domingo, 22 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Oitava parte - Perfídia

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Lilian começava já a pensar se não poderiam ter uma vida melhor ali naquele jardim, em vez de voltar para a aridez do mundo. Samael sentiu-se preocupado quando ela lhe deu a entender que se sentia como que voltando a casa.

— Esta já não é a tua casa. — Avisou-a o anjo, com os olhos postos no chão. — Eventualmente, o Criador poderá até te perdoar, mas creio que nunca te permitirá que regresses aqui. Se suspeitasse que nos infiltramos, enviaria um exército de anjos que nos encontrariam e aprisionariam.

— A ti também? — Ela abriu muito os olhos verdes.

— A mim também. — Ele acenou gravemente. — A ti poderia matar-te ou simplesmente expulsar-te para muito longe, de onde não conseguisses voltar, a mim expulsar-me-ia do Céu e porventura tirar-me-ia as asas… pior que isso, só ser lançado nas chamas eternas no centro da terra.

Caminhavam despreocupadamente pela vereda, apesar da gravidade do tema, como se não tivessem nada a esconder. Lilian meditava nas palavras do anjo e na gravidade do castigo que ambos se sujeitavam, quando depararam com o lobo.

O animal, surpreendido com os intrusos, ficou parado no meio do caminho com as patas perfeitamente apoiadas numa atitude de expectativa. As orelhas puxadas para trás e a cauda inerte mostravam a sua dúvida entre fugir ou atacar.

A mulher reconheceu imediatamente o canídeo que sempre os acompanhava quando ela habitava o jardim e estranhou de imediato a postura agressiva.

— Lobo. — Chamou ela suavemente. — Lobo, não te lembras de mim?

Um rosnar de advertência foi a resposta, antes de soltar o que pareceu um sopro de desprezo e voltar-lhes as costas. Ignorando-os, trotou pela vereda, em sentido contrário ao que trazia.

— Não acredito que já não se lembra de mim em tão pouco tempo! — Lilian bufou de frustração e fez o gesto de atirar um pequeno objeto que tinha na mão.

O braço dela passou perto de Samael o suficiente para lhe despertar a atenção e ficar a olhá-la e à mão fortemente fechada que escondia algo.

— Que tens aí? — Interrogou o anjo, perante o ar culpado que a denunciava.

— Nada. — Ela cerrou ainda mais a mão. — É só uma coisa minha… para me sentir mais confiante.

Ele estendeu a mão insistentemente e aguardou até que ela, relutantemente, pousasse uma pequena pirâmide talhada em madeira.

Assim que o objeto caiu na palma da mão dele, começou a escutar milhares de vozes que sussurravam continuamente uma oração ou um encantamento.

— Foi Armaros quem te deu isso, não foi? — Ela confirmou com um aceno da cabeça, mantendo os olhos baixos. Ele abriu-lhe a mão e devolveu o amuleto. — É um feitiço. A esta hora, ele e todos os que o ajudaram a urdi-lo sabem onde estamos e como chegar aqui. — O seu desapontamento era óbvio. — O segredo da localização está perdido.

— Desculpa. — Lilian mostrava-se verdadeiramente desolada. — Não percebi. Ele disse-me que to não mostrasse, pois irias ter ciúmes por dar a mim e não a ti.

Samael esboçou um sorriso triste. Também os anjos começavam a mentir despudoradamente. Aprendiam com os humanos. Afinal a evolução (?) acontecia nos dois sentidos, ou será que era a evolução dos humanos e a regressão dos anjos?

— Temos de ir. — Instou Samael iniciando uma caminhada decidida na direção que o lobo tomara. Obediente e constrangida, ela seguiu-o.

Não tardou que vissem Adam, que seguia o voo de uma borboleta, tentando escutar o que a sua quase inaudível vozinha dizia. Os dois intrusos regressaram rapidamente aos seus disfarces e mantiveram-se a observar ocultos pelas folhas dos arbustos. A abertura de uma caverna podia observar-se ao fundo por trás de Adam; o seu novo lar.

— Ah, que pássaro tão bonito! — A voz feminina surpreendeu o melro/Samael. — Que penugem tão lustrosa e um bico amarelo tão lindo.

 

e olhos amendoados. O seu luxuriante cabelo escuro, quase lhe cobria o corpo, de onde sobressaíam os seios de bicos rosados.

Olá! — O melro reagiu rapidamente, no vocabulário limitado, típico dos animais do paraíso. — Também muito bonita, tu. Irmãos falarem de ti e eu querer ver. — O plano insidioso iria começar de imediato.

— Oh, a sério? — O sorriso dela fê-la ainda mais bela. — Também estranhava nunca te ter visto aqui.

— Venho de longe. — Continuou ele, observando pelo canto do olho como Adam se afastava da clareira perseguindo a borboleta. — De fora do jardim, onde vivem os outros homens.

— Outros homens? — Espantou-se ela. — Quais? Há mais alguém além de Adam e do Pai? — A semente estava lançada.

O melro saltitou de arbusto em arbusto, na direção contrária à que seguira Adam. Rrava seguiu-o, curiosa: — Diz-me, há mais pessoas por aí?

— Sim, mais perto do que imaginas. — O pássaro fez um pequeno voo para mais longe da caverna, logo seguido pela mulher. A serpente castanha acompanhava-os silenciosamente, oculta da vista, rastejando entre a folhagem que cobria o chão.

— Mas… — a curiosidade tinha sido despertada e estava imparável —… Onde estão? Porque nunca os vi? Porque os outros pássaros não falam deles? — Aqui imobilizou-se e olhou para as copas das árvores. — Onde andam os pássaros?

 — O pai não quer os homens por perto e eles vivem por aí em casas de lama e pedra. — Samael falou de ainda mais longe, atraindo novamente a atenção dela.

— Que são casas? — Rrava correu para junto do melro.

— São lugares como a caverna onde vives, mas são os homens que as constroem onde querem. — Explicou pássaro negro.

— Eu gostava que a caverna ficasse mais próxima do rio. — Disse ela pensativamente. — Como posso construí-la lá?

— Não podes. — O melro esvoaçou para outra folha mais distante. — Aí está, não sabes fazê-lo. Mas, se estivesses fora do jardim, com os outros homens, eles ajudavam-te a fazê-la.

— Então, como encontro esses homens? — Ela ergueu os ombros numa interrogativa.

Samael assumiu a forma humana frente a ela enquanto respondia maviosamente: — Terás de sair do jardim, eu ensino-te como o fazer, quiseres.

A serpente/Lilian circulou pelos arbustos perto deles, apreciando o insidioso círculo de sedução que o anjo construía em volta da inocente Rrava. Devido ao seu estado, agora quase divino, conseguia sentir as ondas de emoções que Samael emitia e que o tornavam irresistível… Era o mesmo “truque” que com certeza utilizara com ela e fazia-a sentir raiva, repulsa e… admiração.

Rrava e o anjo beijaram-se longamente. A volúpia provocada pelo ente divino enlouquecia-a ela entregou-se completamente às suas mãos experientes.

Lilian sentia-se inquieta, ciumenta, talvez, mas algo mais. Olhou em volta e notou a oscilação de luz que acontecia em alguns locais. Percebeu de imediato que eram observados por alguém invisível e rastejou sub-repticiamente para junto da anomalia. O tremeluzir afastou-se ligeiramente, mostrando que a via e, possivelmente, tinha consciência dela para além da sua forma de serpente.

Quase de imediato, a forma translúcida de um sorridente Armaros, com o dedo pousado sobre os lábios, pedia que não dissesse nada. Tornou a desaparecer no momento seguinte. Procurando com mais atenção, detetou várias pequenas orbes luminosas saltitando pela clareira; o segredo da localização do Jardim do Éden fora revelado.

Share:

Receba as últimas novidades

Receba as novas publicações por correio eletrónico:

Número total de visualizações de páginas

Mensagens populares

Publicações aleatórias

Colaborações


Etiquetas

Contos (101) Marketing (57) Samizdat (56) Lançamentos (35) Contos Extensos (32) Contemporaneo (31) Eventos (30) Antologias (24) religião (24) Autobiográfico (23) Poesia (23) TDXisto (22) pobreza (22) roubo (22) Na Madrugada dos Tempos (21) Noticias (21) pre-historia (21) primitivo (21) sobrenatural (19) criminalidade (18) Crónicas (16) Sui Generis (16) biblico (14) homicidio (14) A Maldição dos Montenegro (13) DAMarão (13) Indigente (12) Recordações (12) sem-abrigo (12) separação (12) Suporte a criação (10) genesis (10) Pentautores (9) Século XIX (9) Uma Casa nas Ruas (9) publicações (9) Distinção (8) perda (8) solidão (8) Entrevistas (7) livros (7) terceira idade (7) Na Pele do Lobo (6) Rute (6) Terras de Xisto (6) Trás-os-montes (6) intolerancia (6) lobisomens (6) mosteiro (6) Apresentações (5) Papel D'Arroz (5) Revista (5) guerra (5) medo (5) morte (5) opressão (5) traição (5) Corrécio (4) Divulga Escritor (4) geriatria (4) sofrimento (4) vicio (4) LNRio (3) Portugal (3) Violência doméstica (3) dor (3) Carrazeda de Ansiães (2) Entre o Preto e o Branco (2) Ficção (2) Humor (2) Projetos (2) ambição (2) apocaliptico (2) cemiterio (2) culpa (2) futurista (2) isolamento (2) jogo (2) lendas (2) sonhos (2) Abuso sexual (1) Covid-19 (1) Extraterrestres (1) Minho Digital (1) Pandemia (1) Perversão (1) Viagens do tempo (1) abel e caim (1) bondade (1) desertificação (1) dificuldades (1) emigração (1) escultura (1) hospital (1) materialismo (1) mouras (1) natal (1) sorte (1) suspense (1) transfiguração (1)

Imprimir

Print Friendly and PDF