que sairia correndo do emprego
Para te ver.
E as horas arrastavam-se demorando a minha dor,
Até chegar a hora em que correria para junto de ti.
Eram dias maravilhosos, aqueles.
 Vivia-os como um sonho do qual não queria acordar.
E ficava-me ali, a beber cada palavra tua,
A saborear cada olhar fugidio
E sempre temendo tocar-te.
O meu mundo nesse período,
Estava encerrado numa bolha de sabão.
Reluzente, envolto em miríades de luz, como um cristal,
Mas ténue e frágil como a mais pura porcelana.
Imóvel e inseguro,
Quedava-me ao pé de ti, esboçando uma carícia envergonhada,
Passando a mão no teu cabelo…
Mas sempre temendo que, num gesto brusco,
A bolha de sabão rebentasse
E o meu sonho, tu,
Se evaporassem numa explosão de lágrimas salgadas.
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O último dia do verão


O último dia do verão...
O sol põe-se lentamente
Tingindo de vermelho fogo
As negras nuvens que dominam o céu.
Uma vez mais, lado a lado
Conversamos como bons amigos...
Que somos.
E eu mal te toco,
Temendo que te desvaneças,
Porque te toco
E temendo que te vás
Porque não te agarro.
E o ultimo dia do verão vai-se lentamente,
Criando em mim
Uma sensação de vazio e perda.
A terrível certeza que
"Amanhã será sempre tarde de demais"
E que eu estou destinado a não te ter.
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